NORMA 004/95 REVOGADA
Rogério Gonçalves
(*)
Conversando com o meu amigo Zé, que além de pipoqueiro
da esquina é também técnico de futebol e especialista
em internet como qualquer brasileiro, comentei sobre a norma 004/95
e os barracos causados por ela, envolvendo vendas casadas, oligopólios,
sonegação de impostos, caixas 2 e mais um monte de
picaretagens do ramo. De repente, com um ar superior, ele me soltou
a seguinte pérola:
? Ô Rogério, não tô te entendendo! Logo
você, que gosta tanto de pesquisar sobre telecom, ainda não
descobriu que a norma 004/95 foi revogada junto com a Lei 4.117
pelo artigo 215 da Lei Geral das Telecomunicações
em 1997?
É claro que a minha primeira impressão foi a de que
o Zé acabara de dizer uma tremenda besteira, pois, afinal,
se a norma tivesse sido mesmo revogada, por que então estaria
sendo usada até hoje pelos advogados, alguns até de
renome, em ações sobre incidência de ICMS ou
prática de vendas casadas envolvendo o uso da internet? Parecia
que o Zé havia tomado uma overdose de Burrol, pois se em
2002 a própria Anatel, que sabe tudo de leis de telecomunicações,
ainda recorria à norma 004/95 para dar fundamento a vendas
casadas, como ocorreu no ofício de n? 251/2002 PVSTR/PVST/SPV-Anatel,
datado de 29 de maio de 2002, na ação civil pública
movida pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro,
contra a própria agência e a Telemar, como seria possível
a um simples pipoqueiro ter a petulância de questionar atos
oficiais da entidade reguladora?
E, antes que eu abrisse o bico, o meu amigo explicou:
? Veja bem, as normas e regulamentos são usados para detalhar
procedimentos específicos para execução das
leis. Por isso é obrigatório que sempre seja incluído
no início de seus textos o número da lei maior, aprovada
pelo Congresso Nacional, para a qual está sendo detalhada
a execução total ou de alguma parte dela. As normas
e regulamentos são hierarquicamente inferiores às
leis que lhes dão sustentação legal, mantendo
com elas relações de dependência direta, como
se fossem manuais de instruções para aplicar a lei.
E continuou:
? Assim, se a lei à qual a norma está atrelada for
revogada, automaticamente a norma estará detalhando procedimentos
para algo que deixou de existir, perdendo ela também a sua
finalidade e indo pro espaço junto com a sua lei maior.
E concluiu:
? No caso da norma 004/95, como a LGT revogou explicitamente a
Lei 4.117, não dá nem para enquadrá-la entre
as demais normas que são objeto do artigo 214, porque ela
simplesmente deixou de vigorar devido ao fim de sua lei maior.
Interesse claro
Ao perceber a minha cara abestada, e, como querendo se justificar,
o Zé ainda arrematou:
? É claro que este é o modesto entendimento de um
pipoqueiro que entende de internet, que não necessariamente
será o mesmo de um advogado que entende de internet. De qualquer
forma, te indico um site, que pode ser acessado no endereço
<http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/
doutrina_showdoutrina.asp?tema=1&iddoutrina=1076>, no qual
o doutor Márcio Louzada Carpena, que me parece mais especializado
em hierarquia de leis do que em internet, faz brilhante explanação
sobre o assunto, do qual destaco o seguinte trecho escrito em linguagem
de advogado, considerando-se a LGT como fonte primária e
a norma 004/95 como fonte secundária:
“Seguindo a ordem escalonada, abaixo dessas fontes primárias
antes referidas, logo abaixo da Constituição,
têm-se na estrutura piramidal as fontes secundárias
que são os decretos regulamentares, portarias, instruções
normativas, convênios, enfim, atos da administração
pública, editados para complementar aquelas, as primárias.
As fontes formais secundárias são aquelas que
contêm um comando geral do Executivo, visando à
correta aplicação da lei. Como lembra Hely Lopes
Meirelles, o objetivo imediato de tais atos é explicitar
a norma legal a ser observada pela administração
e pelos administrados, expressando em minúcia o mandamento
abstrato da lei. Não são leis em sentido formal,
mas tão só no material, já que proveniente
do executivo.
Por assim serem, constituem espécies hierarquicamente
inferiores às primárias, criadas para complementá-las,
sendo inexoravelmente vinculadas e subordinadas, não
podendo criar obrigações ou ônus não
previstos nessas, pois, se assim o fizessem, estariam no mesmo
patamar delas, o que levaria a concluir que caberia à
administração pública substituir o legislativo,
o que não é aceitável.”
Cacilda! Pensei, isso muda tudo, pois significa que toda aquela
baboseira sobre PSCI, internet ser serviço de valor adicionado
e demais sandices da norma 004/95 simplesmente deixaram de valer
desde 1997, e só o meu amigo pipoqueiro-consultor de internet
percebeu!
Tá lá na LGT para quem quiser ver:
Art. 215. Ficam revogados:
I ? a Lei n? 4.117, de 27 de agosto de 1962, salvo quanto a
matéria penal não tratada nesta Lei e quanto aos
preceitos relativos à radiodifusão;
O que deve ter acontecido? Talvez um apagão geral na mente
dos doutores especialistas em internet? Por que será que
o Comitê Gestor da Internet, que foi inventado justamente
para fazer prosperar as cascatas da norma, continuou incentivando
a sonegação fiscal mesmo após a revogação
dela? E o que falar da Anatel, no caso do ofício enviado
ao MPF do Rio, que, em pleno ano de 2002, ainda emitia documentos
oficiais baseados na norma revogada? Será que deu um apagão
nela também?
Particularmente, acho que o procedimento da Anatel em relação
à norma 004/95 envolva uma relação paterna,
pois como muitos dos seus autores atualmente ocupam cargos de direção
na agência, pode ser que, como nos filmes de Frankenstein,
tenha sido extremamente difícil para eles admitir o fim da
horrenda criatura.
Atualmente, no Brasil, igual ao que ocorre em vários lugares
do mundo, as concessionárias de telefonia fixa exploram em
forma de oligopólio todas as conexões internet realizadas
através de linhas telefônicas convencionais, desmentindo
categoricamente o principal argumento do Comitê Gestor da
Internet, da RNP, da Fapesp e demais entidades envolvidas com internet
para justificar a existência da norma 004/95. Todos eles alegavam
que ela serviria justamente para evitar que isso acontecesse.
Isto reforça as suspeitas de que a norma teria sido editada
exclusivamente para atender ao lobby de grandes empresas usuárias
de telecomunicações interessadas em ter suas próprias
redes de comunicação de dados. Criaram em 1993 a Anust
(Associação Nacional dos Usuários de Telecomunicações),
que tinha por objetivo influir na revisão constitucional
prevista para ocorrer naquele ano.
O interesse da Anust era bem claro: livrar-se dos serviços
estatais de comunicação de dados, explorados em regime
de monopólio garantido pela Constituição, como
o Renpac e o Transdata, procurando não desestatizar e sim
descaracterizar a comunicação de dados como serviço
de telecomunicações, o que foi tentado de fato com
a norma 004/95.
Falta ver o óbvio
Neste caso, a criação do Comitê Gestor da Internet,
que tinha inmtegrantes da RNP, da Fapesp e da Febraban (representando
a Anust), poderia perfeitamente ter servido para desviar a atenção
da opinião pública com discursos pré-fabricados
sobre monopólio das teles e provedores nanicos, enquanto
as empresas associadas à Anust agiam nos bastidores implantando
grandes redes IP corporativas, o verdadeiro filé da internet.
Durante todos estes anos os jornalistas especializados em internet
limitaram-se a ouvir sempre os mesmos caras que falavam sempre a
mesma coisa, invariavelmente profissionais envolvidos apenas com
estruturas de redes ou ONGs. Muito raramente algum jornalista se
preocupou em ouvir o que tinham a dizer os representantes de outras
atividades diretamente relacionadas à internet, como a galera
da informática, responsável pelos protocolos de comunicações
utilizados na rede, e, conseqüentemente, pela criação
dos tais serviços de valor adicionado, que na realidade são
apenas programas de computador, ilegalmente descaracterizados pela
norma 004/95.
Para os prezados jornalistas que não agiram a mando de grandes
grupos interessados em redes IP corporativas, a má notícia
é que infelizmente eles foram feitos de trouxas pela equipe
de Sérgio Motta e usados apenas para desviar o foco da discussão
sobre internet exatamente para onde eles queriam, esquecendo completamente
a existência da Anust e de suas grandes redes IP corporativas.
O desconhecimento demonstrado por todos os jornalistas sobre a
revogação da norma 004/95 só serviu para provar
que suas fontes atuais não são nada confiáveis.
Sei lá. Só sei que, graças ao Zé Pipoqueiro,
acabou pintando um assunto que merece ser discutido em profundidade
por todos aqueles que se julgam especialistas em internet neste
país, que faço questão de compartilhar com
os leitores.
Valeu, Zé. Se depois dessa a ficha do pessoal não
cair, não esquente a sua moringa, pois você fez a sua
parte, ficando agora por conta do pessoal apenas enxergar o óbvio.
(*) Webmaster do username:Brasil <http://user.atualize.net>