Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Indiferença e desrespeito

OFJOR CI?NCIA

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AMAZÔNIA

Rafael Evangelista (*)

Outubro foi marcado, para a antropologia, pela inusitada evidência dada à disciplina nos cadernos de ciência de toda imprensa brasileira e internacional. Entretanto, o motivo não foi a discussão dos resultados de nenhum trabalho acadêmico, mas as denúncias feitas pelo jornalista Patrick Tierney, autor do livro que será lançado em meados deste mês, Darkness in El Dorado, em que um antropólogo e um biólogo são acusados de planejar um genocídio entre os ianomâmis apenas para provar suas teses sobre a natureza humana.

Em resumo, Tierney acusa os americanos Napoleon Chagnon, antropólogo, e James Neel, biólogo, de terem aplicado nos ianomâmis, em meados dos anos 60, uma vacina contra sarampo com sérias contra-indicações para pessoas com baixa resistência (que era o caso dos ianomâmis). Esta vacina teria o vírus ativo, e seria responsável por espalhar uma epidemia de sarampo na região, matando milhares de pessoas na fronteira da Venezuela com o Brasil. Segundo Tierney, os pesquisadores sabiam o que estavam fazendo, e buscavam provar que apenas os ianomâmis que fossem guerreiros sobreviveriam ao sarampo, por serem geneticamente mais fortes. Anteriormente, Chagnon havia descrito os ianomâmis como "um povo feroz", para o qual a guerra teria um papel central na sociedade.

Há ainda outras acusações centradas no trabalho de Chagnon. Segundo o jornalista, a descrição dos ianomâmis como um "povo feroz" teria partido de dados de campo falsificados. Chagnon teria encenado lutas para um filme etnográfico, obrigando os ianomâmis a violarem tabus (eles dizem o nome de seus mortos), criado um comércio de objetos em troca de informações, entre outras práticas pouco éticas. A intenção seria mostrar, dentro de uma ótica evolucionista, que os ianomâmis eram um povo primitivo e que povos primitivos viveriam em estado de guerra constante.

Reprodução de preconceitos

A cobertura do caso pela imprensa brasileira não foi além da mera reprodução dos dados da imprensa internacional e da intensa corrente de e-mails que se seguiu. Apesar do destaque dado à polêmica, quase ninguém procurou aprofundar e verificar antecedentes do caso. Nenhum jornalista se preocupou em checar com cientistas brasileiros a possibilidade de uma vacina com vírus ativo espalhar uma epidemia. As refutações publicadas às acusações foram as mesmas que circularam na imprensa internacional e na internet e partiam, em grande parte, de colegas de Neel e Chagnon.

Boa parte da população ianomâmi ocupa o solo brasileiro e vive em conflito constante com garimpeiros, e não entre si. Muitos são os trabalhos de cientistas brasileiros que falam da cultura ianomâmi e, entre eles, praticamente ninguém concorda com a idéia de que os ianomâmis são um "povo feroz". A refutação ao trabalho de Chagnon é antiga, como também são os questionamentos quanto à ética de Chagnon no trabalho de campo.

Talvez único veículo que tenha procurado expor a repercussão do caso entre a comunidade científica, a revista Veja acabou errando feio ao interpretar a polêmica como uma simples disputa acadêmica. Em reportagem publicada em 4 de outubro, intitulada "A tribo feroz da antropologia", Veja mostra ter buscado informações com três pesquisadores: Jacques Lizot, antropólogo francês também acusado pelo livro de Tierney (de aproveitar-se sexualmente de garotos ianomâmis); Alcida Ramos, antropóloga da UnB que vem apontando a falta de ética do trabalho de Chagnon há mais de 10 anos; e Francisco Salzano, geneticista que foi amigo pessoal de James Neel e participou de suas pesquisas na Amazônia. No entanto, seguindo a interpretação do caso feita por parte da imprensa internacional, Veja trata a polêmica de forma irônica, brincando com frases do tipo: "A dificuldade nessa lufa-lufa é saber quem é mais feroz e primitivo, os índios ou os antropólogos."

Nem antropólogos nem índios são primitivos. Na verdade, o conceito "primitivo" foi há muito abandonado por todas as ciências humanas. É um conceito evolucionista e etnocêntrico. Chamar determinados povos de primitivos significa acreditar que as sociedades humanas seguem uma linha histórica de evolução. É dizer que a sociedade ocidental, baseada no desenvolvimento tecnológico, apresenta estágio superior de evolução se comparada a uma sociedade como a ianomâmi. Na verdade, outras sociedades, como as diversas sociedades indígenas, estão baseadas em outros critérios de desenvolvimento. Não estão inseridas dentro da mesma lógica de acumulação capitalista, de desenvolvimento material e tecnológico. Ao chamar os ianomâmis de "primitivos", gera-se a idéia de que eles estão em estágio de evolução inferior ao nosso, que eles são uma visão do nosso passado. "Não há tribo mais estudada, pois ela se tornou o modelo do que devem ter sido as culturas da Idade da Pedra", diz Veja.

Armadilha conhecida

Esse é o tipo de idéia evolucionista presente no trabalho de Chagnon (Yanomami: the fierce people, publicado originalmente em 1968), e que fez dele um cientista altamente criticado na antropologia. Os conceitos evolucionistas estiveram presentes também em artigos da imprensa americana. No entanto, os EUA, apesar de serem um dos centros importantes da antropologia mundial (com autores influentes como Franz Boas, Clifford Geertz, Marshall Sahlins) são o último reduto de qualquer estudo acadêmico de caráter evolucionista, o único lugar em que a corrente evolucionista ainda é levada a sério. O Brasil tem uma das antropologias mais prestigiadas do mundo e, aqui, um conceito como esse soa como desinformação e preconceito.

Mesmo esquecendo-se o uso indevido do termo "primitivo" por Veja, há algo de leviano na reportagem. A polêmica não é um mero "lufa-lufa" acadêmico. As denúncias envolvem a morte de milhares de pessoas, que podem ter sido vítimas de um experimento que se assemelha às piores práticas nazistas. Mesmo que as acusações quanto à aplicação da vacina não sejam verdadeiras, a caracterização dos ianomâmis como um "povo feroz" (que se difundiu no senso comum americano) foi usada por muitos (garimpeiros principalmente) como justificativa para verdadeiros massacres dos ianomâmis, segundo vêm denunciando cientistas como Bruce Albert e Alcida Ramos. Num tribunal, alegar legítima defesa contra alguém que já é conhecido por sua violência fica muito mais fácil.

Mais do que ninguém, a imprensa brasileira tem a obrigação de realizar investigação decente do caso. Ele é, claramente, um episódio de violação dos direitos humanos que vai além do noticiário científico, apesar de estarem inegavelmente ligados. A antropologia e os antropólogos têm, é verdade, o cotidiano de pesquisa e militância misturados. Mas procurar desqualificar a interpretação feita pela antropologia das sociedades indígenas, como Veja faz, sob o argumento de que elas estão a serviço da militância, é puro desrespeito pela ciência. A caracterização dos índios como "gente inocente e pacífica" é uma armadilha conhecida da antropologia que antropólogos sabem evitar.

Todo o caso envolve uma reflexão séria sobre a ética e as conseqüências do trabalho científico. Tomar a polêmica como simples disputa acadêmica é ignorar pessoas que vivem em território brasileiro e têm, diariamente, seus direitos mais básicos ameaçados.

(*) Antropólogo <rae@unicamp.cbr>

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