A DITADURA DERROTADA
Victor Gentilli
A imprensa tomou um susto com o lan&ccedccedil;amento de A ditadura derrotada, terceiro volume do monumental trabalho de recuperação histórica do período do regime militar realizado pelo jornalista Elio Gaspari. Pela primeira vez, um livro foi lançado sem que alguns exemplares fossem entregues com certa antecedência aos jornais.
De um modo geral, a imprensa comportou-se bem, cobrindo o lançamento de um livro pesado e polêmico. Até agora, a obra só mereceu elogios. Gaspari foi o depositário do arquivo pessoal do general Golbery do Couto e Silva e teve acesso a fitas gravadas nos anos de 1973 e 1974. Grosso modo, a imprensa deliciou-se com o diálogo, ainda antes da posse, entre o então futuro presidente, Ernesto Geisel e seu já escolhido ministro do Exército, Dale Coutinho.
A rigor, não há nenhuma grande novidade no diálogo. No início da década de 1970, quando o combate à guerrilha urbana aparentemente já se encerrara ? e a guerrilha do Araguaia patrocinada pelo PCdoB agonizava, ainda que obscurecida pela censura ?, o general Geisel, ao dialogar privadamente com um militar da linha dura, proferir uma frase que defendesse os assassinatos políticos não é propriamente surpreendente. Quem leu o depoimento do ex-presidente a historiadores do CPDOC da FGV (Ernesto Geisel, de Maria Celina d?Araujo e Celso Castro, Editora FGV, 460 pp. ? veja remissão abaixo) pôde perceber que Geisel em momento algum se apresentou como defensor da democracia ou dos direitos humanos. No seu depoimento público, justificou a tortura. Agora, uma conversa privada com um militar nomeado ministro aparece como grande novidade. Para um observador atento, não é.
Obra de opinião
Na guerra intestina que grupos militares faziam durante a ditadura havia aqueles chamados de "linha dura" e outros, herdeiros da "Sorbonne", defendendo a "distensão lenta, segura e gradual". Este segundo grupo teve no general Golbery um interlocutor para alguns jornalistas privilegiados que patrocinaram a distensão na imprensa.
Geisel era um militar austero, rígido, disciplinador. Se Costa e Silva conseguiu impor-se presidente apesar de Humberto Castello Branco, Emílio Garrastazu Médici aceitou a missão a ele encaminhada pela elite militar no poder. Médici viveu o prestígio público do "milagre brasileiro" e pagou o preço da escolha. Os militares tinham o presidente sob seu jugo. Geisel desmontou o que Gaspari chama de "bagunça" ? a indisciplina e o vôo livre do "porão". Os "distensionistas" não desejavam o fim do "porão", apenas queriam que este trabalhasse sob seu comando.
A obra de Gaspari (e o autor é claro neste aspecto) não se pretende uma história da ditadura. Gaspari conta em detalhes a versão daqueles que foram suas fontes à época e se tornaram seus amigos. Sobre o secretário particular de Geisel, Heitor Ferreira de Aquino, Gaspari fala em "amizade de trinta anos". Ora, Ferreira foi o autor de um diário pessoal daqueles dias, e aquele que encarregou-se de manter os diálogos gravados em fita como segredo por trinta anos.
Ilude-se quem imagina que Golbery era o "gênio da raça" como dissera o cineasta Glauber Rocha para surpresa da esquerda da época, ou que, agora que a imagem do "sacerdote" também tostou-se, fica o "feiticeiro". Não fica nada.
Ninguém que deseja conhecer a história do período pode abrir mão de estudar criteriosamente o trabalho de Gaspari. Mas tomá-lo como o documento definitivo do período pode levar a equívocos. A obra é gigantesca, apresenta inúmeros dados novos que ajudam a conhecer o período, mas é uma obra de opinião. Em momento algum destas cerca de mil e quinhentas páginas já publicadas, a palavra golpe (mesmo que solitária) aparece como forma de designar o movimento de 1964. O autor dá ao capítulo o nome de "A queda" e usa as expressões "queda", "deposição" e outras. Em alguns momentos, Jango teria caído; em outros fora deposto. Em momento algum Gaspari afirma que Jango foi derrubado por um golpe militar.
Documentos primários
A resistência armada urbana, cujas principais lideranças foram Carlos Marighella e Carlos Lamarca, também não recebe o nome de guerrilha. É terror. Os militantes que optaram pela luta armada são terroristas, segundo o autor. Era esta a expressão obrigatória do regime, e que, num dado momento, fora usada até mesmo por Marighela, que se apresentava como "terrorista".
Nesta segunda situação, Gaspari até se explica, o que não faz no caso do golpe militar que derrubou Jango Goulart.
Este terceiro volume é mais incompleto do que os dois primeiros, que mantinham uma certa unidade entre si. O quarto volume já está escrito e deverá ser lançado brevemente. Mas este hiato informativo permite apenas uma visão parcial da obra. Difícil avaliar uma obra apenas por um volume, quando uma segunda parte, já escrita, ainda não está disponível ao público.
Neste A ditadura derrotada, Gaspari apresenta biografias bem cuidadas dos seus dois personagens centrais, o "sacerdote" Ernesto Geisel e o "feiticeiro" Golbery do Couto e Silva. Informa e documenta todo o processo de sucessão presidencial, a escolha do ministério e conclui com as eleições de 1974.
O segundo volume também se encerrara em 1974, mas com o final da guerrilha do Araguaia (aliás, o único movimento de resistência que recebe de Gaspari o nome de guerrilha).
A obra é centrada nos personagens principais. Antônio Delfim Netto também é apresentado de corpo inteiro, mostrado como um homem sem escrúpulos. O autor esclarece: era preciso neutralizar o homem que fora o mais poderoso no período Médici. Corresse o barco sem turbulências, Delfim se tornaria governador de São Paulo em 1974 e presidente da República, em 1979 ? eis o raciocínio que explica porque a dupla que comandou o país a seguir precisou fritar o ex-ministro da Fazenda. O leitor, no entanto, se permite algumas dúvidas. Na explicação, no início do livro (pág. 19) o autor cita Delfim Netto duas vezes no mesmo parágrafo: primeiro para informar que se socorreu com a sua generosidade (entre outros) "para o entendimento da política do período". Logo a seguir, informa textualmente: "Durante anos, Mario Henrique Simonsen foi um professor paciente e Delfim Netto (novamente), um cáustico demolidor de embustes". O livro, porém, relata em detalhes como Delfim manipulava números e praticava embustes, em especial a manipulação do índice de inflação de 1973 (pág. 274). Ao final, inclui o nome do Gordo como um de seus informantes (pág. 511).
A linha-dura tinha no general Albuquerque Lima um nome expressivo e de um nacionalismo forte, que abria canais de interlocução os mais estranhos possíveis. O general é praticamente ignorado por Gaspari, que limita-se a descrever em detalhes como seu nome foi excluído do processo sucessório. Jacob Gorender, velho militante e historiador cuidadoso do período, na segunda edição do seu festejado Combate nas trevas, citado inúmeras vezes, levanta a suspeita sobre um suposto encontro entre o general Albuquerque Lima e o líder Carlos Marighella. Baseia-se em comentários da época e no depoimento do motorista de Marighella. Gaspari ignora o episódio, como ignora tudo o que não aparece nos documentos primários com os quais funda sua obra.
Um dos primeiros jornais alternativos, em 1972 também contava com jornalistas de esquerda e simpatizantes de Albuquerque Lima. Pena que não tenhamos mais registros de uma famosa edição que, ao combater um "entreguista", abria como manchete: "AI-5 nele!" Ou coisa assemelhada. Chamava-se Fato Novo. Foi solenemente ignorado. O leitor pode estranhar, mas o Pasquim não aparece em momento algum e Opinião aparece duas vezes, citado burocraticamente.
Contas erradas
A obra de Gaspari se encerra com o fim do governo Geisel. É vendida como história da ditadura mas não cuida dos seis anos de governo Figueiredo, o último da ditadura. Gaspari diz que não o fez, por "desimportante". Até hoje, nunca ninguém lhe perguntou por que o governo Figueiredo foi desimportante.
O livro é cantado e vendido como uma obra de edição bem cuidada, com revisão e leitura cuidadosa do texto, dos nomes das pessoas e da iconografia. É verdade. De todo modo, escapou a todo este poderoso esquema de revisão o nome de Herbet de Souza, o Betinho, irmão do Henfil. Na página 357 é apresentado como "Herbert" e não como Herbet.
Na página 304, o autor informa que "Geisel regia-se pela regra de Machado de Assis segundo a qual ?Ministério não se rejeita?. Convidou-o [o advogado Arnaldo Sussekind para o Ministério do Trabalho] e recebeu a única recusa da rodada. Para o lugar foi o deputado gaúcho Arnaldo Prieto, amigo de Bernardo, irmão mais velho do futuro presidente". Meia dúzia de páginas antes, na 298, o autor conta que Geisel decidira convidar João Paulo dos Reis Velloso para o Ministério do Interior. "Aconteceu o impensável: Velloso recusou. Argumentou que queria ficar na área econômica. Polidamente: isso ou nada. Geisel deu-lhe a razão e a Secretaria do Planejamento."
O autor aí errou nas contas. As recusas foram duas. Sussekind recusou o Ministério do Trabalho e Reis Velloso, o do Interior. Um ficou de fora da equipe, outro ficou com a Secretaria do Planejamento.
Pauta atravessada
Veja vacilou feio na sua reportagem sobre a obra. Se os outros souberam comportar-se ao trabalhar uma matéria sobre um livro de impacto, entregue aos jornalistas no mesmo dia em que ia para as prateleiras das livrarias, Veja comeu mosca. Logo no início contrabandeia opinião ao distinguir ditaduras de esquerda das de direita. Depois, fica palpitando sobre o governo Geisel enquanto ignora a obra que deu origem à pauta e deixa de observar até mesmo que o livro se encerra com a vitória do MDB nas eleições de 1974.
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