Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Invasões em Portugal, a corte na América e o CB

HIPÓLITO E SEU JORNAL

Lúcia Maria Bastos P. Neves (*)


A invasão francesa, que tem prostrados os governos da Europa, e abalada até aos fundamentos a antiga ordem e relação política dos Estados europeus, toma de dia em dia mais horroroso aspecto. Um crime produz outro e as perversas intenções dos invasores, não se podendo sustentar sem acumular males sobre males, têm reduzido o continente a não ter esperanças algumas de gozar tão cedo a tranqüilidade, que, noutros tempos, muitas vezes existiu por longos intervalos, apesar da oposição de interesses das potências da Europa. [CB, 1: 57]


Assim se expressava Hipólito José da Costa, no primeiro número de seu periódico publicado em Londres ? o Correio Braziliense ?, em artigo que comentava e justificava a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, por força da invasão de Portugal por tropas francesas. Favorável à Inglaterra e contrário a Napoleão Bonaparte, o redator não deixou de refletir ao longo de seu jornal as principais alterações ocorridas na ordem política européia e americana, que passaram a contestar os tradicionais valores do Antigo Regime, ainda em vigor na maioria das sociedades, como havia feito a Revolução Francesa, emblema de toda aquela época.

De início, sob a forma de “pensamentos vagos”, mais tarde tomando uma atitude cada vez mais crítica quanto às práticas políticas da administração de d. João no Brasil, Hipólito apontava para a incapacidade dessas medidas de atender aos anseios de alguém que partilhava o sonho de um Império luso-brasileiro, renovado com a sua geração, aquela que Kenneth Maxwell denominou de “geração de 1790”. [Kenneth Maxwell, “A geração de 1790 e a idéia do Império luso-brasileiro”, em Idem, Chocolate, piratas e outros malandros. Ensaios tropicais (São Paulo: Paz e Terra, 1999), pp. 157-207.]

Este artigo, ao explorar a linguagem política utilizada por Hipólito em seu jornal até o momento da elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves, pretende analisar suas idéias políticas, como a defesa intransigente das liberdades individuais e da Monarquia como forma de governo, o papel do intelectual enquanto um guia da opinião pública e a visão de Império luso-brasileiro. O Correio Braziliense foi utilizado como um texto de caráter político que formula questões e as responde a partir de um quadro mental de noções e princípios, que, em certa medida, aceitam, contestam ou repelem idéias e convenções predominantes num determinado momento. [Ver Melvin Ritcher, “Reconstructing the History of Political Languages: Pocock, Skinner and the Geschichtliche Grundbegriffe“, History and Theory, Middletown, 29, 1 (1990), pp. 38-70, esp. p. 41. Ver também Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), pp. 9-14.] Contrastando essa linguagem política com as práticas que lhe são implícitas, em função da dinâmica da própria sociedade em que surgiram, pretende-se vislumbrar os argumentos a que Hipólito da Costa recorreu para analisar esse inusitado momento de construção de um Império no Brasil, a partir de 1808.

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No final do século XVIII, Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e Ultramar e presidente do Real Erário (1796-1803), cercou-se de inúmeros naturais do Brasil formados em Coimbra, cujas atuações a serviço da Coroa portuguesa tornaram-se cada vez mais evidentes nessa conjuntura, tanto através das comissões de que eram encarregados, quanto através das memórias que lhe dirigiam. Dentre eles, podem-se assinalar José Bonifácio de Andrada e Silva, Manuel de Arruda Câmara, José Vieira Couto, o bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho e Hipólito José da Costa. Consciente da independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa, d. Rodrigo pretendia, de um lado, favorecer a elaboração e a difusão entre as elites intelectuais de um plano de reformas para o Império português, que visasse a reduzir a insatisfação da população colonial com os impostos e gravames de todo o tipo colocados pela administração metropolitana. De outro, considerando a importância do Brasil para a sobrevivência econômica e política de Portugal, ele imaginava a criação de um grande Império luso-brasileiro, em que o português “nascido nas quatro partes do mundo” se sentisse unicamente e não mais do que português. [Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos políticos, económicos e financeiros, 1783-1811 (Intr. e dir. Andrée Mansuy Dinis-Silva. 2 vols. Lisboa: Banco de Portugal, 1993), p. 49.]

Inaugurava-se, assim, uma nova prática na esfera política, em que se estabelecia um círculo de intelectuais, provenientes de diferentes segmentos sociais, que procuravam organizar uma discussão permanente entre pessoas privadas, sobre a necessidade de renovarem-se as instituições políticas, sociais e econômicas do mundo luso-brasileiro. Esses indivíduos, instruídos no espírito das reformas pombalinas, aproveitaram a penetração das novas idéias durante o reinado de d. Maria I para desenvolver um sentido prático bastante agudo. Na ótica das Luzes, acreditavam que o meio para atingir seus objetivos consistia na adoção de medidas de caráter cultural e, particularmente, pedagógico. Inseridos no mundo do Antigo Regime, porém, esses homens esclarecidos não aceitavam mudanças bruscas, advindas de uma revolução, e propunham, em seu lugar, saudáveis reformas, que não alterassem a ordem vigente profundamente.

Nessas circunstâncias, o final do Setecentos português também pode ser encarado, apesar de suas limitações, como o período da constituição de uma certa esfera pública literária, no sentido que se depreende do trabalho de Jurgen Habermas. Ainda que hesitante entre o apego ao Antigo Regime e o desejo de mudanças lentas e graduais, Portugal assistiu à formação de novos espaços para a divulgação e a discussão do pensamento político num sentido amplo. Instituições como a própria Universidade de Coimbra, a Academia Real de Ciências de Lisboa, os círculos aristocratas ? como o do próprio d. Rodrigo ?, as lojas maçônicas e também as sociedades literárias, os salões, os clubes, os cafés converteram-se em instâncias de sociabilidade, nas quais se exercitou um discurso propriamente político, porquanto público. [Jurgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984). Definição à p. 42. Para a discussão sobre esfera pública no Antigo Regime, ver Dena Goodman, “Public Sphere and Private Life: toward a synthesis of current historiographical approaches to the Old Regime”, History and Theory, Middletown, 31, 1 (1992), pp. 1-20; Roger Chartier, Espacio publico, critica y desacralización en siglo XVIII. Los origenes de la Revolución francesa (Barcelona: Gedisa Editorial, 1995).] No entanto, velado pela sombra dos agentes do intendente de Polícia Pina Manique, pela tradição das Luzes mitigadas e pelos próprios acontecimentos, o discurso que poderia resultar desse processo permaneceu em larga medida latente até 1820, quando a eclosão do movimento constitucional português revelou toda sua extensão e intensidade. De qualquer forma, nesse contexto, em que o conhecimento se transformou em ferramenta dos homens para organizarem-se a si mesmos, a palavra escrita converteu-se em arma de combate e os intelectuais passaram a ter o seu lugar reconhecido, seja como críticos, seja como auxiliares dos poderes estabelecidos. E é nele que se pode inserir a trajetória de Hipólito da Costa.

Ele ingressou na carreira pública sob a proteção de Rodrigo de Sousa Coutinho, com a incumbência, em 1798, de uma viagem aos Estados Unidos e ao México, a fim de estudar a cultura do linho-cânhamo, do tabaco, do algodão, do índigo e da cochinilha e a sua aplicação ao Brasil. Embora não tenha alcançado seus objetivos oficiais, essa viagem permitiu a Hipólito um contato mais íntimo com as idéias de liberdade. Ao retornar a Portugal, em fins de 1800, assumiu o cargo de diretor da Imprensa Régia, trabalhando na promoção de atividades culturais no governo de d. João, sob a égide de d. Rodrigo, que, dois anos mais tarde, o enviou a Londres em outra missão oficial ? comprar livros para a Biblioteca Pública, além de máquinas e aparelhos tipográficos. Durante essa estadia na Inglaterra, tentou filiar as lojas maçônicas portuguesas ao Grande Oriente de Londres. Este último objetivo não obteve êxito, mas o envolvimento com a Maçonaria, ao regressar a Portugal, acarretou sua prisão pela Inquisição. Era o término de sua vida enquanto homem de Estado. Apesar disso, em 1805, conseguiu fugir dos cárceres do Santo Ofício de Lisboa e estabeleceu-se em Londres, onde deu início, três anos depois, ao Correio Braziliense. [Para a trajetória de Hipólito da Costa, cf. Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (2 vols. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957); Carlos Rizzini, Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957); João Pedro Rosa Ferreira, O jornalismo na emigração. Ideologia e política no Correio Braziliense, 1808-1822 (Lisboa: Instituto Nacional de investigação Científica, 1992); Sergio Goes de Paula (org.), Hipólito José da Costa (São Paulo: Editora 34, 2001), pp. 13-36; Lúcia Maria Bastos P. Neves, “Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça”, em Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.), Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil (Lisboa: Verbo, 1994), pp. 537-38.]

Lançava, dessa forma, seu projeto de aclarar seus compatriotas “sobre fatos políticos, civis e literários da Europa”. Justificava seu objetivo em virtude da falta de liberdade de imprensa em Portugal e da ausência de estabelecimentos tipográficos em sua colônia na América. Esse primeiro jornal escrito por um brasileiro, caracterizava-se, no dizer de Rizzini, por ser um periódico “informativo, doutrinário e pugnaz”, ao contrário da posterior Gazeta do Rio de Janeiro, a primeira a ser estampada no Brasil, em setembro de 1808, feita à semelhança das gazetas do Antigo Regime, que se limitavam a repetir os atos oficiais, a copiar trechos das folhas européias, quando conveniente ao governo, e a fazer inumeráveis elogios à família real. O Correio Braziliense despertava a opinião pública para os fatos recentes, excitava a curiosidade dos povos, além de traçar “as melhorias das ciências, das artes, e numa palavra de tudo aquilo que pode ser útil à sociedade em geral” [CB, 1: 4]. [Cf. Carlos Rizzini, O livro, o jornal e a tipografia no Brasil: 1500-1822 (Rio de Janeiro: Kosmos, 1945), p. 341. Para uma discussão sobre a imprensa periódica no Brasil, entre 1808 e 1821, ver Isabel Lustosa, Insultos impressos. A guerra dos jornalistas na independência, 1821-1823 (São Paulo: Companhia das Letras, 2000). Lúcia Maria Bastos P. Neves, “A ?guerra das penas?: os impressos políticos e a independência do Brasil”, Tempo, Rio de Janeiro, 8 (1999), pp. 41-65.]

Partilhando os valores e atitudes comuns que se manifestavam na “República das Letras”, Hipólito acreditava que


O primeiro dever do homem em sociedade é de ser útil aos membros dela; e cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral duma sociedade, vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes, que ele espalha, tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. [CB, 1: 3]


O saber adquiria um sentido social e político, cabendo ao homem de letras uma clara preocupação de informar o público sobre os principais acontecimentos políticos ou sobre as grandes questões de época. O autor devia explicar seu posicionamento sobre o assunto, a fim de que suas opiniões e ensinamentos influenciassem o público leitor. Afinal, como afirmava Hipólito da Costa, “este tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas”, pois, “munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada”, apresentam “os fatos dos momentos, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjeturas sobre o futuro” [CB, 1: 3].

Para tanto, imbuía-se da perspectiva do jornal como um documento de época, capaz de fornecer pistas de um passado ao presente ? “estes jornais formam a história do tempo; estes fatos são depois transferidos para os registros anuais, e daí o copiam os historiadores para as histórias, que serão transmitidas à posteridade” [CB, 1: 321]. Demonstrava, assim, que as gazetas transformavam-se em “registros diários em que se lançam as memórias do que vai acontecendo e que servem, ao depois, para os fundamentos da história” [CB, 24: 528]. Para atingir tal objetivo, buscava fontes diversificadas, cujos relatos apresentassem duas visões distintas de um mesmo fato, para que o público pudesse melhor tirar suas conclusões.


A série de boletins franceses, que transcrevemos por inteiro, dão uma conta circunstanciada dos exércitos desta nação, na guerra da Espanha; e junto a eles copiamos as notícias dos mesmos acontecimentos, referidos pelos espanhóis, para que, ouvindo ambas as partes, se possa julgar melhor dos resultados. [CB, 1: 643]

Houve tempo, em que nos vimos obrigados a fazer no nosso periódico dois artigos diferentes sobre a Espanha, a saber, Espanha por Fernando VII e Espanha pelos franceses. Agora, faremos a mesma classificação nas notícias da França, visto que aquela nação está ocupada por duas forças armadas e com dois partidos distintos. [Ao final, referia-se aos partidos de Napoleão Bonaparte e dos Bourbons.] [CB, 12: 463]


Por conseguinte, uma boa parte de seu periódico destinava-se à transcrição de documentos oficiais.


Temos coligido todos os documentos oficiais que dizem respeito a esta importante revolução da Espanha; e ainda que pareça tediosa a leitura de papéis que trazem uma data antiga, contudo, pouca reflexão será bastante para mostrar, que estes importantes documentos sendo todos conservados, juntos às mais notícias do tempo, que lhe dizem respeito, formarão um sistema completo da importantíssima história desta revolução da Espanha, que se intenta exibir no Correio Braziliense, para as pessoas, que desejarem conservar esta coleção, como registro da história do tempo. [CB, 1: 646]


Como, no entanto, vislumbrava um sentido moderno de conceber a história, como aliás já notou Mecenas Dourado [M. Dourado, op. cit., vol. 2, pp. 584-85.], ultrapassando, com o emprego da crítica, a simples compilação de fatos na tradição dos eruditos, acrescentava suas reflexões sobre os principais assuntos do mês que passara como uma explicação dos acontecimentos, unindo o registro dos fatos aos “raciocínios do compilador”. Era um meio de alertar o leitor para a “verdade dos fatos”, informando-a aos contemporâneos, transmitindo-a aos vindouros e contribuindo para o abandono de uma imagem fantasiosa do passado [CB, 1: 594-96].

Essa agudeza de espírito, aliada a uma atitude intelectual permeada pelas Luzes, viabilizava, em suas páginas, a discussão ampla sobre temas diversos inerentes ao momento que vivenciava. Em todos os argumentos utilizados, Hipólito da Costa demonstrava sua filiação aos autores que haviam iluminado o mundo civilizado, selecionando-os entre os que sempre procuraram modernizar a sociedade através da ordem e do progresso, valorizando os costumes, as práticas políticas e a tradição. Em razão de seu horror à Revolução Francesa, já que esta teria levado os franceses e o mundo ao caos, privilegiou os autores ingleses, em particular Edmund Burke, cuja obra fundamental, Reflexões sobre a Revolução Francesa, previu “as monstruosidades”, que resultariam da “informe massa de idéias” dos franceses. “Não que Burke, e todos os homens sábios, não conhecessem que havia abusos nos governos”, que cabia remediar; no entanto, tal remédio “não havia nunca de provir dos franceses” [CB, 3: 153]. Assimilou, assim, desse autor, a idéia de uma perfeita continuidade entre o passado e o presente, repudiando a revolução, e almejando “reformas úteis”, desde que não fossem “feitas pelo povo”, das quais sempre decorreriam “más conseqüências” [CB, 6: 573].

Se, de um lado, retirava de Burke as idéias de ordem e de desenvolvimento gradual e reformista da sociedade, de outro, absorvia de Montesquieu, a quem considerava o mais profundo político da França, a importância da observância das leis e das formas de governo. Aceitava a visão de um governo representativo, regido por uma “Constituição política dos Estados, isto é, os estabelecimentos de regras fixas e imutáveis, segundo as quais os legisladores promulguem suas leis e os governantes administrem ou façam administrar a justiça”. E acreditava que tais idéias estavam sendo difundidas nos últimos tempos entre vários soberanos, que adotavam constituições para “o bom governo de seus súditos” [CB, 14: 718]. [Cf. ainda, CB, 3: 142.]

Não deixou, ainda, de fazer referências a autores como o barão de Bielfeld e o marquês de Beccaria, proibidos em Portugal, mas que a “Europa respeitava como luminares” do século. O primeiro, autor de Instituições políticas (1760-63), foi também utilizado para justificar a sociedade dos franco-mações [CB, 3: 275]. O segundo, professor de direito e de economia em Milão, conhecido por seu Tratado dos delitos e das penas (1764), em que condenava a pena capital e a tortura, além de preconizar a prevenção do crime pela educação, destacava-se, na visão do redator do Correio, por seus princípios de direito criminal que, embora tenazmente combatidos, “servi[ram] de tema a outros muitos escritos do mesmo gênio que se propagaram por toda a Europa”, sendo ainda fonte inspiradora para o questionamento das execuções públicas e do suplício [CB, 14: 716]. Em particular, tais idéias faziam-se presentes nas críticas de Hipólito dirigidas à manutenção da Inquisição em Portugal, no início do século XIX. Era com horror que ele, outrora preso naquelas “abomináveis masmorras”, retratava a arbitrariedade dos governadores do Reino, que ainda julgavam conveniente mandar nelas prender “muitos homens respeitáveis por suas luzes, seus talentos e seu patriotismo”, muitos deles vítimas inocentes, que ali ficavam meses, sem lhes fazer processo [CB, 3: 105].

Da mesma forma, voltou-se para a economia política, “um estudo do homem e dos homens”, como um instrumento indispensável aos governantes, uma vez que o “caráter dos indivíduos estava intimamente ligado com seus interesses pecuniários”, assim como “os costumes de uma nação, os seus usos, o seu modo de pensar e a sua crença estão ligados à economia política”. Por conseguinte, via a necessidade de um conhecimento que, ultrapassando a simples descrição das leis, avaliasse os meios pelos quais essas eram aplicadas [CB, 16: 341-42]. Embora educado nas idéias do mercantilismo português e embora acautelasse seus leitores quanto à oposição que as doutrinas novas dessa “parte da ciência do governo” ainda poderia sofrer, Hipólito absorveu as concepções do liberalismo econômico de Adam Smith em A riqueza das nações, cujo ideário serviu de referencial para seu combate ao sistema colonial e à idéia de monopólios, e publicou, em sua quase totalidade, ao longo dos anos 1816 a 1820, no Correio Braziliense, a obra do economista suíço Simonde de Sismondi intitulada Princípios de economia política aplicados à legislação do comércio (1813). [Cf. M. Dourado, op. cit., vol. 1, pp. 587-92.]

Na seção Literatura e Ciências de seu jornal, predominam, regra geral, livros em inglês, sobre medicina, botânica, física, matemática, química, mineralogia e história, que traduziam a preocupação pragmática, partilhada pelos membros da elite ilustrada luso-brasileira, de buscar conhecimentos úteis que promovessem o progresso. Anunciava ainda algumas novidades, como a do dr. Reader, de Cork, que julgava ter “descoberto uma teoria mais razoável sobre a operação da luz e formação das cores”, distinta daquela de Newton; ou a de um professor de matemática de Edimburgo, que inventara um novo método de resolver as equações cúbicas [CB, 12: 365]. Afinal, julgava que “as especulações e indagações dos homens engenhosos são ilimitadas”, todas elas contribuindo “para a massa geral de associações intelectuais, de que se podem tirar conhecimentos” [CB, 12: 203].

No entanto, também podem ser encontradas menções a outras obras publicadas no período, que provavelmente contribuíram para moldar o pensamento de Hipólito da Costa. É o caso de Sobre Bonaparte, Bourbons e a necessidade de nos ajuntarmos ao redor de nossos legítimos príncipes para a felicidade da França e da Europa, de Chateaubriand, o primeiro trabalho que saía à luz “depois da catástrofe de Bonaparte” e que recebeu um irônico comentário do redator ? “Os franceses, em todos os períodos da revolução foram tão prontos em prodigalizar elogios aos tiranos, que os têm governado, enquanto estavam poderosos, como têm sido fáceis em os vituperar logo que os vêm abatidos” ? evidenciando sua crítica contundente ao caráter francês [CB, 12: 522]. E o trabalho de Benjamin Constant, De l?esprit de conquête et de l?usurpation dans leurs rapports avec la civilisation européenne (1814), cujo objetivo era apressar a queda de Napoleão e implantar em França uma Monarquia constitucional, definindo a tirania como anacrônica, pois era uma característica da Antiguidade conquistadora e escravista [CB, 12: 534]. No campo da história, há menção, entre outras, da obra do ex-jesuíta d. Ignacio Molina, Historia geographica, natural, civil do Chile, cujo original em italiano fora traduzido para o inglês, nos Estados Unidos; segundo Hipólito, Molina era “uma prova de que os americanos são capazes de pensar e de escrever”, pois, como natural do Chile, tinha meios de perceber e informar determinadas particularidades, que necessariamente escapariam aos autores europeus [CB, 3: 276].

Em termos gerais, as páginas do Correio revelam sobretudo o grau de informação que Hipólito detinha sobre os acontecimentos ocorridos no Brasil, como, por exemplo, o anúncio do estabelecimento de uma biblioteca pública na cidade da Bahia e da oficina tipográfica particular de Silva Serva, que iria imprimir uma nova gazeta ? A Idade d?Ouro. Ressaltava que essas iniciativas propiciavam efeitos multiplicadores, pois, no acervo dessa biblioteca, encontrar-se-iam, sem dúvida, “gazetas estrangeiras para serem lidas por todos os baianos”, que desejarem se “instruir do que passa pelo mundo” [CB, 7: 239].

Voltado sempre para o objetivo de “transmitir a uma nação longínqua e sossegada” os acontecimentos da outra parte do mundo, Hipólito da Costa procurava formular questões e argumentos que possibilitassem a análise da conjuntura histórica que vivenciava, tendo como pano de fundo uma Europa conturbada pela tormenta napoleônica, que alterava o tênue equilíbrio das grandes monarquias européias, assombrando as cabeças coroadas da Europa. Por isso, ao longo de todo o início do jornal, houve uma preocupação comum: o combate e a crítica ao “tirano” Napoleão Bonaparte, considerado, pelos homens de época como o continuador da Revolução francesa, cuja ambição levava ao estado da mais perfeita barbaridade, e que era descrito ora como o “déspota corso” [CB, 1: 245], ora como o “novo Átila” [CB, 3: 103], o “aniilador de todos os direitos dos homens”, e até como um ente “abominável e desprezível” [CB, 2: 259], comparável mesmo a Satanás. Em 1814, quando da deposição do imperador dos franceses, Hipólito sintetizou sua opinião:


Bonaparte assumindo as rédeas do governo restabeleceu os negócios, reorganizou o exército, lisonjeou a vã glória dos franceses com algumas vitórias e fez-se popular, mas desde logo formou o plano de acabar de todo com a República, e quando se achou com seu poder firme, tirou a máscara, usurpou o poder soberano; e começou a pôr em prática todos os estratagemas e valer-se de todos os meios opressivos, porque um usurpador, ou um tirano se vê sempre obrigado a manter-se no trono. Guerras injustas para dar empregos às tropas; impostos onerosos; prisões arbitrárias; execuções secretas; alianças perniciosas à França e vantajosas ao déspota; monopólio das ciências, restrições do pensar, falar e escrever sobre negócios públicos foram conseqüências necessárias do seu sistema. [CB, 12: 613]


No fundo, ao limitar as liberdades individuais para que os seus vassalos ficassem na ignorância, ao atacar Estados inocentes e pacíficos, ao desrespeitar o direito das gentes, com sua política de bloqueios, Napoleão construíra um despotismo semelhante à tirania existente no Antigo Regime. Até mesmo os benefícios praticados pelo imperador ? “a abolição da Inquisição, dos direitos feudais, da desigualdade das imposições e dos tributos” ? não passavam de meios para oferecer ao povo alguma tentação, a fim de que este consentisse nas mudanças arbitrárias que desejava implantar [CB, 2: 76]. Da mesma forma, as tropas francesas eram acusadas de cometer “atrocidades indignas de homens”, pois “roubam, insultam e matam impunemente os honrados habitantes” e “ultrajam a religião”, mutilando as imagens sagradas [CB, 1: 216].

Se Bonaparte era o alvo preferencial de suas críticas, a opinião de Hipólito sobre o povo francês não era mais favorável. Ele tinha feito tudo quanto era possível “por se desacreditar, roubando, assassinando e cometendo por toda a parte onde vão, toda a sorte de crimes” e inventara “falsidades para favorecer a sua causa”. Tais atos demonstravam, além disso, a “volubilidade do caráter francês”, pois enquanto Napoleão dispusera de algum engodo para divertir os franceses, estes o apoiaram. No entanto, quando o imperador “não teve mais que publicar senão derrotas, a monotonia desgostou os franceses”, que passaram a gritar “Viva os Bourbons”; esta novidade, “que naturalmente dá expectações de nova coroação, luminárias etc. levará após si a nação, porque tal é o seu caráter, como exuberante tem mostrado, durante os vinte anos passados” [CB, 12: 466-67].

Crítico contundente da França e dos franceses, em virtude das mazelas que julgava essa nação ter espalhado pelo continente europeu, nada mais natural do que Hipólito situar-se, em compensação, favoravelmente à Inglaterra, justificando e exaltando, em geral, sua política, sua economia, suas liberdades individuais e seu sistema de justiça. Numa curiosa comparação entre os dois países, o redator do Correio mostrava com clareza sua opinião:


Na França é um governo despótico quem fala; na Inglaterra, é um governo moderado. Na França diz o governo o que quer, e só o que quer; na Inglaterra, há que possa perguntar aos ministros, por qualquer circunstância, que se omita naquela sorte de exposições? Na França, ninguém se julga com direito de tal fazer. Na Inglaterra, o Parlamento exige sempre dos ministros as provas de suas asserções, tanto em matéria de fato como de argumento; na França, não há mais prova do que o ipse dixit do governo. Na Inglaterra, examinam-se estas contas com a maior severidade pelos membros do Parlamento, principalmente os da oposição, que não deixariam de notar qualquer falta que encontrassem na exposição do ministro; na França, nenhuma corporação se atreve a tal fazer. Na Inglaterra, imprimem-se estas contas e todos os jornalistas dão sobre elas a sua opinião aprovando-as ou condenando-as, aplaudindo-as, ou ridicularizando-as segundo seu juízo e, portanto, ficam expostas ao exame de toda a nação; na França, seria alta traição discutir ou duvidar de qualquer ponto daquela exposição. [CB, 10: 378]


Em conseqüência, durante as guerras napoleônicas, apoiou as medidas britânicas decretadas contra o Bloqueio Continental (1806), que restringiam as atividades dos países neutros, como os Estados Unidos, e defendeu também a expansão inglesa pelo mundo, uma vez que punha fim ao poder francês no Oriente e deixava o comércio inglês sem rival, nem inimigo. Em suas palavras, imbuídas do ideal ilustrado quanto ao trato mercantil como o principal meio de promover o progresso e a felicidade dos povos (cf. CB, 1: 56), o “comércio interno das ilhas britânicas e o comércio marítimo com suas imensas colônias são uma fonte de riquezas inapreciável, que a sua poderosa marinha protegerá sempre eficazmente”, capaz de transformar esse “imenso espaço” em enorme benefício para a indústria inglesa, e, por conseguinte, em benefício para o mundo [CB, 7: 770-71].

No episódio relacionado ao confisco de navios portugueses por parte do governo inglês, em inícios de 1808, considerou que esse ato decorria da medida, ainda que formal, do príncipe regente d. João, que mandara arrestar as propriedades inglesas em Lisboa. De forma semelhante, Hipólito acusou o ministro português em Londres, Domingos de Sousa Coutinho, de ineficácia na questão das propriedades portuguesas apresadas na Inglaterra na mesma ocasião, alegando que bastaria os portugueses prejudicados apresentarem uma petição ao Parlamento inglês para obterem uma justa compensação [para esta temática, cf. CB, 1, n?s 1, 3 e 5 (1808).], e, mais tarde, respondeu tenazmente às críticas que apareciam em alguns impressos lusos contra às atitudes do marechal Beresford, enquanto comandante das tropas, em relação ao exército português. Para ele, Beresford merecia “justos elogios”, pelo “zelo, atividades e discrição com que tem tratado em organizar o exército português”, uma vez que, “se o valor é dos portugueses que combatem, a disciplina é devida ao chefe que comanda” [CB, 5: 371].

Na realidade, para o redator do Correio Braziliense, a Inglaterra era “o país da Europa onde as ciências gozam da maior liberdade imaginável, onde a leitura é permitida, onde a propagação dos conhecimentos humanos encontra com a mais decidida proteção tanto no governo, como nos particulares; na Inglaterra, dizemos, é onde têm feito menos abalo as idéias revolucionárias, que não provieram de homens sábios, mas de ignorantes e fanáticos” [CB, 3: 617].

E foi esse clima de liberdade, usufruído pelos ingleses, que levou Hipólito, como tantos outros, a admirar as instituições britânicas e a estabelecer-se do outro lado da Mancha, “para poder, à sombra de suas sábias leis, dizer verdades, que é necessário que se publiquem, para confusão dos maus e escarmento dos vindouros”; liberdades, que, para o autor, não poderiam vir à luz em Portugal [CB, 4: 211].

Apesar disso, Hipólito da Costa ainda tinha “bem fundadas esperanças” de que o governo britânico inspirasse o governo português com seus conselhos, a fim de que adotasse aquelas “máximas de moderação, justiça e de liberdade constitucional que faz a felicidade dos ingleses” [CB, 6: 94], e que se tinham transferido para a América do Norte, em virtude do “espírito de liberdade civil e de tolerância religiosa” de que todos ali gozavam e que o haviam impressionado por ocasião de sua viagem aos Estados Unidos, no final do século XVIII [CB, 7: 769].

Foi, portanto, com essa perspectiva, favorável ao partido inglês, que Hipólito analisou a atitude extrema de d. João de transferir a Corte portuguesa para o Brasil, diante da impossibilidade de opor-se ao exército francês, considerado, então, invencível. Aventada nas condições difíceis da Restauração de 1640 pelo padre Antonio Vieira, a retirada da Corte para o Novo Mundo, além de contar com o apoio britânico, podia ser vista, naquele momento, como uma vitória diplomática contra Napoleão. Em comparação aos acontecimentos na Espanha, que reconhecera, como governo legal, os chefes revolucionários, sacrificando-lhes o seu comércio, privando-se da comunicação com suas colônias, em virtude da perda de suas esquadras, e paralisando a indústria dos espanhóis, “sem outro fim mais do que agradar à França”, acabando por assistir ao dilaceramento da Monarquia e da dinastia dos Bourbons, com a abdicação ao trono de seus soberanos, a mudança para o Brasil consistia de fato na única alternativa viável para a Coroa portuguesa. Para Hipólito, o monarca espanhol perdera, sobretudo, a honra. Por conseguinte, depois disto, “quem se atreverá a duvidar da sábia polícia do príncipe regente de Portugal, em mudar a sua Corte para o Brasil? Até agora podia imputar-se à ignorância, ou estupidez, os esforços que algumas pessoas têm feito (entre outros a populaça de Madri) de acusar de indiscreta a viagem do príncipe; mas agora se alguém persiste, em sustentar tal opinião, deve ser somente por obstinação, ou perversidade” [CB, 1: 58-62].

O que representava, contudo, tanto para Portugal quanto para o Brasil, a Corte na América? Na resposta de Hipólito, o desenvolvimento “das relações de família entre o Brasil e Portugal” prometia “aos dois Reinos irmãos uma série de prosperidades, que a imaginação do homem apenas pode traçar”. Embora, nas circunstâncias de então, a situação de Portugal fosse difícil de deslindar, seus habitantes deviam armar-se, arranjar suas finanças e assegurar um governo que tivesse a confiança da nação, a fim de que o estrangeiro fosse expulso de suas terras e a Monarquia pudesse voltar a brilhar como outrora. Já o Brasil, o maior beneficiado, passava a ter a presença do soberano, que devia cuidar da organização interna daquele Estado, substituindo o despotismo dos governos militares das capitanias por um governo civil bem regulado [CB, 2: 261; 1: 64-65].

Em sua perspectiva, o novo Império que se estruturava na América exigia sobretudo reformas, de modo que se evitassem “revoluções morais”, quer dizer, a “mudança repentina de qualquer país da forma de governo, da religião, das leis, ou dos costumes”, pois o que desejava eram “mudanças graduais e melhoramentos nas leis”, “ditadas pelas circunstâncias dos tempos” e que se impunham “pelos progressos de civilização” [CB, 16: 186]. Permanecia, assim, fiel aos princípios que assimilara anteriormente no círculo de Rodrigo de Sousa Coutinho. “Um monarca que possui tão extensos domínios, como é o soberano de Portugal, não deve fazer distinção entre província e província de seus Estados, resida a Corte onde residir. A Beira, o Algarve, o Brasil, a Índia devem todos ser considerados como partes integrantes do Império, devem evitar-se as odiosas diferenças de nome, de capitanias e províncias, e ainda mais se devem evitar as perniciosas conseqüências que desses errados nomes se seguem” [CB, 4: 433].

Todas as regiões, sem exceção, deveriam constituir-se em partes integrantes do Império, assumindo Portugal o papel de centro comercial e o Brasil, o de principal corpo produtivo, mas em condições de igualdade social com a Metrópole e liberado, enfim, da maior parte dos entraves característicos do sistema colonial.

Se d. Rodrigo propusera reformas em virtude do exemplo da independência dos Estados Unidos, Hipólito alertava agora para a urgência do término da situação colonial, dando-se “a todo o Império português uma forma de administração geral” [CB, 7: 131], a fim de evitarem-se maiores perigos, ou seja, a independência do Brasil, a exemplo do que sucedia, naquele momento, nas colônias espanholas. Na realidade, para o redator do Correio Braziliense, o odioso sistema colonial, “longe de unir os povos entre si”, servia “efetivamente de fazer de uma só nação duas nações diferentes, não somente com interesses diversos, mas até em muitos casos, opostos” [CB, 7: 129], demandando sua extinção a “abolição do governo militar, que é próprio só de conquista, ou de um Estado despótico, como são os asiáticos” [CB, 7: 240]. Por isso, a transferência da Corte portuguesa para o Brasil e a presença do soberano na América, auxiliado por “um ministro diplomático”, imbuído de “idéias liberais” [CB, 3: 660], como ainda considerava então d. Rodrigo, deveriam remediar os males resultantes da colonização e garantir “todas as esperanças do melhoramento daquele vasto império do Brasil” [CB, 3: 343].

Apesar disso, a situação da Monarquia portuguesa mostrava-se bastante fragilizada. Portugal, de um lado, desprovido da presença do soberano e mergulhado em inúmeras dificuldades econômicas, não tinha como não se sentir colônia nesse novo Império, contando, portanto, com o retorno da Corte às suas origens para remediar seus males. De outro, o Brasil continuava a padecer dos abusos de ministros e da perversidade dos funcionários da Monarquia, especialmente, dos governadores das capitanias, o que criava um clima propício para “uma guerra de opinião”, como entendia ser a “revolução da América” [CB, 8: 380]. De fato, em relação às colônias espanholas, Hipólito estava “persuadido de que a separação total da América, pelo que respeita à Europa, é um acontecimento que impreterivelmente deve aceder mais mês ou menos mês”, devendo o governo da Metrópole evitar a “efusão de sangue” que inevitavelmente ocorreria caso lhe opusesse obstáculos [CB, 3: 108]. Entretanto, se a independência da América espanhola explicava-se em função do despotismo com que sempre tinham sido tratadas, sendo consideradas aquelas importantes e poderosas regiões como “pequenas colônias em sua infância”, e se a ausência do soberano espanhol, com a ocupação do trono por um estrangeiro, José Bonaparte, servia de justificativa para a rebelião, na América portuguesa, a presença do rei e a esperança de que pudesse criar o “grande Império do Brasil”, como parte integrante da família portuguesa, gerava expectativas distintas [CB, 3: 563].

Pautado nessa crença de uma unidade luso-brasileira, causou-lhe dúvidas a carta de lei de 16 de dezembro de 1815, que “mudou a denominação de Estado do Brasil em Reino Unido”, ordenando que o corpo político debaixo do governo do prícipe regente d. João, fosse denominado doravante “Reino Unido de Portugal, do Brasil e de Algarves”. A mudança do nome de Estado para Reino apresentava alguma significação, ou seja, ao Brasil, até agora “considerado como mera colônia de portugueses”, por seu crescimento e importância, não pode mais “competir a denominação de colônia”. Hipólito, contudo, esperava que tal fato, longe de constituir “uma revolução ou convulsão moral”, era uma conseqüência natural das circunstâncias, pois “o nome de Reino, posto que Unido“, não deveria ser “capa de alguma intentada desunião” [CB, 16: 186; grifo no original].

Foi com o mesmo pensamento e objetivo que Hipólito da Costa censurou, inicialmente, o movimento de Pernambuco, em 1817, colocando por terra o sonho dos revolucionários em obter o seu auxílio. Apesar de concordar com os motivos da rebelião ? os abusos do governo da capitania de Pernambuco ?, considerava-a “obra do momento, parto da inconsideração e nunca sustentada por plano combinado”. Por tais motivos, de maneira bastante severa, considerava a atitude dos “demagogos pernambucanos” uma precipitação, um erro e uma injustiça, além de uma “total ignorância em matéria de governo, administração e modo de conduzir os negócios públicos”. Os revoltosos não mostraram “outra qualidade recomendável, senão a energia, que é filha do entusiasmo em todos os casos de revoluções”. Em consonância com seus princípios, acreditava que o movimento fora desastroso em todos os sentidos. Em primeiro lugar, a nação teria que pagar mais tributos para suprir as despesas efetuadas com as tropas a fim de debelar o movimento. Em segundo, ela deveria causar “um espírito de suspeita da parte do governo, que temerá toda e qualquer proposta de reforma, como sintoma de revolução”. Portanto, a revolução de 1817 trazia como principal conseqüência um atraso na implementação de muitos pontos de melhoria política do Império, possibilitando tanto a adoção de atos arbitrários, por parte dos governantes, quanto a eclosão de novos descontentamentos dos povos. O que poderia vir a significar a ruptura nos laços de união entre Brasil e Portugal [CB, 19: 105-06].

Ao contrário, de acordo com sua concepção sobre o Império português, herdeira da geração de 1790, julgava que os diferentes pontos da Monarquia deviam ajudar-se mutuamente uns aos outros, dando ao comércio de suas respectivas produções a possível preferência, enquanto que as relações comerciais com os países estrangeiros fossem as mais produtivas possíveis. Adepto, como d. Rodrigo [Cf. José Luís Cardoso, “Nas malhas do Império: a economia política e a política colonial de d. Rodrigo de Sousa Coutinho”, in Idem (coord.), A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro, 1790-1822 (Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001), pp. 63-109.], das idéias de Adam Smith, o redator do Correio julgava que, em matéria de comércio “quanto menos o governo se intromete, tanto melhor, porque ninguém conhece tão bem os seus interesses do que o negociante mesmo”, que não tinha outro objetivo “senão descobrir novos e secretos meios de vender ao estrangeiro por mais, e comprar por menos” [CB, 4: 188]. Criticava também qualquer tipo de monopólio, herança do antigo governo, pois julgava que importantes ramos do comércio português, como o tabaco, a pesca das baleias e a venda do sal no Brasil, reduzidos a monopólios, arruinaram em grande parte a indústria da nação (cf. CB, 12: 191, 511]. Alegava, ainda, que tais monopólios, arrendados a particulares, somente enriqueciam a esses últimos, desviando recursos do Erário Real. Exemplificava com o monopólio do tabaco, que havia mais de trinta anos era privativo de certas casas particulares, feito sem competidores [CB, 9: 395]. Da mesma forma, criticava o monopólio que se estabeleceu entre Portugal e Brasil, ao longo dos três séculos de colonização: “Sempre nos pareceu que eram injustos e impolíticos os regulamentos comerciais, tendentes a promover a prosperidade de uma parte da nação à custa de outra parte. O governo deve olhar toda a nação, como um pai para seus filhos, sem que nenhuma preferência de valido à custa da justiça, que os outros têm direito a esperar”. Neste sentido, julgava “odiosa a sujeição em que o comércio do Brasil se achava a respeito de Portugal” [CB, 12: 346-47].

Também, na minuciosa análise, que faz ao tratado de comércio estabelecido entre Brasil e Inglaterra em 1810, criticava diversos artigos porque, além do fato deles não estabelecerem uma perfeita reciprocidade, muitas de suas cláusulas eram prejudiciais às diferentes partes do império, ou seja, ao Brasil e Portugal. Em sua opinião, “o Brasil não podia fazer com a Inglaterra, tratado vantajoso”, em função de seu estágio no desenvolvimento da economia, prejudicado, inclusive, pelas inúmeras proibições determinadas pelo domínio colonial. Persuadia-se que o objetivo do acordo era não apenas “arruinar o comércio dos portugueses”, mas também “atacar as fontes da opulência da nação” [CB, 11: 214]. Atribuiu tais erros aos negociadores portugueses ? d. Domingos de Sousa Coutinho, embaixador em Londres, e d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Guerra e dos Estrangeiros ? que agiram, apenas, de acordo com os interesses britânicos, traindo ao príncipe e à nação portuguesa. [Há uma série de artigos no Correio sobre os tratados de 1810, desde o vol. 5 (1810) até o vol. 17 (1816), quando no Congresso de Viena há a possibilidade de uma revisão dos mesmos.]


O conde de Linhares [Rodrigo de Sousa Coutinho], de quem fizemos em outro tempo algum conceito, mas que de dia em dia nos dá novas provas de sua incapacidade para os negócios públicos, por mais que queiramos respeitar as suas boas qualidades, consentiu que passasse para o tratado de comércio como estipulação a legislação inglesa sobre os vasos portugueses, a que a ignorância em matérias comerciais de seu irmão tinha dado uma sanção mui pouco digna de um advogado dos direitos portugueses. Os dois irmãos, é natural, que se suportem assim um ao outro, mas os interesses da nação perecem. [CB, 6: 44]


Em abril de 1812, retomou suas críticas, com algumas observações sobre a “Memória do conde de Linhares”, publicada no próprio Correio. Nesse documento, d. Rodrigo procurara persuadir o soberano da existência da mais perfeita reciprocidade nas estipulações do tratado de 1810. Hipólito rebatia tais argumentos, provando existir uma “falta de sinceridade e o desígnio premeditado de iludir o povo português e de abusar de sua paciência e sofrimento” [CB, 8: 610-21]. Apesar de considerar a “Inglaterra o melhor aliado de Portugal”, julgava que “ser aliado não é ser colônia, ser amigo não é ser pupilo” [CB, 12: 141].

Além de denominar os acordos de 1810 de “Tratado de Roevides”, numa alusão a uma negociação infeliz realizada em 1777 entre Portugal e Espanha pelo pai dos dois homens públicos, após a morte de d. Rodrigo, ocorrida em janeiro de 1812, Hipólito mostrou uma aspereza e um desprezo ainda maior pelas iniciativas de seu antigo protetor:


Recebemos de Lisboa, um elogio, que ali se publicou pelos amigos do defunto conde de Linhares, em louvor de sua conduta. Os apaixonados do conde não podiam escolher um pior panegirista; assim, o orador é digno do objeto louvado. Para que andam os Roevides a desenterrar as cinzas daquele atordoado e provocar o exame de sua administração infeliz? A ruína total da Marinha portuguesa; a extinção do pouco crédito que ainda restava do Erário; a emigração forçada da Família Real, &, & são tudo acontecimentos tristes sucedidos durante a sua influência no governo. [CB, 9: 546]


Tal mudança de atitude decorreria apenas dos problemas relacionados aos tratados de 1810? Ou da desilusão com outras medidas adotadas por d. Rodrigo no Brasil, de caráter coercitivo, como a introdução da censura e a criação da Intendência da Polícia, impondo, inclusive, obstáculos à livre circulação do Correio Braziliense na América portuguesa? Ou, ainda, de um descontentamento com a família Sousa Coutinho em função do fracasso da negociação em torno da subscrição de 500 exemplares de jornal, em troca de uma linguagem mais moderada nas críticas sobre a política adotada para o Império português, proposta por d. Domingos, o conde de Funchal, que Hipólito atribuiu a d. Rodrigo? [Para a questão do suborno, ver M. Dourado, op. cit., pp. 372-91; e S. G. de Paula (org.), op. cit., pp. 33-35.]

Essas hipóteses não podem ser examinadas no âmbito deste artigo, mas se, de um lado, elas permitem vislumbrar a inserção de Hipólito em sua época, de outro, realçam uma das mais importantes facetas de seu pensamento, relacionada à percepção que tinha da mutação das idéias e do imaginário político que ocorria no mundo euro-americano. Estruturada sobre os princípios básicos do século XVII inglês e, em parte, sobre aqueles da Ilustração, a linguagem política de seus escritos procurou, na realidade, instruir os governantes e as elites quanto à aplicação dessas novidades ao Império português, opondo, sobretudo, os conceitos de governo absoluto e despotismo às propostas de Monarquia constitucional e liberalismo.

Para Hipólito, despotismo significava a negação das liberdades essenciais inerentes ao indivíduo, um dos traços básicos da política moderna. Despótico era “o partido governante” que “se inclinou a estabelecer esta concentração de poderes”, em virtude da “ambição e vaidade de se governar absolutamente e sem restrições” ? ou seja, um abuso de poder contra a razão, contra a lei [CB, 3: 176]. Utilizava, em geral, o sentido de despotismo concebido por Montesquieu, isto é, um governo “em que um só, sem lei, nem regra, tudo arrasta pela sua vontade e pelos seus caprichos”. Embora fosse nos impérios asiáticos que o filósofo fizera reinar o despotismo em toda a sua plenitude, Hipólito, como muitos outros, o transplantava para o mundo ocidental, num paradoxo justificado por Jean Starobinski. [A definição de Montesquieu, extraída do Espírito das leis, acha-se em José da Silva Lisboa, Roteiro brazílico ou Coleção de princípios e documentos de direito político em série de números (Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1822), parte 3, p. 39. Cf. J. Starobinski, Montesquieu (Paris: Seuil, 1989), pp. 58-59. ]

Embora algumas vezes confundisse despotismo e governo absoluto, considerando como absoluta a Monarquia em que não havia, ainda no sentido de Montesquieu, um equilíbrio dos poderes, o redator do Correio predominantemente caracterizou a Monarquia absoluta como um governo limitado “pela lei divina e pela lei natural”, o que não consentia que o monarca tivesse “o direito de obrar a seu capricho tudo quanto quiser bom ou mau, porque nem o direito natural, que estabelece os direitos majestáticos tal pode permitir, nem os povos que designaram a pessoa do monarca, para exercitar esses direitos majestáticos, tal coisa podiam ter em vista na sua designação” [CB, 3: 372-73]. [Para a visão de Montesquieu, cf. Fritz Hartung & R. Mousnier, “Quelques problèmes concernant la monarchie absolue”, em Relazioni del X Congresso Internazionale di Scienze Storiche (Florença: G. C. Sanconi, 1955 [col. Storia Moderna, vol. 4]), pp. 1-55.]

Para ele, portanto, o governo absoluto encontrava-se limitado pelas leis fundamentais de uma nação, não se admitindo a idéia de que o poder dos reis se originasse do “jure divino”, mas, sim, “do direito natural”; ou, em outros termos, da “essência e natureza da sociedade civil”, sendo tal poder inalterável e o mesmo em todas as nações [CB, 3: 372]. Reconhecia que “o governo regular e constitucional [era] preferível àquele em que est pro lege voluntas” [CB, 13: 718], ou seja, ao governo despótico, que, mesclado à idéia de tirania, resultava da usurpação do governo, da injustiça e da força pela vontade do soberano, cujo exemplo clássico recaía sobre o “usurpador” e “tirânico” Napoleão Bonaparte [CB, 12: 613]. Afinal, ninguém afirmaria “de boa fé, que o atual governo da França é menos despótico, ou mais conducente à felicidade pública que o governo de Luís XVI, ou reis de sua família” [CB, 9: 674].

No caso português, era difícil reconhecer uma figura de déspota na pessoa do rei d. João VI. Na realidade, “a Monarquia portuguesa” era “hereditária e absoluta, mas não despótica”, pois nela, ainda que se achassem “concentrados em uma só pessoa física e individual todos os poderes majestáticos”, também havia uma Constituição fundamental do Reino a limitá-los [CB, 3: 528]. Apesar disso, Hipólito não deixava de atribuir aos ministros portugueses a propensão para desvirtuar essa organização. Seus escritos concentravam-se na idéia de um despotismo ministerial, tanto no passado, quanto no momento presente. Assim, ao fazer uma comparação com a criação da Intendência Geral da Polícia, em Portugal, em 1760, e no Brasil, em 1808, conclui que a primeira “firmou mais o despotismo odioso do governo, durante o ministério do marquês de Pombal”, não havendo sentido algum de introduzir esse sistema de polícia no Brasil. Tal medida teria sido aconselhada “por algum rábula intrometido em políticas”, e “adotada por algum ministro, que não havendo tido jamais a prática de observar os países do mundo, onde se pode aprender a ciência do governo, nem ao menos quer ter o trabalho de estudar a história de seu país e comparar as épocas felizes da nação, com os tempos desgraçados, para lhe descobrir os motivos” [CB, 2: 638-39].

Não havia interesse, nem do monarca nem do povo, que a administração da justiça fosse violada e a liberdade do cidadão atacada, punindo-se os indivíduos sem as formalidades da lei. “Quem pois tem interesses nos processos arbitrários, chamados de polícia? Ministros ignorantes, ou maus e validos odiosos à nação”. Tal sistema de opressão e de ignorância somente poderia resultar do objetivo de tais ministros de firmar o seu próprio poder [CB, 2: 639]. Em artigo posterior, volta-se novamente contra d. Rodrigo, considerando como um ato despótico o ofício de 1811, enviado à Regência de Portugal, em que exigia maior vigilância da administração da justiça, frente ao pouco zelo “da classe da magistratura”, na época da invasão dos franceses. Hipólito acreditava ser essa uma “acusação geral”, imponderada, que não especificava fatos particulares [CB, 7: 773]. Da mesma forma, afirmava que os governadores do Reino em Lisboa, integrantes do Conselho dessa Regência, eram detentores de um poder absoluto, que, ao administrarem em nome do soberano, ficavam “constituídos de um poder de legislar, de impor tributos e suspender o curso das leis”, e deixavam o país desamparado [CB, 7: 130].

Relacionava, por fim, o despotismo ao governo colonial, uma vez que o sistema implantado no Brasil era “uma imitação do governo das conquistas de África pelos portugueses”. Tal atitude constituía-se num erro, porque, em política, “conquista e colônia são duas coisas mui diversas: as conquistas quase sempre se conservam com a forças das armas e governo militar, [enquanto] as colônias devem seguir a legislação da metrópole” [CB, 10: 203]. O Brasil, no entanto, era “administrado como a Pérsia, por sátrapas militares, a pior das formas de governo, que a imaginação do homem pode inventar” [CB, 2: 641]. Para ele, aos governadores das capitanias do Brasil cabia uma demasiada “porção de poder”, que lhes fornecia inúmeras ocasiões “de cometer abusos” e “atrocidades […] de maior conseqüência”, já que não havia instrumento algum que impusesse freios à ação inadequada desses administradores ? “conceder a um indivíduo poderes sem restrição, como têm os déspotas chamados governadores do Brasil, e supor que não empregarão esse poder em satisfazer as suas paixões, é supor uma contradição na natureza humana”. Estava persuadido, por conseguinte, da “necessidade absoluta” de proceder a uma reforma urgente do sistema de administração do Brasil, pois, caso contrário, o edifício poderia ruir [CB, 7: 542, 546]. No fundo, para Hipólito da Costa, a idéia de despotismo estava relacionada, assim, sobretudo aos atos arbitrários que decorriam do uso indiscriminado do poder por parte dos governantes e que configuravam um poder opressivo em relação à liberdade dos indivíduos, como a intolerância religiosa, a persistência da Inquisição e da censura e a ação da Intendência da Polícia.

No caso da religião, perfeitamente afinado com as Luzes do século, lamentava que os países católicos não adotassem uma “tolerância caritativa”, que tão ansiosamente pediam para si nos países em que formavam a minoria, citando como exemplo a Inglaterra, onde se recomendava “a tolerância mútua”, ditada pelos sentimentos cristãos, pela política de Estado e pelos ditames da filosofia” [CB, 8: 799-800].

Se, em seu início, no mundo português, a Inquisição fora um tribunal que castigara “com formas de justiça, ao menos com certa ordem estabelecida, os supostos crimes daqueles tempos, temperando assim o furor popular”, fizera-se muito pouco em seguida para diminuir esses males, do que resultara que “a perseguição sistemática” do tribunal “durou tanto que ainda hoje existe”, constituindo-se em “uma vergonha para a humanidade” [CB, 1: 123-24]. E aludia, em particular, aos portugueses que tinham sido condenados por suspeita de “afeição aos franceses”, no processo conhecido pelo nome de Setembrizada, iniciado em março de 1809, por parte do aparelho judiciário português. [Para a análise da Setembrizada, cf. Ana Cristina Bartolomeu de Araújo, “As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais”, em Luis Reis Torgal & João Roque (coords.), O liberalismo, 1807-1890 (Lisboa: Editorial Estampa, s.d. [col. História de Portugal, vol. 5]), pp. 17-43.] Da mesma forma, criticava a prática comum, nesse momento de reconstituição do poder em Portugal, quando da expulsão dos exércitos franceses, das “delações ocultas”. Era inverossímil que, em pleno século XIX, se continuasse a utilizar essa medida de “acusações particulares”, que apenas servia “para desassossegar o espírito dos povos”, perturbando “a tranqüilidade do mais inocente cidadão”, considerava Hipólito, extraindo argumentos não só dos jurisconsultos modernos, como Beccaria, mas também das próprias Ordenações do Reino, que afirmavam não ser depoimento algum de testemunha válido, sem que o réu estivesse presente [CB, 3: 341-42].

Quanto à Intendência Geral de Polícia, na opinião do redator do Correio, ela constituía o “último golpe à liberdade civil dos portugueses”, que arruinava “os fundamentos da jurisprudência criminal pátria” e dava “origem ao sistema de terrorismo, que o mau caráter dos intendentes de Polícia fez ainda mais odioso aos povos”. Lamentavelmente, esse “sistema infeliz” era implantado também no Brasil, em abril de 1808, após a chegada da Corte, tendo por principal missão garantir a tranqüilidade da família real e evitar os naturais transtornos que adviriam numa cidade cuja população aumentara consideravelmente de maneira súbita. Embora sua atuação visasse a combater os “abomináveis princípios franceses”, para Hipólito, no entanto, não era o “sistema arbitrário de governo” que impediria a circulação das idéias, pois as “convulsões políticas”, que ora se observavam na Europa, não deixariam de produzir “reações mais distantes” do que o governo imaginava. Na realidade, urgiam reformas para atender “ao bem do povo”, que não poderiam estar pautadas nem na “violência”, nem em “medidas arbitrárias, nem em querer perpetuar a ignorância dos povos” [CB, 2: 639-41].

De forma semelhante, julgava a censura uma outra atrocidade, de caráter obscurantista, dessa atuação despótica do governo, que anulava o público e que, ao restringir a liberdade de imprensa, apenas conduzia “à ignorância da nação”. Indignava-se que não houvesse “quase um livro de política, de moral, de legislação, daqueles que o mundo literato mais estima”, que não fosse proibido em Portugal; e que “os poucos homens que se atrevem a obter tais livros à custa de muita despesa e risco” ficassem impossibilitados de comunicarem suas idéias aos outros homens, transformando-se “em meros sábios instruídos no gabinete”, “incapazes de ser úteis à sua pátria na prática de suas não combinadas teorias”. Afinal, “que seria da nação inglesa, se o seu governo lhe proibisse a leitura das gazetas, jornais e mais obras periódicas, se uma Inquisição vigiasse constantemente, em conservar a ignorância, vexando os autores a censuras impertinentes; se uma polícia atraiçoada, incansavelmente sugerisse ao soberano e aos ministros, que tivessem por suspeitos os homens que viajam e procuram instruir-se?”.

Apesar disso, na perspectiva ilustrada que o movia, acreditava que o auxílio inglês na expulsão dos inimigos de Portugal possibilitaria a introdução “daqueles estabelecimentos políticos” que faziam “a felicidade do indivíduo inglês e a prosperidade da nação inglesa” [CB, 6: 451-52].

No fundo, o projeto político de Hipólito da Costa fundamentava-se, num primeiro aspecto decisivo, na garantia essencial das liberdades individuais do homem, que deviam ser usufruídas sem qualquer constrangimento ou proibição impostas pelo direito civil, a partir da inspiração fornecida pelos autores ingleses do século XVII, que acreditavam ser a condição natural da humanidade um estado de liberdade, constituído na sua essência pela liberdade de pensamento, pela liberdade de movimento e pela liberdade de contrato. E, assim, para sustentar suas idéias, publicou nas páginas do Correio, a partir de 1810 [CB, 4: 479-502], o célebre escrito de John Milton intitulado Areopagitica ? Fala a favor da liberdade de imprensa dirigida ao Parlamento da Inglaterra.

Para ele, o fim primordial do governo era proteger e promover tais direitos individuais, pois eles não eram provenientes da organização da sociedade civil, mas inerentes ao indivíduo. [Para a discussão das liberdades individuais, cf. Quentin Skinner, La liberté avant le libéralisme (Paris: Seuil, 2000), pp. 22-30.] Assim, “nenhum benefício (nem talvez a vida) compensa a liberdade. Libertas pro nullo venditur auro, se lê ainda hoje em caracteres de ouro na frente de muitas casas, outrora habitadas pelos antigos romanos” [CB, 2: 639]. Por isso, defendeu tenazmente a liberdade de imprensa, já que esta era o meio de o “soberano saber de tudo o que se passava, não obstante a ignorância ou traição de seus ministros”. E exemplificava com a situação de Portugal, no momento das invasões francesas: “Pergunto eu, se em Portugal houvesse liberdade de imprensa, seria possível que Antonio de Araújo ignorasse a marcha dos franceses? e se ele a sabia, e queria ocultar isso do soberano, ser-lhe-ia possível fazê-lo, quando os papéis impressos o pudessem dizer, sem temor, ao mesmo soberano?” [CB, 1: 519].

Qualquer obstáculo ao livre pensamento acarretava o obscurantismo e a ignorância, sendo a causa, que impedia os portugueses de fazerem “uma figura brilhante nas ciências e na literatura” [CB, 8: 50].

No entanto, apesar dessas inúmeras páginas a favor das liberdades individuais do homem, Hipólito, de acordo com o pragmatismo da Ilustração luso-brasileira, mostrou-se bastante cauteloso ao tratar a questão da escravidão. O primeiro artigo em que aborda esse assunto está datado de abril de 1814 e envolve a análise de um alvará a respeito do comércio de escravos, que buscava aliviar a crueldade do tratamento dado a esses indivíduos. Não reprovava o cuidado do governo do Brasil em evitar decidir, naquele momento, algo quanto à existência da escravatura, por julgá-lo “um ponto sumamente delicado e de grande dificuldade”: “A escravatura é um mal para o indivíduo que a sofre e para o estado aonde ela se admite; porém, este mal não foi introduzido pelo governo atual e a tentativa de o cortar pelas raízes imediatamente, produziria sem dúvida outros males de maiores conseqüências. É logo mui recomendável a prudência do governo em não atacar diretamente o tráfico da escravatura”.

Por isso, criticava como temerário o envio para o Brasil de uma tradução portuguesa da Constituição da República estabelecida pela insurreição dos negros do Haiti, que saíra em O Investigador Portuguez, jornal publicado em Londres, “debaixo da proteção do embaixador português”, o já conhecido Domingos de Sousa Coutinho [CB, 13: 607-09].

Da mesma maneira, quando da decisão do Congresso de Viena de estabelecer o princípio da ilegalidade do tráfico de escravos em África, embora Hipólito concordasse com as razões filantrópicas de tal atitude, não deixou de apontar a ausência de jurisdição das potências européias para legislarem sobre a matéria. Aliás, em artigo anterior, mostrara a contradição da representação inglesa que, ao argumentar “a favor do direito dos africanos”, ao mesmo tempo, atacava “os direitos de independência das nações”, ao querer “forçar a Corte do Brasil a adotar” a extinção do tráfico. Se era verdade que as nações agiam por interesse, a partir de “uma verdade em abstrato ? a liberdade natural dos negros”, “não valeria” então, perguntava com ironia, referindo-se à questão da servidão que ainda persistia na Europa Oriental, também “fazer alguma declaração a favor da liberdade natural dos brancos na Europa?” Em sua opinião, “a consideração filantrópica da liberdade do homem limitou-se unicamente aos negros da África”, mas a liberdade de imprensa, a liberdade de discussão e a liberdade religiosa não mereceriam igualmente uma declaração solene? [CB, 15: 247; 13: 763-64] Por conseguinte, ainda que não fosse avesso à extinção do tráfico, o redator do Correio optava, mais uma vez, nessa questão, por uma “reforma gradual e prudente”, na medida que os melhoramentos do século possibilitassem, sob a pressão da campanha contra a escravidão movida pela Europa e sobretudo pela Inglaterra, a substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, com a emigração que a decretação da paz no velho continente viabilizaria [CB, 13: 609].

Apesar dessas limitações, o pensamento de Hipólito da Costa, num segundo aspecto decisivo, articulava esses princípios das liberdades individuais a uma concepção da monarquia, como a expressão da vontade das pessoas que constituíam uma determinada sociedade civil, o que pode ser verificado numa série de sete artigos inseridos no Correio entre agosto de 1809 e maio de 1810, fazendo um paralelo entre a Constituição portuguesa e a inglesa. [Os artigos foram publicados em CB, 3 (ago. 1809-dez. 1809); 4 (jan. 1810 e maio 1810).] Sem dúvida, as liberdades deviam constituir a base de todos os governos, mas era na monarquia inglesa que esses direitos tinham sido consagrados, ao estabelecer:


1? As restrições da autoridade governante. 2? A liberdade de falar e de escrever. 3? A ilimitadíssima liberdade nos debates do corpo legislativo da nação. 4? A balança de poderes, que restringe aos justos limites uma das ordens do Estado. 5? A faculdade que têm todos os indivíduos de tomar uma parte efetiva nos negócios do governo. 6? A estrita imparcialidade com que se administra a justiça sem distinção de pessoas. 7? A brandura das leis criminais. 8? A obediência da autoridade governante à letra das leis. 9? A submissão do poder militar ao poder civil. [CB, 3: 178]


Assim, ao contrário de Portugal, uma Monarquia absoluta, considerava a Inglaterra uma Monarquia mista, pois “o poder legislativo reside no Parlamento, entendendo-se por esta palavra uma corporação composta de três ramos diferentes, a saber: o rei, a Casa dos Lordes e a Casa dos Comuns” [CB, 3: 379]. As restrições ao poder da Coroa ofereciam “ao soberano uma solidez e permanência de poder, de que ele nunca gozaria se fosse despótico”. A liberdade da nação dava sustentação à segurança e firmeza do Trono, evitando que o povo jamais tentasse “o menor ataque contra o poder executivo”, porque conhecia “a íntima conexão que ele tem com a prosperidade da nação e resto da fábrica política do Estado”, podendo qualquer sublevação acarretar prejuízo para a nação e perda das vantagens de que o povo usufruía [CB, 3: 178].

Invocando o jurista suíço Jean Louis Delolme, que escreveu Sobre a Constituição inglesa ? obra, inclusive, proibida no mundo brasileiro ?, Hipólito defendia o governo regular e constitucional, em que o “poder dos reis é limitado, e com muitíssima razão o deve ser”, e procurava demonstrar que as leis constitucionais evitavam os abusos de poder, mantendo “a segurança pública” e a “felicidade dos homens” [CB, 4: 78-79]. [Para a proibição da obra de Delolme, cf. Lúcia Maria Bastos P. Neves, “Censura, circulação de idéias e esfera pública de poder no Brasil, 1808-1824”, Revista Portuguesa de História, Coimbra, 33 (1999), pp. 665-97.] Peça fundamental dessa idéia de monarquia, a Constituição era, no entanto, o resultado de disposições legais e da prática do direito dos costumes, cujo fundamento encontrava-se na vontade do povo, como Burke havia argumentado, ao considerar todos os direitos do indivíduo corporificados na “antiga Constituição”. [Cf. J. G. A. Pocock. “Burke and the Ancient Constitution: a Problem in the History of Ideas”, in Idem, Politics, Language and Time. Essays on Political Thought and History (Nova York: Atheneum, 1971), pp. 202-32.] Embora os direitos dos costumes fossem imemoráveis, isso não significava que fossem estáticos, modificando-se em função das necessidades do tempo. Assim, se a Magna Carta lançou “sólidos fundamentos à fábrica da liberdade inglesa”, ao longo dos séculos, os soberanos aprimoraram gradualmente a forma de governo do país, mas nunca através de rupturas e, sim, de mudanças, que conservavam um elo de ligação entre passado e presente [CB, 3: 375 (out. 1809)]. [Até a Revolução de 1820, a proposta constitucional do Correio pautava-se no modelo inglês; posteriormente, Hipólito elaborou um “Projeto de Constituição Política do Brasil”, inspirado, em parte, no modelo norte-americano. Cf. CB, 29: 371-84.]

Em Portugal, competia ao soberano “o exercício de todos os direitos majestáticos, sem que nenhum desses direitos possa ser exercido por outro algum indivíduo ou corporação”, o que configurava, por conseguinte, uma Monarquia absoluta [CB, 3: 373]. No entanto, ao contrário da Inglaterra, em que resultara da conquista, o estabelecimento da Monarquia portuguesa ocorreu de forma pacífica e legal, através do direito consuetudinário e do consentimento dos povos nas Cortes de Lamego. Portanto, a origem do governo português, como a do inglês, decorria de “um pacto expresso e solene do primeiro rei com o povo”, em que as “duas partes contratantes estipularam em seu nome e de seus descendentes, ficando estes ligados àquelas mútuas obrigações enquanto a natureza do pacto o permite ou exige” [CB, 3: 310]. Nesse sentido, as Cortes ? sejam as de Lamego, sejam aquelas posteriores, como as de Coimbra, em 1385 ? haviam imposto certas leis fundamentais e outras particulares, que constituíam limites ao exercício da autoridade real, e tornavam-se semelhantes ao Parlamento inglês; e a Constituição portuguesa, fundamento da Monarquia lusa, igualava-se à britânica, pois ambas eram resultado de disposições legais, baseadas nos costumes, que tiveram seu fundamento na vontade do povo. [Para a natureza e o papel das Cortes tradicionais, ver A. M. Hespanha, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984), pp. 39-41.]

Contudo, no caso português, houve condições que permitiram um certo relaxamento de atitudes, o que criou a possibilidade de que a “astúcia de ministros ambiciosos e de homens perversos” reduzissem a forma de governo absoluta à forma despótica, fazendo surgir abusos de poder [CB, 3: 311]. Foram esses ministros que usurparam os direitos pertencentes ao soberano e que “menosprezaram as instituições antigas, que faziam a glória da nação”, ou seja, as Cortes [CB, 3: 176]. Mesmo assim, Portugal ainda permanecia dotado de Cortes, já que ninguém as abolira, nem tinha “o direito de abolir”, uma vez que elas constituíam, inegavelmente, “uma parte da Constituição portuguesa” [CB, 8: 52].

De fato, inspirado nos ensinamentos de Montesquieu, Hipólito definia-se como um adepto intransigente da monarquia e contrário “ao entusiasmo republicano”, que apontava como uma “mania democrática, que padeceu a França” [CB, 3: 147]. Ciente ainda de que “a mudança na forma de governo, só por si, nunca pode remediar os abusos de que os povos se queixavam”, temia a revolução, essa mudança brusca de ideais sobre o governo e a sociedade civil que representava o abalo de todos os governos. Apesar disso, reconhecia que, em virtude da “restauração das letras e das ciências na Europa”, os povos tinham passado a identificar “os vícios dos antigos governos, fundamentados nos abusos do chamado direito feudal”, mas como os gabinetes europeus não empreenderam as reformas necessárias, aqueles passaram a olhar para “os franceses como para a fonte de sua salvação” [CB, 8: 379-80; 5: 496].

Assim sendo, diante dessa situação, o Correio Braziliense continuava a preservar a figura do monarca, uma vez que “a obediência e o respeito ao soberano são um dever sagrado, que o cidadão que assim não cumpre insulta a honra de sua pátria, faltando ao respeito devido ao cabeça da nação; e se expõe a produzir a anarquia, o maior crime que se pode cometer num Estado, pelos muitos crimes que ela traz após de si” [CB, 3: 177].

No entanto, defendia, sobretudo, um “constitucionalismo histórico”, no qual a monarquia não representasse apenas a encarnação em um homem, mas também um conjunto de instituições, constituídas através de um passado e de um direito comuns, o que deveria ser alcançado por meio de uma reforma nos costumes, que permitisse o retorno à antiga ordem do Reino, evitando-se a revolução. [Para uma análise da visão política do Correio, até a Revolução de 1820, cf. J. P. R. Ferreira, op. cit., pp. 39-67. A teoria do “constitucionalismo histórico” era também defendida em Portugal por outros intelectuais, como o célebre jurista Antonio Ribeiro dos Santos. Cf. José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII. Antonio Ribeiro dos Santos (Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983), pp. 243-67; e G. Boisvert, Um pionnier de la propagande libérale au Portugal: João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853) (Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1982), pp. 133-35.]

Ao depositar suas esperanças na “antiga Constituição” e na atividade das Cortes, Hipólito recusava uma forma republicana de governo, que tendia para “a demasiada popularidade” e para os “extremos viciosos dos sistemas políticos”. Ao invés, procurava seguir “o meio termo”, pois não queria “demasiado poder ao povo, porque isso produz anarquia, nem demasiado poder nos que governam, porque isso produz o despotismo” [CB, 4: 461]. Como “governo popular”, almejava a possibilidade de “todos os cidadãos, em via de ter parte, ou voto, na administração dos negócios públicos”, através do “chamamento de Cortes e outras instituições, que formavam a parte democrática da excelente Constituição antiga de Portugal”, entendidas as Cortes como uma representação consultiva dos corpos do reino ? clero, nobreza e povo ? distinta de uma representação ligada ao indivíduo, escolhido por eleições. “Não quero pois entender, de forma alguma, por governo popular, a entrega da autoridade suprema nas mãos da populaça ignorante; porque isso é o que constitui verdadeiramente a anarquia; e, nesta se deve cair necessariamente, todas as vezes, que o vigor e entusiasmo do povo excede a energia e talentos dos que governam” [CB, 2: 175].

Expressão das mitigadas Luzes ibéricas, Hipólito desconfiava das reações populares e acreditava que os governos foram instituídos “no mundo para o bem dos povos e não para o benefício de uns poucos de indivíduos” [CB, 4: 215], mas não deixava de julgar que “nenhuma máxima é mais verdadeira que esta, em política: Deve-se fazer tudo a bem do povo, mas nada deve ser feito pelo povo” [CB, 3: 383].

***

Graças à Ilustração, Hipólito José da Costa, como as elites intelectuais do período de um modo geral, superou a visão litúrgica de uma ordem imemorial e reconheceu o potencial dos indivíduos de interferir na vida pública em seu próprio proveito. Como jornalista, identificou o papel da imprensa como arma de combate fundamental na arena da política para opor-se às práticas repressivas ainda presentes no mundo luso-brasileiro ? como a Inquisição, a censura e o controle das liberdades individuais pela Intendência Geral da Polícia ? com o objetivo de ampliar a esfera privada de poder numa esfera pública. Com isso, o Correio Braziliense transformou-se no esboço de uma voz geral, que se tornava, paulatinamente, em opinião pública, cuja objetividade provinha da razão e cuja força resultava do progresso das Luzes. [Cf. Keith M. Baker, “Politique et opinion publique sous l?Ancien Régime”, Annales. Économies. Sociétes. Civilisations, Paris, 42, 1 (jan.-fev. 1987), pp. 41-71. Para a questão do desenvolvimento da opinião pública no Brasil, ver Lúcia Maria Bastos P. Neves, “Leitura e leitores no Brasil, 1820-1822: o esboço frustrado de uma esfera pública de poder”, Acervo, Rio de Janeiro, 8, 1-2 (jan-dez. 1995), pp. 123-38. Marco Morel, “La génesis de la opinión pública moderna y el processo de independencia (Rio de Janeiro, 1820-1840)”, em François Xavier-Guerra, Annick Lempérière et al., Los espacios publicos em Iberoamérica. Ambigüedades y problemas, siglos XVIII-XIX (México: Fondo de Cultura Económica, 1998).]

Ao mesmo tempo, porém, temia as correntes de opinião despertadas pelo vendaval da Revolução Francesa e foi no modelo de uma Monarquia mista, consolidada em solo britânico e regida por um conjunto de leis estruturadas pelo peso da tradição, que limitavam o poder não só do soberano, mas, principalmente, dos ministros e funcionários, que encontrou o referencial para analisar o impacto e o alcance da transladação da Corte portuguesa para o Brasil. Nessa perspectiva, derivada de Burke, que valorizava a continuidade entre o passado e o presente e que abominava a revolução como o flagelo dos povos, uma vez estabelecida a equiparação da Constituição portuguesa à inglesa, urgia a criação de mecanismos que aperfeiçoassem as antigas instituições do Reino, em particular, as reformas na administração da América portuguesa e a volta à prática de convocar regularmente as Cortes, como instrumentos para impedir que os agentes da Coroa agissem de forma arbitrária na aplicação de leis que regulamentam a vida em sociedade e para garantir, assim, as liberdades individuais, vistas como um direito inerente ao homem e não como o resultado da mercê de um soberano. [Esta era uma perspectiva dos autores ingleses do século XVII. Cf. Q. Skinner, La liberté, op. cit., pp. 74-76.]

Dessa forma, apesar das desavenças com Rodrigo de Sousa Coutinho, Hipólito mostrou-se duplamente fiel àquela geração de 1790, que buscara uma nova configuração para a comunidade portuguesa no mundo. Primeiro, porque conservou ? pelo menos até fevereiro de 1822, quando denunciou a atitude despótica das Cortes de Lisboa, que pretendiam reduzir o Brasil ao “seu antigo estado de dependência de Portugal, retroagindo-o “de sua dignidade de Reino” [CB, 28: 165-67] [o artigo foi transcrito em dois jornais do Rio de Janeiro, o Revérbero Constitucional Fluminense, de 12/5/1822, e o Correio do Rio de Janeiro, de 13/5/1822] ? o ideal de um Império que combinasse os interesses dos dois lados do Atlântico. Segundo, porque, embora ansiasse por um modelo da sociedade em sintonia com as novas concepções do indivíduo e da política que as Luzes propunham, também se mostrou incapaz de perceber os limites que o peso da tradição ibérica colocava ao projeto que acalentava, limites que resultavam das reduzidas dimensões da elite intelectual e da presença da escravidão. Nesses dois aspectos residem a grandeza e a tragédia de Hipólito José da Costa, de seus companheiros da geração de 1790 ? e também da nação a cujo nascimento assistiram.

(*) Doutora em história pela USP, e professora adjunta de história moderna e contemporânea do Departamento de História da UERJ.

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