VEJA & LIVROS
Deonísio da Silva (*)
A revista Veja, a maior do país, dedica três páginas desta semana aos negócios editoriais de Paulo Coelho. As fotos ocupam maior espaço do que o texto na matéria assinada por Marcelo Marthe, o que, ao primeiro olhar, revela uma desconcertante concepção do que deva conter uma secção intitulada Livros.
Mas poucas vezes um autor disse tanto nas entrelinhas. O jornalista soube passar aos leitores o essencial: quando se trata de Paulo Coelho, dos livros há pouco ou nada a se dizer. No caso em pauta, o anúncio da assinatura de contrato para um novo livro não se trata ainda de juízo literário, pois o livro ainda não foi publicado.
O que temos, então para pautar como relevante e de interesse dos leitores de Veja? Nas páginas 148 e 149, três fotos. A maior, de 21 por 14 cm, oferece quase 300 preciosos centímetros quadrados de uma foto do autor, que a revista indica ter sido tirada no Irã. A legenda: "Paulo Coelho no Irã: os adiantamentos no exterior pelo novo livro já somam 6 milhões de dólares."
Em fotos menores, o editor abandonado e o editor escolhido, assim legendadas: "Rocco (no alto) e Feith (acima): o primeiro deu o troco no segundo, que lhe tirou o autor em 1996." Paulo Rocco e Roberto Feith estão entre os editores mais desejados pelos escritores brasileiros. A imprensa dá conta de que eles vêm há anos tratando profissionalmente o autor, o livro e o leitor, a tríade que sustenta o processo. Um de seus recursos é a presença nos meios de comunicação social, o cuidado com a produção, distribuição e exposição do livro, além de pagamentos decentes a autores num cenário em que, por razões históricas, em certa medida, e atávicas, em outra, os próprios escritores concebem seu ofício, por vezes inconscientemente, como sacerdócio intelectual e artístico.
Na página 150, em outra foto enorme, mais de 180 cm2, outra vez Paulo Coelho, vestindo a mesma farda que honrou um dia um autor cuja memória está brotando na praça em dois livros de leitura indispensável, recentemente lançados. Refiro-me à figura do falecido general Aurélio de Lyra Tavares, que aqueles que não sofrem da memória, ou lêem mais do que os leitores das obras de Paulo Coelho, sabem tratar-se de figura sinistra, que assinou o Ato Institucional Número 5, de terríveis lembranças. Mas os leitores de Paulo Coelho talvez nem saibam que o general usava esses dois tipos de farda, já que são assim definidos pelo autor: "A promoção é a alma do negócio, pois 40% dos meus leitores só entram numa livraria quando ficam sabendo que estou lançando um novo romance." Provavelmente, não estão lendo, nem vão ler os dois volumes do jornalista Elio Gaspari, A ditadura escancarada, A ditadura envergonhada, recentemente lançados. Seria bom, para eles e para o país onde vivem, que lessem algo mais do que os livros de Paulo Coelho. Afinal, desde os tempos bíblicos imemoriais, a grande paixão é a do conhecimento. Porque poderiam ao menos fazer uma pergunta que ainda não calou: por que a Academia Brasileira de Letras, um sistema literário de exclusão, silenciou diante de livros proibidos e autores perseguidos, omitiu-se nas lutas travadas contra a ditadura militar? Aliás, travadas às vezes no interior da própria ditadura, não para derrubá-la, mas para evitar que caísse nos excessos que tanto nos envergonharam ao longo de décadas.
Mérito comercial
Mas as surpresas da matéria não terminaram. Ainda na página 150, vem uma foto de Luis Fernando Verissimo, no mínimo um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos, cujo humor, verve e dignidade na concepção do ofício jamais impediram que tivesse milhões de leitores e milhares de exemplares de livros, a ponto de freqüentar a lista dos mais vendidos com três livros simultaneamente.
A pergunta é: que faz Luis Fernando Verissimo ali? A resposta é simples. Faz o mesmo que Pilatos no Credo. Pilatos entrou para o Credo para atestar que Jesus existiu historicamente, que nasceu, viveu e morreu entre seus contemporâneos, tendo sido crucificado quando Pilatos, a serviço do império romano, mandava na Palestina ocupada. Paulo Coelho, que é um homem afável e esperto, faz uma leitura que atende globalmente aos interesses do império que hoje domina o mundo. Conta já com uma quinta-coluna nas próprias universidades; inclusive, o que é ainda mais espantoso, nos cursos de Letras, onde mestres incautos ou espertos como ele tentam incutir em alunos indefesos e ingênuos ? ou quem sabe professem as mesmas crenças dos mestres que já se ajoelharam diante do deus mercado ? a idéia, ainda que vaga e difusa, de que hoje vivemos a era da esperteza e que fora dela não há salvação.
Paulo Coelho pode ser sucesso aqui e no mundo inteiro, mas sua representação literária do Brasil é comercial. O que não é o caso de Luis Fernando Verissimo. Os dois autores negam a tese, por caminhos diferentes, de que o livro de grande tiragem é bom. Negam também a tese de que o livro de grande tiragem é ruim. Afirmam, por caminhos diferentes, que tiragem nada tem a ver com qualidade. O livro bom pode vender bastante. Ou não. Mas resta uma questão incômoda: por que a maior revista semanal de informação dá quase que exclusiva importância a autores cujo mérito exclusivo, ou ao menos mais visível, é comercial?
(*) Escritor e professor da UFSCar, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo