Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jaime Biaggio

CARYBÉ & RUBEM BRAGA

“Viagem rumo à personalidade de um estado”, copyright O Globo, 13/01/04

“Entre dezembro de 1953 e janeiro de 1954, atendendo a um convite do governador do Espírito Santo, o cronista Rubem Braga e o desenhista Hector Bernabó, o Carybé, passaram cerca de 20 dias percorrendo todos os recantos do estado no intuito de elaborar um guia de viagem. Entre o convite (ocorrido em 1951), a viagem e a organização do material, o poder trocou de mãos no estado. O material ficou inédito até 1980.

Ao ser finalmente publicado décadas depois, já não foi no formato de guia de viagem, é claro, mas como o material de autêntica expressão artística que a empreitada gerara: um livro de gravuras, com pequenas notas-legendas acompanhando-as (?Uma viagem capixaba de Carybé e Rubem Braga?) e um de crônicas (?Crônicas do Espírito Santo?), assinado só por Braga.

Ontem, o dia em que Braga completaria 91 anos de idade, o músico e agora cineasta de Cachoeiro do Itapemirim João Moraes (líder da banda de rock João Moraes e a Patuléia) saiu para a estrada, com o desenhista/animador Diego Scarparo a tiracolo, para refazer a viagem de Braga e Carybé. Os resultados serão vistos num documentário que Moraes vai dirigir, ?Viagem capixaba, um olhar de Rubem Braga e Carybé hoje?. Ele fez a viagem semanas atrás, por sinal.

? Entre 30 de dezembro e 4 de janeiro, viajei 3.500 quilômetros pelo Espírito Santo, fotografando locações e fazendo o planejamento das filmagens ? conta ele. ? Na filmagem, é possível que faça até mais.

Estado mudou muito em 50 anos, mas as estradas não

Se o Espírito Santo está bem diferente nesses 50 anos, parte do percurso da viagem é o mesmo, ou quase isso.

? Tem que ter certa disposição para comer um pouco de poeira e lama ? reconhece o diretor. ? É muita estrada de chão. Eles fizeram o trajeto de jipe na época, e a situação das estradas por que passaram é mais ou menos a mesma ainda hoje.

Aonde essas estradas levam já é outro papo. O estado, que então tinha economia inteiramente baseada na agricultura, é hoje industrializado. O contraste presente/passado será evocado através das gravuras de Carybé. Não haverá neste filme quaisquer imagens de arquivo em movimento. Mesmo porque as da viagem original ainda não foram localizadas.

? Sabe-se que um fotógrafo chamado Hans Mann, cuja especialidade era fotografar rotas sacras, acompanhou parte da viagem, até porque havia esse propósito do guia de viagem ? diz Moraes. ? E eu estou tentando localizá-lo e o seu material. Ele estava vivo até 1993, é só o que sei.

O documentário, que deverá ter uma hora de duração e se destina à exibição na TV pública, utilizará trechos de crônicas de Rubem Braga lidos por um locutor. Um segundo locutor, Afonso Abreu, sobrinho de Braga e produtor cultural bastante conhecido no estado, vai fornecer informações gerais. E Diego Scarparo, além de trabalhar diante da câmera sobre as mesmas imagens que inspiraram Carybé, fará animações e créditos para o filme.

? Não será um tom lírico ou sentimental ? diz Moraes. ? É algo lúdico, dinâmico. A idéia é que o espectador conheça a personalidade capixaba.”

 

ENTREVISTA / MARÇAL AQUINO

“O rei da biografia mundana”, copyright Jornal do Brasil, 15/01/04

“Reconhecida, sua prosa é. Pelo menos aos olhos da crítica e de teóricos das universidades, que o apontam como um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Mas Marçal Aquino tem um acerto de contas a fazer com o cinema, depois que passou a ter seu nome nos créditos de uma cultuada trinca de filmes: Os matadores (1997), Ação entre amigos (1998) e O invasor (2002), que escreveu para o amigo Beto Brant dirigir. O jornalista paulista de 45 anos, que hoje, às 18h30, vai falar no tradicional ciclo de palestras Rodas de Leitura do Centro Cultural Banco do Brasil, já recebeu um Jabuti (pelo livro de contos Amor e outros objetos pontiagudos), entre outros prêmios. Mas, desde que conheceu o sucesso na tela grande, tem de esconder um certo desconforto ao ver que a atuação como roteirista por vezes ofusca o trabalho de escritor.

– Sou um autor que escreve roteiros. Não um roteirista profissional – esclarece.

A observação é feita com serenidade de caubói do asfalto, a la Sam Shepard. Afinal, ele não pára de prestar serviços à indústria cinematográfica. Sua mais recente colaboração para a seara dos longas-metragens é Nina, uma adaptação do clássico russo Crime e castigo, de Dostoiévski, dirigida por Heitor Dhalia, que será exibida no Festival de Roterdã, na Holanda, de 28 a 31 deste mês. Escreveu ainda uma versão de Um crime delicado, de Sérgio Sant?anna, para uma quarta parceria com Beto Brant. O roteiro terá Marco Ricca como produtor e protagonista. Fechou 2003 adaptando O cheiro do ralo, primeiro romance do quadrinista paulista Lourenço Mutarelli – ?um livraço?, avaliza -, que também será dirigido por Dhalia.

Apesar de bater ponto com freqüência nas telas, no fundo, no fundo, Marçal não gosta de ver seu nome atrelado ao cinema. O mundo onde se sente em casa não é o do celulóide, mas o das páginas de livros.

– Prefiro que me vejam sempre como um escritor antes de tudo. Não quero soar pretensioso, mas meu compromisso primeiro é com a literatura – diz Marçal, que nasceu numa fazenda em Amparo, no interior de São Paulo, e se apaixonou pela palavra impressa devorando gibis.

– Lia tudo que era quadrinho quando moleque. Sou da geração que acompanhou a chegada da Marvel no Brasil, com o Homem-Aranha e outros heróis. Por isso, fico feliz quando vejo Alice, minha filha de 11 anos, lendo a Turma da Mônica.

O rótulo ?autor policial? é outra classificação reducionista com que Marçal se depara com freqüência, por sua obsessão em investigar a marginalidade, explorando, sobretudo, o código de ética dos assassinos de aluguel. Uma peculiaridade que começou a chamar a atenção dos pesquisadores literários para seus escritos.

– Marçal é um escritor que fala da periferia com autenticidade, sem macaquear a cara das comunidades que descreve, usando períodos curtos, onde a pontuação dá ritmo ao texto – define a crítica e professora de literatura da Uni-Rio Beatriz Rezende, que não esconde a admiração por sua obra.

Marçal não vê mal em ser associado ao gênero policialesco, mas vai tentar mostrar que seus temas não se resumem a tiras corruptos e bandidos com algum coração durante a Roda de Leitura no CCBB, onde lerá trechos da coletânea Famílias terrivelmente felizes, lançada ano passado pela Cosac & Naify. Segundo ele, o jornalismo lhe deu o olhar para descobrir o que há de literário na vida alheia. Marçal trabalhou em redações até 1990, passando pelo Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e a extinta A Gazeta Esportiva.

– O jornalismo me fez buscar a concisão e ensinou que ouvir pessoas é tudo. Quando vejo um casal discutindo num bar, logo começo a imaginar o diálogo da briga. Na verdade, o que faço nos livros é falar do misto de miséria e maravilha que há na vida de qualquer um. Acho que sou o rei da biografia mundana – explica.

Marçal debutou nas letras pela poesia, através dos versos de Por bares nunca dantes naufragados, de 1985, e até aceita que o roteiro seja interpretado como peça literária. Mas, para ele, a força do verbo (o seu pelo menos) está mesmo nas historietas que escreve desde a década de 80.

– Sou partidário da visão de Julio Cortázar, que comparava a literatura à luta de boxe. O romance ganha o leitor por pontos. O conto, por nocaute – diz Marçal, que atualmente escreve uma versão de sua novela Cabeça a prêmio, de 2003, para mais uma adaptação nas telas, que terá direção de Karim Aïnouz (de Madame Satã).

A redação de Amor sujo, o roteiro de um longa, desta vez independente de livros já publicados, também anda ocupando o autor, que ganhou um prêmio do Ministério da Cultura para desenvolvimento do texto.

Poesia, hoje, é um caminho que Marçal parece evitar:

– Não se pode renegar nem os bilhetes que a gente escreve pra empregada. Mas não faria poesia de novo. Seria uma afronta aos poetas que eu respeito mais: a santíssima trindade Drummond, Manuel Bandeira e Murilo Mendes – diz o escritor, que não perdeu a chance de escrever para o teatro e criou um dos esquetes da peça Quatro estações, que estréia em fevereiro em São Paulo, dirigida por Beth Lopes.

Despida de adjetivos, advérbios e firulas de linguagem, a literatura de Marçal tem tempo e ritmo característicos de um thriller hollywoodiano. Decano da crítica cinematográfica, Ely Azeredo analisou o romance que forneceu a matéria-prima do filme O invasor.

– A novela original respira cinema por muitos poros.

O diretor Heitor Dhalia, que convidou o escritor para transpor Crime e castigo para o Brasil de hoje em Nina, também identifica cinema na prosa dele.

– Marçal pensa em cinema quando escreve. E evita que os diálogos de seus roteiros soem literários demais – diz o diretor, que encarou o desafio de ser o primeiro, depois de Beto Brant, a dirigir um roteiro de Marçal.

– Beto trabalhou textos que eram frutos do universo literário dele. Nina é outro tipo de cinema, a versão de Marçal para a obra de outro autor – diz.

– O roteiro é uma homenagem a Dostoiévski, mas sem reverência. Se não, não dá cinema – explica Marçal.

O escritor Flávio Moreira da Costa, que incluiu Marçal no time de autores de Os 100 melhores contos de crime & mistério da literatura universal, organizado por ele para a Ediouro, define Marçal como o cronista da violência brasileira.

– Com sua técnica ágil de equilibrar ação e diálogo, Marçal está no meio do caminho entre Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, lembrando Antônio de Alcântara Machado em sua forma de abordar tipos populares – elogia.

Marçal não nega que nomes como Fonseca fizeram parte de sua educação literária, que abarca de contos de Ernest Hemingway a Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu. Recentemente, foi pego de assalto pelo jovem João Paulo Cuenca, de 24 anos, cujo romance, Corpo presente, vem sendo saudado quase unanimemente pela crítica.

– Li as primeiras páginas de Corpo presente numa tacada, de pé na livraria. Cuenca é muito potente. Gosto disso na literatura: ser surpreendido pelo novo.”

 

QUEBRA-CABEÇA BRASIL

“Para entender a sociedade brasileira em 16 capítulos”, copyright O Estado de São Paulo, 17/01/04

“Cidadania e história são os temas de Quebra-cabeça Brasil (Ática, 168 págs., R$ 19,90) de Gilberto Dimenstein e Alvaro Cesar Giansanti. O livro é dividido em 16 capítulos que tratam de questões do cotidiano brasileiro como a infância, situação da mulher e o feminismo, identidade cultural, religião, reforma agrária além de assuntos recentes como o novo Código Civil, a Chacina da Candelária, ecologia, liberdade de expressão, entre outros.

A idéia de publicar esse livro, segundo Alvaro Cesar Giansanti, surgiu de conversas entre Gilberto Dimenstein com os editores da Ática. ?O Gilberto queria traçar um painel sobre a evolução dos direitos existentes no Brasil, apontando ao mesmo tempo seus avanços e limitações, sem parecer um tratado acadêmico. Dessas conversas, surgiu a proposta de formar um grupo de trabalho, coordenado pelo editor Leonardo Chianca, e foi então que surgiu o convite para eu desenvolver a pesquisa histórica sobre o assunto.?

No início o grupo relacionou cerca de 30 temas considerados fundamentais para entender a sociedade brasileira. ?Queríamos partir de um fato inusitado, uma ?efeméride?, que servisse como ponto de partida para o desenvolvimento da história do assunto.? Os textos foram transformados em painéis compactos, com imagens, boxes e atividades. O projeto gráfico merece atenção especial, facilita e estimula a leitura. Todo esse processo levou dois anos.

Os assuntos são tratados de forma direta, com um rico painel histórico e assuntos discutidos recentemente pela mídia. A situação dos meninos de rua, o trabalho infantil são analisados paralelamente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. No assunto referente ao novo Código Civil, os autores destacam as lutas e assuntos ainda não resolvidos, como os direitos dos homossexuais.

Boa parte dos textos nasceu nas aulas do professor Alvaro. ?Muitos textos foram produzidos a partir de materiais trabalhados em aula por mim. Além disso, tem a questão do foco sobre a cidadania, assunto com o qual venho desenvolvendo os conteúdos de História há muitos anos, desde que comecei a trabalhar em escolas públicas, há 20 anos. É preciso destacar que tudo isso nasceu a partir da leitura das obras de Gilberto Dimenstein, especialmente Cidadão de Papel.?”