Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

IstoÉ

COBERTURA DA GUERRA

"A ilha do Oriente", copyright IstoÉ, 17/10/01

"Nós não vamos ceder às pressões dos Estados Unidos. Nossa televisão é livre e assim continuará. E o governo do Catar nos apóia totalmente porque acredita que somos independentes. Trabalhamos como qualquer outra redação de jornalistas, não inventamos a notícia. Se os jornalistas americanos tiveram independência para descobrir um escândalo como o caso Watergate, por que nós também não podemos ter?? Esta foi a resposta dada a ISTOÉ pelo editor-chefe da televisão Al-Jazeera, Ebrhaim Helal, sobre a solicitação feita pela Casa Branca ao governo de Catar para que barrasse algumas transmissões consideradas ?antiamericanas?. Primeira rede de televisão em cadeia do mundo árabe-muçulmano, a Al-Jazeera (a ilha em árabe) fica 24 horas no ar e é mantida pelo governo de Catar. A rede se transformou num incômodo à política de Washington depois de divulgar as fitas de vídeo com as falas de Osama Bin Laden. O presidente George W. Bush pressionou o sheik catariano, Hamad bin Khalifa al Katani, que estava em visita a Washington, para dar um fim à divulgação das fitas. O sheik se recusou. ?A questão está encerrada, pois a vida parlamentar exige que tenhamos uma mídia livre?, afirmou.

O pronunciamento de Bin Laden, transmitido mundialmente no domingo 7, logo após o discurso de Bush sobre os ataques no Afeganistão, caiu como uma bomba nos lares americanos. Vestindo roupas militares, com um fuzil AK-47 e ao lado de membros da direção da al-Qaeda e da Jihad Islâmica egípcia, Bin Laden discursou em fala mansa, mas ameaçadora. O terrorista jurou, em nome de Alá, que os EUA nunca mais poderão viver em paz e convocou os muçulmanos para uma guerra santa. ?Deus abençoou um grupo de muçulmanos de vanguarda, a dianteira do Islã, para destruírem a América?, prometeu.

Diferentemente de outras guerras recentes, o conflito do Afeganistão está sendo registrado pelo outro lado. Nos domínios do Taleban, apenas os jornalistas da Al Jazeera tiveram permissão para permanecer, enquanto a mídia ocidental foi expulsa. Além dos discursos de Bin Laden, a televisão catariana foi a única a transmitir os bombardeios dos EUA, desbancando até a todo-poderosa emissora americana CNN, a estrela da Guerra do Golfo, que tentou retransmitir com exclusividade as imagens da tevê árabe via satélite. O premiê britânico, Tony Blair, usou a mesma Al-Jazeera para enviar uma mensagem aos países árabes. Numa entrevista feita em Londres, Blair disse que a al-Qaeda de Bin Laden é ?uma ameaça tão grande aos países árabes moderados quanto o Afeganistão?.

Para o crítico de televisão Gabriel Priolli, ?Bin Laden e o Taleban têm um planejamento estratégico de mídia e a Al-Jazeera foi a escolhida para dar sua versão ao mundo árabe. Na Guerra do Golfo, o próprio Saddam Hussein escolheu a CNN para uma entrevista exclusiva. Em dez anos, os árabes aprenderam que mesmo nas mãos de uma CNN e sua postura independente, a cobertura seria melhor com uma versão árabe?, disse Priolli.

O editor-chefe da Al-Jazeera, Ebrhaim Helal, disse a ISTOÉ que as fitas com os depoimentos de Bin Laden foram entregues à redação pelos membros do Taleban na sucursal de Cabul. A Al-Jazeera é a tevê de maior inserção no mundo árabe e desafiou a censura onipresente nos países do Oriente Médio. Começou há cinco anos, com um orçamento de US$ 150 milhões (a maior parte do governo do Qatar), com a proposta de fazer programas alternativos às novelas e aos filmes egípcios. Segundo seu presidente, Mohammed Jassem Al Ali, desde seu início, a emissora se propôs a fazer um jornalismo independente dos governantes. ?A cobertura é ampla. Eles têm correspondentes em todos os países do Oriente Médio?, contou o brasileiro Luiz Alberto da Costa, preparador de goleiros do Fluminense, que trabalhou 13 anos na seleção de futebol do Catar.

A rede surgiu de um racha na família real catariana. O atual emir Hamad bin Khalifa al Tani derrubou seu pai em um golpe em 1995. Para fazer frente à influência dos sauditas sobre as elites de seu país, o novo soberano resolveu fundar uma televisão. Um ano depois do ?parricídio?, contratou jornalistas árabes da BBC para montar a primeira rede árabe sem intervenção saudita. Nesses cinco anos de existência, a emissora vem incomodando gregos e troianos, ou melhor, árabes e israelenses, além de receber alfinetadas de países ocidentais. ?Esta não será nem a primeira nem a última vez que recebemos ameaças de censura. Mas sabemos que isso não fará com que fechem a televisão?, garantiu o editor Helal. Em 1998, o Sindicato das Emissoras dos Países Árabes vetou a admissão da Al-Jazeera em suas fileiras. A entidade deu um prazo de seis meses para que a emissora ?se enquandrasse nas regras da casa?. A Al-Jazeera recusou e causou uma balbúrdia na internet. Durante os confrontos da Nova Intifada, iniciados há um ano, a Autoridade Palestina fechou sua sucursal nos territórios de Gaza e Cisjordânia. Mesma medida já tinham tomado a Jordânia e o Kuait. Com o recente sucesso da televisão, a Al-Jazeera certamente não fechará suas portas por falta de dinheiro, mesmo que algumas emissoras deixem de retransmitir suas imagens, como aconteceu com a CNN."

"A CNN do Catar e seus furos", copyright Veja, 17/10/01

"Ao divulgar as imagens de Osama bin Laden conclamando seus seguidores à guerra santa, logo após os primeiros bombardeios no Afeganistão, uma rede de notícias até então desconhecida no Ocidente ganhou as páginas dos jornais. Trata-se da Al Jazira, um canal transmitido por satélite, com sede no emirado árabe do Catar – país com metade da área de Sergipe, 770 000 habitantes e dono da terceira maior reserva de petróleo do mundo. Só a Al Jazira tem acesso autorizado ao território afegão sob controle do Talibã. Por isso, seus cinegrafistas em Cabul e Kandahar foram os únicos a registrar de perto os ataques americanos. A rede também é a escolhida sempre que Laden quer divulgar suas mensagens – como as ameaças de retaliação vociferadas pelo porta-voz da Al Qaeda, o grupo comandado pelo terrorista, que foram ao ar na última terça-feira.

A Al Jazira nasceu de um capricho do emir Hamad bin Khalifa al-Thani, de 43 anos e fortuna pessoal de 5 bilhões de dólares. Em 1996, um ano depois de apear seu pai do poder no Catar, ele pôs em prática as idéias liberais que assimilara em seus estudos na Inglaterra. ?Sua Alteza quer mostrar aos estrangeiros um Catar moderno?, disse a VEJA o jordaniano Sami Haddad, editor-chefe na sucursal de Londres da Al Jazira. Quando assumiu o controle do país, regido há séculos pela lei islâmica e por costumes tribais, Khalifa al-Thani deu direito de voto às mulheres, aboliu a censura total à imprensa e promoveu eleições – restritas. Para arrematar, criou a Al Jazira (?A Ilha?, em árabe). Em cinco anos de funcionamento, a emissora consumiu 145 milhões de dólares. O emir contratou a peso de ouro jornalistas que trabalhavam no extinto canal árabe da BBC, em Londres, e instituiu uma comissão de notáveis para definir a linha editorial da emissora. Isso dá alguma autonomia à Al Jazira, sediada na capital do Catar, Doha, e lhe permite vender a imagem de independência – o que é ótimo para Khalifa al-Thani. Na semana passada, o emir posou de imparcial depois que o secretário de Estado americano, Colin Powell, lhe pediu para amaciar o que julgava ser o antiamericanismo da cobertura. ?Nessas coisas, não interfiro?, afirmou.

A imparcialidade da Al Jazira, contudo, não é tão imparcial assim. A emissora jamais abordou a vida duríssima que os imigrantes indianos e paquistaneses levam no Catar. Ao se referir aos homens-bomba palestinos, chama-os de ?mártires?. Também não são claras as relações entre a Al Jazira e a organização terrorista Al Qaeda. Muitos de seus jornalistas apoiariam correntes fundamentalistas, acusa o jornal inglês The Times. ?Há quem critique nossa relação com o Talibã e a Al Qaeda. Mas qualquer televisão do mundo cultivaria uma certa proximidade com esse pessoal, para dar as notícias em primeira mão?, justifica o editor-chefe Haddad. De fato, muitas TVs correram para veicular as imagens geradas pela emissora do Catar – às vezes sem autorização, já que desde o início da guerra a Al Jazira mantém um acordo de exclusividade com a CNN. Na semana passada, o governo americano pediu que as redes americanas tenham cautela ao divulgar entrevistas dos terroristas à Al Jazira, por acreditar que elas possam conter mensagens cifradas para seus companheiros.

Apesar das ressalvas que se possam fazer, a Al Jazira representa um avanço e tanto no mundo muçulmano. A rede abre espaço para declarações de líderes israelenses e, na semana passada, pôs no ar uma entrevista com o primeiro-ministro britânico Tony Blair, em que este bateu duro em Osama bin Laden. Além disso, veicula opiniões de dissidentes políticos de outros países árabes, motivo pelo qual os governos da região vivem ameaçando romper relações com o Catar. A Arábia Saudita já provocou apagões dentro de suas fronteiras para impedir a recepção da Al Jazira. A Jordânia e a Autoridade Palestina de Yasser Arafat, por sua vez, chegaram a interromper o trabalho das sucursais da rede em seus territórios. A Al Jazira pode não ser perfeita, mas é mesmo uma ilha."

    
    
                     
Mande-nos seu comentário