ASPAS
FORMADORES DO BRASIL
"Um retrato do polêmico Pereira de Vasconcelos", copyright Folha de S. Paulo, 14/07/01
"Segundo lançamento da coleção ?Formadores do Brasil?, o volume sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos põe o leitor contemporâneo em contato com um dos personagens mais interessantes da nossa história política. Vasconcelos foi, talvez, o primeiro político de fato que o Brasil conheceu, pois os que o antecederam -Cairu, Bonifácio, Hipólito, Lêdo, Januário, enfim a geração que fez a Independência-, foram nossos pais fundadores, em um tempo em que ainda nem mesmo havia o Brasil como uma sociedade organizada, quanto mais como Estado político.
Idealizada por José Murilo de Carvalho, a coletânea ganha maior interesse, a começar por seu ensaio introdutório que, ao combinar a análise da biografia política aos discursos que a pontuaram, produz um retrato de corpo inteiro do polêmico personagem. Na seleção dos discursos e artigos, Murilo procurou contemplar os momentos cruciais da trajetória de Vasconcelos, correspondentes às várias fases de sua carreira, como também aqueles emblemáticos e definidores de suas idéias.
Bernardo Pereira de Vasconcelos surgiu na cena política nacional como deputado, na segunda encarnação da Assembléia, a de 1826. Apesar de ter sido mais de uma vez ministro e de sempre ter atuado como jornalista, Vasconcelos era e sempre haveria de ser o deputado, o legislador. Sua grande missão foi a que empreendeu no Parlamento.
Orador brilhante
Estreando timidamente em 1826, logo se transformou no orador mais brilhante e na primeira voz da oposição. Os contemporâneos ressaltavam a precisão lógica e a agudeza de seu raciocínio, veiculado por meio de discursos em que a ironia e o sarcasmo funcionavam como eficazes armas retóricas.
Segundo José Murilo de Carvalho, a preocupação inicial de Vasconcelos na Câmara foi colocar em funcionamento a monarquia representativa, acabar com os resíduos do absolutismo ainda vigentes na cabeça e nas práticas do imperador, de seus ministros e até mesmo nas leis. E foi nessa primeira fase de sua atuação que Vasconcelos escreveu sua obra mais importante.
O mais alentado dos textos reunidos, a ?Carta aos Senhores Eleitores da Província de Minas Gerais?, configura nosso primeiro manifesto liberal, um raro documento de aprendizado democrático. Nela, Vasconcelos denuncia a violência da ação do governo na repressão aos revoltosos da Confederação do Equador. Exigia também que os ministros fossem obrigados a apresentar relatórios e atender à convocações, enfim, a prestar contas de seus atos e serem por eles responsabilizados.
Bernardo Pereira de Vasconcelos foi o grande artífice do Ato Institucional que modificou substancialmente a Constituição outorgada por dom Pedro 1?, em 1824. Modificou-a, com o Ato de 1834, no sentido liberal, impregnando-a do federalismo tão desejado pelos liberais da Independência, abolindo o Conselho de Estado e estabelecendo eleições populares para a escolha do chefe do governo. Voltaria a modificá-la, em sentido contrário, quatro anos depois, quando o político liberal que Vasconcelos fora já estava totalmente metamorfoseado pelo Regresso, movimento criado por ele e que deu origem ao Partido Conservador. Aí sua ação foi no sentido da centralização e do restabelecimento do Conselho de Estado.
O tom mais radical de Vasconcelos já se atenuava em 1834, ano mesmo de sua maior vitória como político liberal. Seu discurso de 1? de julho de 1834 repete os argumentos dos conservadores de 1823 contra a federalização do Império. Como aqueles, Vasconcelos chamava a atenção para a diferença entre o processo histórico de criação do Estado na América inglesa e o nosso, apresentando como resultado previsível da descentralização no Brasil a anarquia e a guerra civil que ensanguentavam a América espanhola.
Partido do Regresso
Foi a partir da aprovação do Ato Adicional de 1834 que Vasconcelos começou a afastar-se dos antigos companheiros moderados, Diogo Antônio Feijó e Evaristo da Veiga e a elaborar os princípios que orientariam a ação do Partido do Regresso. Esta guinada ideológica tem na sua profissão de fé o mais belo argumento de um vira-casaca que a história de nosso país já registrou. O texto atribuído a Vasconcelos, tantas vezes citado e que, segundo José Murilo de Carvalho, não se encontra em lugar algum de sua obra, serve de fio condutor ao ensaio que abre o volume.
?Fui liberal; então a liberdade era nova em meu país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la; e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e à defesa da liberdade? Os perigos da sociedade variam: como há de o político, cego e imutável, servir o seu país??
Avesso à democracia e à igualdade social, insensível à sorte dos escravos, pois foi, na fase conservadora, um defensor intransigente do tráfico e da escravidão, que considerava vitais para a economia brasileira, Vasconcelos foi também um teórico do liberalismo conservador em política e economia. Declarava-se contra qualquer tipo de protecionismo ou de monopólio estatal e dizia, fazendo uso de um tipo de imagem tão em gosto na retórica do tempo, que as artes, o comércio e indústria só pediam ao governo o que Diógenes pediu a Alexandre: que não lhes tape o sol da liberdade.
Aspecto paralelo, contemplado no livro apenas no caderno de imagens, mas igualmente digno de interesse, é o da presença de Bernardo Pereira de Vasconcelos na imprensa. A crítica do tempo será implacável com sua migração do liberalismo para o Regresso. Acusavam-no de venal e de navegar no mar da política com tantas bandeiras quantas lhe fazem feição para a pilhagem. Mas será a paralisia progressiva, provocada supostamente pela sífilis na juventude, e que foi, gradativamente, tomando-lhe todo o corpo, o principal alvo da sátira impiedosa dos adversários. Exemplar da baixaria a que chegava a imprensa do tempo eram as referências a dona Dioguina, sua irmã, que, em virtude da doença de Vasconcelos, fazia-lhe as vezes de dona da casa. O grito dos oprimidos, propunha, em abril de 1833, a seguinte adivinhação: Dá-se metade do ordenado de um ano de senador, pago no Ceará em moeda forte, a quem ensinar o tratamento que os filhos de uma mulher devem dar a um irmão da dita, que é pai dos ditos. Outro jornal dizia que Vasconcelos, desconhecendo ou postergando qualquer pudor, achou segundo a fama pública um meio de duplicar os laços de parentesco, tendo filhos e sobrinhos ao mesmo tempo.
Um dos primeiros personagens a ser alvo da caricatura no Brasil, Vasconcelos foi um caricaturista da palavra, descobrindo com facilidade o ridículo alheio. Ele, que, segundo Otávio Tarquínio de Sousa, não cultivava a benevolência de ninguém, além dos ataques e das réplicas, procurava também destruir os adversários com ?versinhos?, nem sempre pudicos, que passava às bancadas e chegava ao cúmulo de, da própria tribuna, arremedar gestos e exclamações dos contendores.
Para ter uma idéia do padrão de jornalismo que fazia o primeiro grande político brasileiro, basta que se diga que ?O Sete de Abril?, jornal que ele fez publicar depois da abdicação de dom Pedro 1? (7/ 4/1831), era, segundo seu antigo aliado Evaristo da Veiga, lido não pela coerência de suas doutrinas, mas sim pela malignidade com que o escrevem, malignidade que não respeita partido algum. Uma quadrinha, publicada em outro jornal dizia: ?Dizem que ?O Sete de Abril?/ em fulano ferra o dente./ Ora, é forte admiração/ ver um cão morder na gente?.
Se isso tudo não serve de consolo para os que assistem estarrecidos ao espetáculo que dão os nossos políticos de hoje na Câmara e no Senado, talvez sirva para refletir que o mistério da política reside justamente nesse enigma: o de que um homem pode ser ao mesmo tempo um grande político e um grande canalha. Ou, de um ponto de vista mais pessimista, como queria Maquiavel, essas duas qualidades seriam mesmo indissociáveis. (Isabel Lustosa é pesquisadora da Casa de Rui Barbosa (RJ) e autora de ?Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na Independência? (Companhia das Letras)"