TV AO VIVO
Paulo José Cunha (*)
Pouca gente ficou sabendo, e por isso o assunto não mereceu uma vírgula de comentário. Eu, pelo menos, não vi, ouvi nem li nada a respeito em parte alguma. Pudera. Saiu n?O Dia, jornal popular carioca cuja tiragem é inversamente proporcional ao seu status. Mas, há dois meses, os repórteres João Antonio Barros e Isabela Kopke descobriram que poderia ter sido outro o desfecho do seqüestro do ônibus 174 no Dia dos Namorados, no ano passado. Apuraram que provavelmente só o bandido estaria morto e a professora Geisa Firmo Gonçalves estaria aí para contar a história.
Os repórteres ouviram do próprio comandante da operação, coronel José de Oliveira Penteado, a revelação de que a transmissão ao vivo pela televisão interferiu diretamente no desfecho. Segundo a reportagem, o seqüestrador esteve várias vezes na mira dos atiradores de elite, "mas eles não apertaram o gatilho por um motivo: o tiro iria acertar o nariz do bandido e sair pela nuca. A imagem captada pelas TVs que transmitiam ao vivo o drama do 174 seria a cabeça de Sandro explodindo. Com medo da mancha de sangue respingando no governo, as ordens de Josias Quintal, secretário de segurança, para ?detonar? o seqüestrador foram abortadas".
No final de julho, a questão da cobertura ao vivo de situações de conflito com risco de morte voltou ao noticiário, desta vez com a transmissão, às 15 horas, do assassinato de presos durante rebelião no presídio de Osasco, São Paulo. Imagens captadas pelo helicóptero da TV Record mostraram dois presos sendo violentamente espancados e golpeados com pedras e barras de ferro, em meio a uma poça de sangue. Eles ficaram imóveis logo após os primeiros golpes mas, mesmo assim, continuaram a ser atingidos. As imagens foram transmitidas ininterruptamente durante 20 minutos. O episódio levou a secretária nacional de Justiça, Elizabeth Sussekind, a defender a proibição da cobertura ao vivo de motins, e enviou estudo a técnicos do Ministério da Justiça para tornar essa intervenção possível. "Em momentos de crise ? disse ela ? a imprensa não presta serviço produtivo. Ela exacerba os ânimos dos presos, que tomam determinadas atitudes, que não tomariam, porque estão sendo filmados."
Sete abutres
No início da década de 90, fui escalado para cobrir o conflito armado resultante da retirada dos invasores de um terreno em Águas Lindas, município goiano próximo a Brasília. Quando nossa equipe se aproximou do local, foi possível perceber que polícia e invasores, depois das escaramuças iniciais, haviam suspendido as hostilidades e iniciavam negociações. Dava para ouvir o silêncio tenso que se abate nessas ocasiões. Mas, mal o carro de reportagem da Rede Globo foi identificado, os ânimos se acirraram. Começou uma gritaria próxima da histeria. Pedras começaram a ser lançadas contra a tropa armada, que revidou com tiros. Três pessoas ficaram feridas. Nosso carro foi cercado pelos invasores que, ao mesmo tempo em que identificavam nele a garantia da presença de testemunhas, partiram para a agressão, batendo com paus e pedras e tentando virá-lo. De vidros fechados, pedindo calma por meio de gestos, só depois de meia hora conseguimos uma trégua que nos permitiu sair com alguma segurança para começar a cobertura.
Cito os três episódios apenas para reforçar a tese de que a imprensa, particularmente a televisão, não é apenas espectadora privilegiada dos acontecimentos. Ela é atriz, e vem se tornando cada vez mais a atriz principal. Sua simples presença no cenário tem influência direta no desfecho. Só isso ? quando menos pelo risco da exibição de cenas grotescas ou de extrema violência ? justifica um (auto)controle das transmissões ao vivo de conflitos armados. Antes que os plantonistas da liberdade de imprensa (por vezes na posição de inocentes úteis manipulados pelos que se prevalecem desse direito para elevar a audiência) confundam controle com censura e me exponham à execração pública, devo advertir que informação pouco ou nada tem a ver com liberdade para escandalizar a audiência. É possível, sim, informar em tempo real sobre o andamento de um conflito sem, necessariamente, expor a audiência ao risco de assistir à explosão da nuca de um bandido. Esse papo de que "o telespectador tem o direito de assistir ao que quiser" não passa, muitas vezes, de escudo para justificar qualquer atrocidade que eleve tiragens ou níveis de audiência.
Curioso como aquele jornalista inescrupuloso protagonizado por Kirk Douglas em A Montanha dos Sete Abutres, rodado em 1950, continua atual. E o discurso contra a utilização da mídia para alavancar audiência permanece o mesmo. É preciso considerar que existe sempre o interesse social por trás de qualquer informação. Não é possível passar por cima de nada disso em nome da liberdade de imprensa ou ? pior ainda ? em nome da audiência. Da mesma forma como o Exército não tem o direito de "arranhar direitos individuais" em nome de seus "elevados" objetivos. Falando em nome próprio mas vocalizando o que já ouvi em vários encontros sobre essa questão, não dou a ninguém o direito de mostrar à minha filha de 9 anos, às três da tarde, quando estou no trabalho, as cenas reais (ou mesmo ficcionais) de dois seres humanos sendo espancados até a morte. E até admito que a polícia poderia ter explodido a cabeça do seqüestrador do 174 para salvar a vida da professora Geisa. Trata-se de ação policial, necessária em certos casos. Mas, necessariamente, as imagens de uma ação como essa não precisam ser exibidas em tempo real, sobretudo ao público infantil. Em duas palavras: é possível exercer na plenitude a liberdade de imprensa, sim. E é possível informar, sem, necessariamente, chocar a audiência.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de telejornalismo. Dirige o Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>