É NATAL
Deonísio da Silva (*)
Várias revistas vêm dando capa a Jesus neste fim de ano. Publicacões de alto nível, de qualificadas redações, como Galileu, Superinteressante, Veja e a Cult, entre outras, obtiveram o conhecido desempenho de números anteriores, sobretudo a primeira. Não deve ter sido fácil. É compreensível. Todos os anos a pauta, se não é a mesma, é muito semelhante. O signatário padece de sofrimento semelhante nesta época do ano na coluna semanal de etimologia que faz para Caras. O Natal semelha, então, a quaresma, a paixão. Não a de Cristo, mas a do colunista. Proclamo aqui os bons entendimentos que tenho com os jornalistas Nilson Marcon e Judith Patarra, editores daquela revista, que funcionam como orientadores de pesquisa do colunista, como se estivessem na universidade. Sugerem novos temas, outros olhares, novas indagações.
Não faltou imaginação nas pauta das revistas citadas. Li as quatro. Para quem conhece a bibliografia ali reunida e consultada, há pouco de novo em todas elas acerca do tema de capa, ou melhor, da personagem. Mas é raro que na imprensa brasileira tenhamos tal momento de excelência. Superinteressante foi a que ousou mais. A chamada de capa ? "A verdadeira história de Jesus"? talvez soe um tanto pernóstica: as outras histórias de Jesus não são verdadeiras? Mas não está em desacordo com o belo texto de Rodrigo Cavalcante.
O título interno é perfeito: "Quem foi Jesus?" Esta é a pergunta que não quer calar. Historiadores romanos deram poucas linhas ao lendário personagem que abominava a escrita. Assim mesmo há a suspeita de que no caso de Flávio Josefo tenham sido incrustados pelos cristãos coisas que o historiador romano não escreveu. Ao que se sabe, escreveu uma única vez.
Aliás, bom lembrar: Jesus escreveu e chorou apenas uma vez, de acordo com os Evangelhos. Chora quando lhe noticiam que seu amigo Lázaro morreu. E escreve não se sabe o quê quando lhe levam uma adúltera, esperando que o rabino confirme a sentença popular, o apedrejamento. Nos dois casos as histórias tiveram um final feliz. Depois de chorar, Jesus age. Vai ao sepulcro de Lázaro e ressuscita o amigo, mesmo advertido de que chegara tarde porque Lázaro morrera há alguns dias. Em resumo, chora, mas depois age. E no caso da mulher acusada de adultério, diz uma frase que se tornaria emblemática: "Atire a primeira pedra quem não tiver pecado". Ninguém atirou nenhuma. E alguns apócrifos dizem que Jesus, durante os embates verbais da turba, escrevia na areia os pecados de alguns dos presentes mais furiosos.
A ilustração da matéria, de Alceu Nunes, mostra o que realmente Cristo deve ter sido: um homem do povo. Na figura estampada em duas páginas aparece um homem de cerca de 30 anos, com um cajado na mão, vivendo numa aldeia de poucas centenas de habitantes. A figura contraria o Jesus louro dos filmes, ícones, relíquias. Jesus provavelmente era moreno, cor mais comum entre os palestinos desde tempos imemoriais.
O texto de Rodrigo Cavalcante, apoiado em consultorias muito apropriadas, faz um perfil do homem que mudou o mundo e como bom texto jornalístico responde à pergunta do título, informando aos leitores quem foi Jesus.
As revistas Cult e Galileu, de melhores desempenhos em números anteriores, oferecem outros mirantes para se entender Jesus, ainda que sem o brilho e a inventividade da Superinteressante. Cult, por exemplo, que procura dar maior atenção ao autor nacional, bem que poderia ter aprofundado um tema candente, já exposto num livro, infelizmente ignorado, de Danilo Nunes, general do exército brasileiro, intitulado Judas, traidor ou traído? Um outro livro, de leitura imprescindível no tema, é o romance de Frei Betto, Entre todos os homens. Nele, o conhecido frade dominicano, que consegue conciliar erudição e linguagem acessível, deu asas à imaginação e teceu uma narrativa de duplo valor: documental, porque apoiada em fontes submetidas a rigorosas conferências; ficcional, por apresentar um Jesus muito semelhante a seus contemporâneos, fossem parentes, vizinhos ou conhecidos, retirando-o do lugar comum de escritores católicos que no geral se serviram do personagem e do tema para catequizar os leitores, não para entreter e fazer pensar, tarefa de todo bom romancista.
Jornalismo leigo
Já a Veja deu uma capa que se confunde com as clássicas "folhinhas", como são conhecidos os calendários católicos. Do alto dos seus 1.314.957 exemplares, estampando clássica figura de Jesus ressuscitado ? de barba, cabelos longos e bigode, vestindo vermelho e azul e apresentando as marcas da crucificação nas mãos ? parece mais um folheto missionário. "O que Ele tem a dizer a você hoje" é a chamada principal de capa. A matéria especial, em cinco retrancas, vai da pág. 86 à 123, com as devidas inserções publicitárias. O texto da matéria de abertura, assinado por Isabela Boscov, é ricamente ilustrado com a iconografia cristã clássica ? abre com a Anunciação, óleo de Leonardo da Vinci, e na página seguinte traz Natividade Mística, tela de Sandro Boticelli.
Amostra do cuidado que a repórter teve na coleta de subsídios bibliográficos para a sua matéria é encontrada logo à pág. 89:
"Num acordo político nebuloso para os historiadores, o sacerdote Caifás e o governador Pilatos decidiram, então, condenar Jesus, que atraíra os olhares para si naquela Páscoa ao invadir o Templo de Jerusalém para desbaratar comerciantes que trabalhavam ali".
A bibliografia, vaga e difusa, induziu a repórter a uma conhecida imprecisão, já abraçada também por gente bem qualificada. Com efeito, Caifás não era apenas um sacerdote. Defini-lo assim equivaleria a dizer que nas tormentosas décadas de 1970 e 1980, quando as greves do ABC fortaleceram a liderança sindical de Luiz Inácio da Silva, o Lula, atual presidente da República, e intelectuais e trabalhadores morriam torturados nas prisões, houve um sacerdote chamado Paulo Evaristo Arns, que se distinguiu nas lutas por justiça social.
Não, não era apenas um sacerdote! Era o arcebispo de São Paulo, que empenhou a hierarquia eclesiástica naquelas lutas e pagou caro por isso. Os próprios católicos amargaram e amargam ainda as conseqüências daquele envolvimento. O ex-frei Leonardo Boff, a quem a hierarquia romana da Igreja aplicou o mesmo castigo que o PT agora impôs à senadora Heloísa Helena ? "o silêncio obsequioso"? continua excluído. Galileu Galilei foi perdoado, mas ele não!
E Frei Betto, em vários artigos e livros, mas sobretudo no seu romance Entre Todos os Homens, em que Jesus é figura solar, mostrou o que se passava naqueles anos em que D. Paulo não era apenas um sacerdote! Caifás mandava e desmandava. E hoje bibliografias pertinentes asseguram que a morte de Jesus foi um assassinato de Estado!
Como visão panorâmica, entretanto, a reportagem é muito bem estruturada. E imprecisões como essa não pasam de pecadilhos de pesquisa, que a pressa jornalística não consegue evitar. Veja segue o velho conselho de Eça de Queiroz, quando um latifundiário de São Carlos, com quem convivia em Paris, na segunda metade do século 19, propôs-lhe fazer uma revista para o Brasil, cujo acervo completo já mereceu tese e está hoje na Fazenda Pinhal, sob os cuidados da artista plástica Helena Carvalhosa e do jurista Modesto Carvalhosa: ilustrar bem os textos porque em Portugal e no Brasil textos ilustrados eram muito mais lidos!
Surpreendentemente, ao contrário do que disse Aparcício Torelly, o imortal Barão de Itararé ? "De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada" ? às vezes temos boas surpresas, de que é exemplo o livro de Plínio Salgado sobre Jesus. E agora tantas revistas oferecerem aos leitores diversificadas visões da figura mais celebrada nessa época do ano: Jesus, um homem que mudou o mundo. Evidentemente, para os cristãos ele é muito mais do que isso. Mas o jornalismo há de ser leigo. Afinal, escreve-se para todos os credos e não se pode fazer do jornalismo, catequese.
(*) Escritor e professor da UFSCar, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo