INDÚSTRIA DA DIFAMAÇÃO
Luiz Weis (*)
A revista IstoÉ, se tivesse provado o que diz na matéria de capa da edição desta semana (n? 1.694), mereceria conquistar o Prêmio Esso de Jornalismo pelo segundo ano consecutivo. Como não provou ? e enquanto não provar ? deveria ser obrigada a circular envolta numa tarja marrom com a advertência: "Esta revista é irresponsável e pode estar a serviço de interesses políticos."
A capa da IstoÉ é um primor de grafismo. Dentro, às folhas tantas, a revista afirma que "foi |
que não quer nada com a fama, que realizou nas sombras um trabalho
ilegal que permitiu à PF estar no lugar certo, na hora certa".
E mais: "Em dezembro passado, a Interforte foi contratada para
fazer escutas clandestinas nos telefones de Roseana e de sua família.
Os autores da operação descobriram, pelo grampo, o dia
em que haveria dinheiro na Lunus".
O leitor que se fie na palavra da IstoÉ, pois em
lugar nenhum do texto ele vai ficar sabendo como é que a
revista sabe o que diz ? e o que não diz, mas insinua com
mão pesada de cabo a rabo da matéria, desde a capa:
a identidade de quem contratou o tal do "trabalho ilegal".
Se é para falar em Watergate, como anda fazendo o senador José Sarney, ou em "comportamentos ainda piores" do governo Fernando Henrique ("A lição de Nixon", Manoel Francisco Brito, NO., 6/3/02), que se comece pelo básico: ao contrário do que fez a IstoÉ, o Washington Post teve o elementar cuidado ? para não falar em respeito pelo leitor ? de atribuir tudo o que deu a fontes confiáveis, mesmo que na maior parte do tempo fosse obrigado a mantê-las no anonimato, como o celebérrimo Deep Throat. E ainda assim houve ocasião em que o jornal precisou se retratar.
Para ficar na comparação. Sabem todos quantos leram o livro da dupla Woodward & Bernstein, ou viram o filme que, por mais plausível a informação levantada e por mais ajustado o seu encaixe com as demais peças já conhecidas do quebra-cabeça, ela só saía quando, além de checada e rechecada, tinha um avalista; quando o Washington Post podia assegurar aos leitores que era legítima, que determinadas fontes a bancavam.
Trazida a regra a valor presente, isso significa que a IstoÉ não poderia ter publicado o que publicou, "a frio", isto é, sem dar ao incauto leitor a corroboração de que uma denúncia dessa gravidade tinha obrigatoriamente de vir acompanhada.
Em respeito ao princípio ? remetido pela revista à lata de lixo ? de que todos são inocentes salvo prova em contrário e de que a dúvida deve beneficiar o réu, admita-se que a IstoÉ agiu o tempo todo de boa-fé, apurou até o limite do possível a acusação pefelista de que, se não o governo, "a banda irada" do PSDB jogou sujo com Roseana, e por isso está convencida de alma limpa de que uma grampeadora de Brasília fez o que a revista houve por bem repassar ao leitorado. Nem assim se justifica a publicação.
Dito de outro modo, ao agir como agiu, atropelando normas elementares de ética jornalística, a IstoÉ concedeu aos seus leitores e os brasileiros em geral o direito de imaginar o que queiram sobre o que pode estar por trás das páginas do semanário.
Jornalismo paranóico
A matéria da IstoÉ, porém, não é um raio em céu azul. Ela apenas (?) leva ao auge, na cobertura da sucessão, uma forma de fazer jornalismo que parece ter sido aprendida vendo o filme Uma mente brilhante, sobre o esquizofrênico matemático John Nash.
Para provar a paranóica teoria de que os russos estão contrabandeando armamento atômico para suas células secretas dentro dos Estados Unidos, o personagem representado por Russell Crowe é mostrado cobrindo paredes inteiras com recortes da imprensa sobre os assuntos mais disparatados, em que a sua cabeça doente e genial encontra pistas e sugestões que se ligam delirantemente umas às outras compondo a realidade ameaçadora que só ele enxerga.
É o que fez, exemplarmente, a Folha de S.Paulo, na matéria "Delegado e procurador ligados a Serra atuam em investigações" (17/3/02, pág. A 8). Nela, se lê que o tucano "conseguiu reunir sob as asas de aliados" ? o subprocurador da República José Roberto Santoro e o delegado da Polícia Federal Marcelo Itagiba ? "as duas principais investigações em curso que podem prejudicar a sua candidatura ou implodir a campanha de seus adversários".
O jornal diz que Santoro "coordenou informalmente o pedido de busca e apreensão" na Lunus, o que "reforça as suspeitas de que articuladores da campanha de Serra tenham tentado minar a pré-candidatura da pefelista".
E diz que Itagiba, superintendente da PF no Rio ("casado com uma prima do embaixador Andrea Matarazzo, amigo de Serra") afastou o delegado que investigava "um dos ex-arrecadadores de campanha" de Serra, o ex-diretor do Banco do Brasil Ricardo Sérgio de Oliveira. Ele teria cobrado pedágio de 90 milhões de reais na privatização das teles para rechear o caixa 2 de Serra. É o que Antonio Carlos Magalhães diz que lhe disse o empresário Daniel Dantas, envolvido no negócio.
Para dar gás à "suspeita de uso político do Estado", como está no antetítulo, a Folha diz que "Santoro e Marcelo Itagiba fazem parte da tropa de choque de Serra no aparato policial e de investigação. Os dois já estiveram juntos antes" (no Ministério da Saúde).
As ações pró-Serra atribuídas à dupla e os respectivos retrospectos ocupam 92 linhas da matéria. No protocolar box "Outro lado", de 23 linhas, Santoro afirma que é "delírio dizer que houve uma combinação com Serra" (no caso da Lunus) e Itagiba declara que se está fazendo "muito barulho por nada" (no caso do delegado da PF). O primeiro nega ter relação com ele (Serra). O segundo nega ser seu amigo.
Nada disso afeta o enfoque da matéria.
Não bastasse a desproporção entre os dois lados da história, a Folha publicada ao lado o box "Supostos tentáculos de Serra". Nele, além dos casos tratados no texto principal, entram os contratos do Ministério da Saúde com a Fence; a propaganda dos 8 anos de FHC; e a questão dos recursos do BNDES para a GloboCabo ? onde nem ao menos aparece o nome "Serra"! Cada texto termina com uma espécie de "mini outro lado", em negrito. O do GloboCabo diz: "O PSDB não comentou as insinuações".
A mesma Folha de S.Paulo abriu a sua prestigiosa página de opinião (A 3, 15/3/02) para um artigo do primeiro-amigo da família Sarney, o ministro da Justiça do então presidente, Saulo Ramos.
E a IstoÉ, como quem não quer nada, transcreve em box de matéria sobre as dores de cabeça de Roseana o argumento de Saulo de que "em diligências desse tipo [como a da PF na Lunus], quem cumpre mandado judicial deprecado é oficial de justiça (art. 355, ? 2?, do Código de Processo Penal)", sugerindo que os federais transgrediram a lei.
Vai ver o brioso semanário não teve tempo de fazer o que fez o veterano repórter político de O Globo, Jorge Bastos Moreno: buscar o outro lado, no caso a versão do diretor-geral da Polícia Federal Agílio Monteiro Filho. Ela abre a entrevista publicada no domingo (17/3/02).
Nas suas palavras: "Os inquéritos da Sudam são centralizados na Divisão de Combate ao Crime Organizado e Inquéritos Especiais. A Justiça determinou que a Polícia Federal cumprisse o mandado de busca. Foi uma determinação judicial para que a PF o cumprisse. Determinação judicial não se discute, cumpre-se."
Informações "em particular"
Ulysses Guimarães gostava de contar a história do companheiro de PMDB que discursava contra as suas decisões, como presidente do partido, e depois o procurava para se explicar e o cobria de elogios. Um dia, Ulysses se cansou e fez-lhe uma sugestão: "Por que, para variar, você não me elogia em público e me critica em particular?"
Quem tiver lido a Folha desde o dia em que a PF entrou na Lunus notará que ela tratou "em público", acertadamente, de uma questão da maior importância da devassa e do que ela produziu, incluíndo as 26.800 "roseanas", como já dizem os cariocas, cuja foto foi parar no Jornal Nacional. O assunto motivou o artigo "Onde Roseana tem razão", deste jornalista, na edição de 13/3/02 do Observatório [veja remissão abaixo].
Trata-se da tese de que o material apreendido na Lunus, ao contrário do trabalho em si da PF, não podia ser divulgado, por referir-se a processo que corre em segredo de Justiça. Ainda no último sábado, ao reaparecer em São Luís, Roseana tornou a invocar o argumento do sigilo, repetindo aos jornalistas que não podia se defender por não saber do que era acusada.
Pois bem. "Em particular", como diria Ulysses, e sumariamente, a Folha informou na edição de 15/3/02 (página A 4) que "a alegação de que houve vazamento de dados no processo sobre a empresa de Roseana esbarra num detalhe: o processo é público. Pouco antes da operação da PF, a Justiça havia decidido que não cabe sigilo no caso".
E ainda: "Como o processo a respeito da empresa Lunus é público, os documentos podem ser manuseados não só pela imprensa, mas por qualquer cidadão. As fotos das pilhas de dinheiro encontradas na empresa de Roseana fazem parte dessas peças públicas."
Foi "em particular" porque a informação saiu escondida em duas notinhas na seção Painel. E foi sumariamente porque a notícia da referida decisão da Justiça saiu "sem pai nem mãe" ? as datas, aspas e nomes que teriam de cercar o fato em qualquer matéria que se prezasse. Ainda mais numa questão desse porte.
O resumo da ópera é que uma parte da imprensa é a responsável pela sensação disseminada de que ninguém é inocente nesse X-tudo que mistura roubalheiras na Sudam, teorias conspiratórias, denúncias cabeludas e campanha eleitoral ? "a campanha mais lamacenta que o país já viu desde o fim da ditadura militar", segundo a Veja.
Matérias como as aqui examinadas levam o público à conclusão, falsa e nihilista, como escreveu uma leitora de Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, de que "nesse imbróglio todo, não tem um que preste; é tudo farinha do mesmo saco”.
E isto é uma vergonha.
(*) Jornalista
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Roseana tem razão Luiz Weis