Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ives Gandra Martins

LEI DA MORDAÇA

"Responsabilidade administrativa", copyright Folha de S. Paulo, 28/12/02

"Discute-se se a autoridade pública, que deve guardar sigilo das informações que detém, principalmente quando dotada de funções investigativas, poderia ou não repassá-las à imprensa, ?em off?, ou em entrevistas descuidadas, sem ser responsabilizada.

As autoridades interessadas na não-responsabilização e setores dos meios de comunicação alcunharam o projeto de lei em tramitação no Congresso, de forma pejorativa e com o intuito de desmoralizá-lo, de ?Lei da Mordaça?.

Compreendo o interesse da imprensa em obter, a qualquer custo, a informação privilegiada, mas causa-me espécie que as autoridades públicas, que defendem a idéia de revelar ?investigações em curso? ou simplesmente a praticam, desconheçam normas fundamentais da Constituição, como as que estão nos incisos X e LVII do artigo 5?, assim redigidos: ?X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação?; ?LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória?.

Pelo primeiro, a privacidade é assegurada. Pelo segundo, a presunção de inocência é garantida até o trânsito em julgado das decisões condenatórias. Vale dizer, mesmo existindo condenações em instâncias inferiores, o constituinte entendeu existir a ?presunção de inocência?, enquanto houver recursos e defesa possíveis.

Ora, é notório que o principal ?tribunal? desfigurador da imagem das pessoas é a imprensa. Uma acusação veiculada pela mídia, em primeira página, substitui a ?presunção da inocência? por aquela ?da culpabilidade?, mesmo que a pessoa não seja culpada, impedindo, assim, que sua imagem seja um dia plenamente recuperada. Foi o que ocorreu com os inocentes dirigentes da Escola de Base ou com o presidente que mais títulos deu ao São Paulo Futebol Clube, José Eduardo de Mesquita Pimenta. Idêntica desfiguração ocorreu com o deputado Ibsen Pinheiro.

Pior do que isso. O próprio interesse público resta atingido quando a notícia é divulgada previamente, pelas autoridades contaminadas pela ?síndrome do holofote?. Investigações que só poderiam se revelar proveitosas se desenvolvidas de forma sigilosa resultarão frustradas, visto que o ?presumível culpado?, alertado, terá condições de destruir provas ainda não coletadas.

A informação privilegiada -transferida para os meios de comunicação contra a lei e a Constituição, as quais impõem rigoroso sigilo às autoridades com poderes investigativos-, em verdade, objetiva a condenação prévia, pela sociedade, de pessoas que passam a ter o seu direito de defesa diminuído, principalmente quando julgadas por ?juízes emotivos?, como são os júris populares.

Em outras palavras, pretendem as autoridades ?indiscretas?, com o auxílio da opinião pública formatada pela imprensa, derrubar o amplo direito de defesa, assegurado pelo artigo 5?, inciso LV, da lei suprema, assim redigido: ?Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes?.

O que, todavia, é mais triste em relação à maioria daquelas autoridades que deveriam guardar sigilo é que a vaidade pessoal e a vontade de aparecer, de ser manchete de jornais, torna-se a grande obsessão de suas vidas e de seus currículos, preenchidos à custa da desobediência à lei.

Essa é a razão pela qual entendo que responsabilizar as autoridades que descumprem a lei do sigilo é forma de valorizar a Constituição e assegurar a cidadania, que impõe respeito à imagem da pessoa, assim como assegura o direito de defesa, só podendo ser condenada de acordo com o que dispõe a lei, e não por preconceitos conformados por indiscrições ilegais. (Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército.)"

 

"Os abusos da Lei da Mordaça", copyright Folha de S. Paulo, 28/12/02

"A Lei da Mordaça é um desses erros que cometemos quando agimos movidos pela bílis. Trata-se, na verdade, de um projeto de lei em gestação, claramente inspirado e impulsionado por reações pouco pensadas. A essência da questão que mais se debate -a mordaça- está enunciada na alínea ?j? do artigo 4, que transcrevo:

?Revelar o magistrado, o membro do Ministério Público e membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou administrativa, ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas?.

Aprovado na Câmara, o projeto será submetido agora, em última etapa, ao plenário do Senado. Está perigosamente, portanto, a apenas um passo de ganhar força de lei. A essa altura, há ainda quem insista em chamá-lo de ?Lei contra Abuso de Autoridade?. De minha parte, fico com o codinome, Lei da Mordaça, que é mais um desses achados precisos que brotam da criatividade jornalística.

Mordaça, definem Aurélio e Houaiss em verbetes próprios em seus dicionários, é uma tira ou qualquer outro material com que se ata a boca de uma pessoa para impedi-la de falar. Isso, sem tirar nem pôr, é também o que o projeto de lei propõe, por meio de linhas sinuosas que tentam desviar a atenção do verdadeiro objetivo.

Durante a tramitação no Congresso, o texto sofreu emendas. Uma delas, que resgato da lixeira para melhor compreender as artimanhas da proposta, suprimiu do projeto original a referência aos alvos que o autor botou na mira: investigação, inquérito ou processo. Ou seja, delegado, promotor e juiz. Todos eles têm, no entanto, a receita de suas condutas previstas em normas próprias.

Assim, por exemplo, a Lei Orgânica da Magistratura não permite que o juiz opine sobre causas que estejam aos seus cuidados. É proibida também a divulgação de fatos resguardados pelo segredo de Justiça. Não se tem notícia, senão por exceção, de que essas regras, bastante claras, sejam rompidas abusivamente pelas autoridades a elas submetidas.

A intenção do projeto não é, assim, o de corrigir a exceção. O disparo é certeiro: matar a regra, para impedir que informações sobre casos de corrupção na administração pública cheguem ao conhecimento da sociedade.

A Lei da Mordaça, deliberadamente, mistura e confunde conceitos para impor um sigilo que abala pilares básicos da construção da democracia no Brasil: a liberdade de informar e o direito de ser informado. No primeiro caso, a tentativa é a de calar a voz dos agentes públicos e, na sequência, a voz da imprensa. Esta também explicitamente citada na proposta. O projeto fere de morte o direito de todo cidadão de ser bem e honestamente informado e, por outro lado, o dever dos meios de comunicação de observarem a ética e a seriedade, no seu incessante e inesgotável trabalho de esclarecer e criticar, tendo como alvo utópico a busca do verdadeiro.

Não é preciso usar lupa para perceber que este cerco, embora seja amplo, faz-se principalmente em torno do trabalho de investigação do Ministério Público, que, nos últimos anos, tem levado para o banco dos réus personagens que, pela cor do colarinho, sempre ficaram fora do alcance da investigação.

Abusos existem, sabe-se bem, seja do delegado, do promotor, do juiz ou do jornalista, mas nada que justifique medidas tão extremas que comprometam as instituições e suas funções imprescindíveis. Para coibir abusos, o legislador quer impedir o uso. A conclusão é elementar: o uso de um erro contra outro não configura o acerto do projeto.

Aqui vale uma consideração de ordem subjetiva. Existe no Brasil uma cultura que marca a repulsa de alguns privilegiados à democratização da Justiça. É um hábito cuja sentença de morte vem sendo decretada pelo avanço político, imposto pelas exigências da cidadania. A democracia é um regime da desconfiança institucionalizada. Ficar sob o crivo da fiscalização não implica atestado de culpa. Salvo, é claro, se culpa houver. Nesse sentido a mordaça é um emblema. Ela abafa o grito da cidadania.

Denise Frossard, juíza aposentada, é deputada federal eleita pelo PSDB-RJ. É fundadora da Transparência Brasil e co-autora do livro ?Os Caminhos da Transparência?."

 

ELEIÇÕES 2002 / BALANÇO

"Afinal, a Globo lulou?", copyright Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br), 30/12/02

"Quando o Jornal Nacional do dia 28 de outubro entrou no ar e o então recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva apareceu na tela, o que muitos julgavam inimaginável aconteceu. Lula permaneceu sentado ao lado do apresentador William Bonner durante toda a excepcionalmente longa edição do principal telejornal da mais poderosa rede de comunicação do Brasil. Ao final do programa, a pergunta era uma só: a Globo ?lulou??

O ano de 2002 não foi interessante apenas pela vitória do Partido dos Trabalhadores na eleição presidencial. Para quem acompanha de perto o comportamento da mídia brasileira, os últimos doze meses foram um prato cheio.

Ao contrário do que ocorreu nas campanhas presidenciais de 1989, 1994 e 1998, desta vez a imprensa brasileira não fechou com o candidato do status quo, o senador tucano José Serra. Alguns órgãos o apoiaram até ostensivamente, é certo, mas a grande diferença na cobertura das eleições deste ano foi o tratamento dispensado à principal candidatura de oposição, que nem de longe sofreu os ataques do passado.

Mudou Lula ou mudou a mídia brasileira? Por mais paradoxal que possa parecer, nem um nem outro mudaram tanto assim, da noite para o dia. O Lula de 2002 estava quase todo escrito em 1998 e o candidato de 1994 também já era muito diferente do de 1989. A moderação do PT é um processo que começou há muito tempo: se a legenda tivesse vencido quatro anos atrás, o comando moderado que está dando as cartas no novo governo estaria cumprindo o mesmíssimo papel de hoje.

Por outro lado, o perfil do setor de comunicação que existia em 1989 também quase não foi alterado. Os barões da imprensa são rigorosamente os mesmos, com duas exceções. Senão vejamos: a maior rede de televisão do país era, em 1989, e continua sendo a Globo dos Marinho. A vice-liderança do SBT de Sílvio Santos ainda é inconteste. Os Saad continuam correndo por fora com a Rede Bandeirantes e os Stirosky da RBS detêm, em aliança com a Globo, uma força considerável na região Sul. A novidade na área televisiva foi o crescimento das igrejas evangélicas, Bispo Edir Macedo à frente.

Na mídia impressa, também há uma mudança digna de nota: a troca de comando no Jornal do Brasil, hoje controlado pelo empresário Nelson Tanure (mas ainda com participação acionária dos antigos proprietários, os Nascimento Brito). Já as famílias Civita (Editora Abril), Mesquita (O Estado de São Paulo), Frias (Folha de São Paulo), Marinho (Editora Globo, jornal O Globo), Levy (Gazeta Mercantil) reinavam e reinam léguas adiante dos demais concorrentes. Um pouco atrás deste primeiro time, mas com algum poder de fogo, estão os veículos controlados pelos condôminos dos Diários Associados, dos quais o Correio Braziliense e O Estado de Minas são os mais expressivos. O jornal Valor Econômico, que não existia em 1989, é uma associação das famílias Frias e Marinho, e não constitui propriamente uma mudança no perfil do setor. O mesmo se aplica à revista Época, da Editora Globo.

Ora, se Lula não mudou tanto e se a imprensa continua nas mãos dos mesmos que o hostilizaram por todos esses anos, então como explicar o tratamento diferenciado recebido nas eleições de 2002? A resposta não é tão complicada como parece. O setor de comunicação brasileiro vive uma crise aguda e provavelmente precisará de ajuda estatal (que já está sendo alcunhada de ?ProPress?, para lembrar o malfadado Proer). Não se trata de uma crise qualquer e a solução que as famílias que controlam o setor haviam planejado para superá-la parece não ter surtido efeito, pelo menos até agora: a abertura do setor ao capital externo saiu no início deste ano e, desde então, nenhum negócio foi fechado. É que, lá fora, o setor de comunicação também está em crise: o desaquecimento da economia americana fez diminuir fortemente o volume de publicidade, reduzindo as receitas, e as empresas se endividaram ao superdimensionar o mercado das novas mídias (TV a cabo, internet etc.), aumentando suas despesas.

Assim, sem o dinheiro do exterior e endividadas em dólar, as empresas de comunicação, na campanha deste ano, pensaram duas vezes antes de bater de frente com um provável presidente da República. O predileto dos barões da mídia era José Serra, claro, mas as pesquisas indicavam que o tucano tinha pouca chance de reverter a diferença que Lula abriu desde o início. Percebendo que as dificuldades para eleger o favorito seriam muito grandes, o baronato preferiu tentar ?blindar? Lula, cobrando do petista, a todo instante, que ele prometesse manter os sagrados ?fundamentos? da atual política econômica.

De sua parte, o então candidato do PT também se esforçou para se tornar palatável e manteve conversações com os donos ou principais executivos das grandes empresas, garantindo que seu partido não obstruiria o processo de regulamentação da lei que abriu o setor ao capital externo.

O resultado de tudo isso é conhecido. Sem sofrer grandes ataques, Lula venceu com maioria folgada no segundo turno. Atualmente, parte da imprensa brasileira está em ?lua-de-mel? com o presidente. Outra parte já se posiciona para começar a cobrar (ou chantagear) o novo governo. Mas isto é assunto da coluna da próxima edição.

(Luiz Antonio Magalhães é editor-assistente do Observatório da Imprensa (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br).)"