FILHOTES DO RÁDIO
"Disse um dia desses que os programas de auditório e as novelas são dois dos gêneros mais típicos da televisão brasileira. Ou aqueles em que ela, a tevê, deu mais certo no Brasil, tanto do ponto de vista da expressão quanto da recepção. Não que a tevê brasileira tenha inventado esses gêneros, mas aplicou-se tanto na feitura dos programas que conseguiu fazê-los melhor do que os criadores. Aliás, nunca inventamos nada em tevê, embora fôssemos o sexto país a implantar um sistema de transmissão de imagens. Sempre fomos buscar lá fora o que o pessoal de tevê chama de ?formatos?, ou seja, estruturas prontas de uma linha de programas. Há vários formatos para um gênero, ou seja, variam as maneiras de arrumar produtos e subprodutos dos gêneros básicos.
Curiosamente, os dois gêneros em que a tevê brasileira se destacou (novelas e auditório) são filhotes do rádio. Os programas radiofônicos de auditório foram, em gíria da época, uma coqueluche, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Naqueles anos, por quase duas décadas, o sábado e o domingo eram dias de auditório e de glórias das suas rainhas e seus reis: Emilinha Borba, Marlene, Ângela Maria, Caubi Peixoto… E também, como não?, das ?macacas de auditório?, apelido depreciativo dado às mulheres da platéia, as fãs, que mais tarde Silvio Santos passou a homenagear chamando-as de ?minhas colegas de trabalho?. Durante a semana, de segunda a sexta, pontificavam as novelas.
Até o esquema continuou parecido, com a chegada da televisão: novelas durante a semana, auditórios populares nos fins de semana. Num ou noutro canal, havia no meio da semana um grande programa de gala, com platéia.
Apresendores de smoking e gravata borboleta. Artistas em traje de gala. Somente no domingo as tevês apelavam para o popular. Continuou assim, com pequenas adaptações, pois há auditórios menores no meio da semana (Otaviano Costa, Galisteu, Gimenez, Hebe, Leão etc) e novelas chegam aos sábados.
Na época do rádio, não havia baixaria e apelações, quer nos humorísticos, quer nas novelas, quer nos programas de auditório. Por três motivos: a) a sociedade era mais reprimida antes dos anos 60; b) não havia guerra de audiência medida por institutos de pesquisa; e c) não havia imagem.
A imagem trouxe para a cena um fator que o século 20 exacerbou com o cinema e a tevê: o voyeurismo. As seduções foram aguçadas por especialistas. O desejo estendeu-se dos corpos aos objetos, do sexo ao consumo. Ver tornou-se uma fração do ter. Veja! Veja! Veja! A vitrine invade as casas. ?Lamber com a testa? é expressão paulistana muito sugestiva. Testa é cabeça. Degusta-se com a cabeça. O prazer é mental e visual.
A apelação visual liberada invade então os auditórios e as telenovelas, para que os interessados possam lamber com a testa. Parte do público aproveita-se, outra parte queixa-se da ?baixaria?. O avanço tecnológico que permitiu a criaç&atildatilde;o de câmeras mais leves, mais ágeis, deslocou para baixo das partes baixas o ângulo de visão privilegiado do telespectador, aquele, o da testa.
O que se pergunta é se isso era necessário num veículo de entretenimento doméstico como é a televisão. Se era preciso chegar ao ponto de chocar umas pessoas para satisfazer a outras. Por que não chegou a esse ponto em outros países. Se não haveria um horário propício para essas coisas num canal gratuito (uma vez que a turma que paga se regala à vontade), de modo a liberar os bons horários para coisas mais dignas. Se não haveria uma televisão de consenso. Pergunta-se, por fim, se é legítimo não procurar esse consenso, já que tevê é concessão pública."
PUBLICIDADE NA TV
"Se a Justiça não tem meios de disciplinar a apelação de mau gosto e a violência na tevê, se a associação das emissoras acha que não é necessário, se os telespectadores não têm como influir positivamente na programação, supõem alguns que haveria uma instância que poderia de fato forçar uma elevação do nível dos produtos televisivos: a publicidade. Ingênua ilusão.
Nenhum anunciante gostaria de ter sua imagem associada a baixarias – e as suas agências publicitárias zelam por isso. Mas existe uma coisa que não é ofensiva, mas é devastadora em seus efeitos: a mediocridade. E esta é não só tolerada, mas sustentada pelos anunciantes.
A verdade é que, na maioria das vezes, as agências de publicidade não têm o que escolher na televisão, exatamente como os telespectadores mais instruídos ou mais exigentes. O ramerrão é este: agências programam anúncios nos intervalos de qualquer besteira e telespectadores assistem a qualquer besteira, desde que não seja ofensiva. Poucos publicitários atentam para isso, que a falta de opção deles é igual à do público, que eles sustentam mediocridades com a inserção de anúncios, assim como o público as sustenta com o ibope.
As agências dizem que são poucos os programas apelativos hoje. Não faz muito tempo, Ratinho mostrou a tortura de uma criança. O SBT exibiu um linchamento ao vivo. Uma garota de shows de sexo explícito dizia que não é mole. De modo geral, a política dos clientes é não anunciar em programas de mau gosto e recomendam às suas agências não programar atrações que humilhem ou discriminem as pessoas, que explorem defeitos físicos e aberrações da natureza, esportes violentos, crimes ou pornografia. Mas quais são os critérios? Chacrinha discriminava e era considerado apenas um cara engraçado. Quando dizia para uma mulher ?Você é feia assim mesmo ou está com dor de barriga??, todos caiam na risada, e até hoje tem gente que acha que isso é brincadeira, não é humilhação. As pegadinhas não humilham as pessoas?
Ratinho já explorou defeitos físicos, nada indica que não possa fazê-lo de novo, pois ele mesmo declarou que não tem limites; o Domingão do Faustão e o Domingo Legal já o fizeram, mas não parecem dispostos a cair no erro novamente. Aberrações da natureza? O Leão Livre mostrou criança de três cabeças, encenando um show grotesco de comiseração. Crimes? O Linha Direta teve de ser amainado, o Aqui Agora saiu do ar por falta de anúncios, foi substituído pelo Cidade Alerta, mas não estamos livres de uma recaída, é só surgir um assunto como um drogado seqüestrando um ônibus. Pornografia? O conceito é subjetivo, o que é ofensivo para uns (funk, banheira erótica, tomadas ginecológicas das bailarinas, rala e rola nas novelas) não agride a outros.
Outra verdade é que as agências não sabem o que vai ao ar. Muitos apresentadores ?sem limites? atacam de surpresa, quando os comerciais já estão programados. Não há, entretanto, punições; são raríssimas as retiradas punitivas de anúncios já contratados. Na verdade, o que a maioria do pessoal de mídia faz é colocar tantos minutos nos programas de maior audiência no horário nobre, tantos minutos no horário vespertino, tantos no matutino e na madrugada. Apenas alguns programas são selecionados, por profissionais de mídia mais criteriosos, pela qualidade da audiência, como o Jô, o Jornal da Band, o jornal do Boris Casoy, que têm pequena audiência, ou o Jornal Nacional, que a tem alta. O normal é comprar mediocridades por falta de escolha.
Algumas vezes, a publicidade consegue pôr limites nas feras. Ratinho foi para o SBT todo espaçoso porque tinha bom ibope, mas logo se viu que não atraía anúncios. Silvio Santos não é bobo, sabia que não bastava ameaçar a Globo, afinal tevê é um negócio, tem de render dinheiro. E Ratinho foi amansado, agora só ataca de surpresa.
A conclusão é que por aí o público também está desamparado na busca de qualidade na tevê. A baixaria até pode diminuir, mas o nível não sobe."
AUDIÊNCIA
"Telespectador acha que desligar a TV não
dói", copyright Jornal da Tarde, 24/7/01
"Ninguém se espante se houver um baby boom, ou seja, um aumento anormal do índice de nascimentos, nove meses após o período de racionamento de energia.
É uma conclusão lógica de quem examina em conjunto esses dados: ondas de inverno favorecem o aconchego; pesquisas não indicam que esteja havendo aumento significativo na freqüência dos cinemas, teatros e restaurantes; pesquisas indicam que caiu o número de aparelhos de televisão ligados. Já havia sido apurado, numa pesquisa feita em maio, que a população pretendia reduzir bastante o uso da tevê, como um dos recursos menos traumáticos para economizar energia. A própria população havia reconhecido um desperdício nessa área. O horário noturno é o que vem registrando os maiores índices de redução. E o que é que os casais vão fazer em casa, à noite, no inverno, com pouca luz, pouca Internet e pouca tevê?
Sem brincadeira, a verdade é que o público não acredita que perde grande coisa ao desligar a tevê. Há estudos sobre isso. É claro que muita gente passou a economizar porque havia grande desperdício com tevê. Aquele clássico desperdício de deixar o aparelho ligado enquanto fazemos outras coisas pela casa, atribuindo à tevê uma função que era mais propriamente do rádio, ou seja, a de fazer companhia, sem compromisso visual, ocupando apenas a nossa audição. Além disso, enorme parcela do público corta no uso da tevê porque não está satisfeita com a programação.
Dois estudos, um realizado em abril do ano passado e outro em agosto, pela CPM Research, fornecem dados que deveriam mexer com os brios das emissoras.
Um deles, o de abril, desenvolvido nas sete maiores capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e Brasília), ouvindo 2.098 jovens entre 12 e 20 anos, de todas as classes sociais, mostra que 31% assistem à tevê por falta do que fazer. Um terço dos jovens, das pessoas que dentro de dez anos estarão tomando decisões no País, não vê interesse na televisão. Outro dado significativo da mesma pesquisa: 47% não se importariam se toda a programação ficasse fora do ar por uma semana. É quase a metade dos entrevistados quem diz isso. Transportando o dado para a situação de racionamento que vivemos hoje: não vai fazer a menor falta para os jovens desligar a tevê por uma semana. O desprestígio do veículo é evidente.
O estudo do último mês de agosto foi realizado apenas na cidade de São Paulo e diz respeito à qualidade da programação. Como se sabe, a pesquisa minuto a minuto do Ibope é feita somente em São Paulo e é considerada parâmetro nacional porque a migração concentrou aqui massas regionais de todos os Estados. O estudo citado, no entanto, visava apenas a apurar a opinião dos maiores consumidores, que são homens e mulheres de 18 a 44 anos, das classes A e B. Conclusão: 53% dos entrevistados consideraram que a televisão havia piorado no último ano.
Só não vê quem não quer a relação de causa e efeito entre qualidade e desinteresse. As emissoras não ligam porque para elas está bom assim. Com exceção da Cultura e, de certa forma, da Globo, não cuidam da sua marca, não buscam a relevância, não conquistam o respeito do público. As tevês comerciais, sem exceção, querem a audiência de curto prazo. Maus programas são mantidos e bons programas são banidos em nome da alta audiência, do grosso, sem atentar para a segmentação e qualificação do público. Acham que tal programa atende ao público feminino, e mandam ver; que tal exibição agrada aos homens, e tome popozuda; que tal filme interessa aos jovens, e tome violência; que tal classe social gosta de baixaria, e lá vai; que as crianças gostam de louras, e tome descolorante.
Tudo impressionismo, não há um trabalho sério de pesquisa segmentada de público. A intenção de quem produz determinados programas é atingir públicos específicos, e eles são vendidos como tal, mas se agradam ou não ao público a que se dirigem, não se sabe. Ou antes, só se sabe pelo Ibope, que é uma pesquisa de quantidade e não de qualidade."