TV / BAIXO NÍVEL
“Mundo cão na hora da Ave Maria”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 13/10/02
“O Brasil mudou muito, e isso não é o início de um comentário sobre o país que saiu das urnas de seis de outubro. Ouçam, por exemplo, o barulho que vem das seis horas. Foi-se o tempo, e não foi há tanto assim, em que o Brasil parava às seis horas ao redor do rádio para fazer a oração da Ave Maria com Júlio Louzada. Pacificavam-se as almas. Reconfortava-se o espírito ao anoitecer de mais um dia de cão – porque, não se iludam, senhores: sempre assim eles foram e para sempre assim o serão, abaixe o dólar ou não.
A oração de Louzada buscava minorar o sofrimento do dia, e nisso o Brasil não mudou. O ser humano em 2002 continua atrás de algo que alivie sua dor, renove as esperanças de que amanhã pode ser melhor. Parece que infelizmente há novidades no ar, um inesperado bálsamo de hipocrisia e mentira nos programas de televisão na mesma santa hora das seis. Ninguém reza mais chamando Deus em socorro. As emissoras agora colocam no ar as imagens e as personagens mais trágicas de seu repertório de infelicidades. Pode parecer estranho mas funciona assim: você vê o rosto de uma criança estraçalhada por um rot-weiller, como mostrou o ?Brasil urgente?, da Bandeirantes, e suspira agradecido. Obrigado, Senhor, por não ter sido comigo.
O mundo cão está solto entre as cinco e sete horas da noite nas redes nacionais de televisão, aquela hora em que a noite cai e o Homem, ainda com a memória das noitadas vulneráveis que passou nas cavernas cercadas de animais, sente medo, sente-se frágil e pede proteção. Marcelo Rezende, Marcia Goldsmith, José Datena, João Kleber e, até tu?, Roberto Cabrini, todos com os olhos esbugalhados como se recebessem novamente a visita daqueles monstros pré-históricos de seus ancestrais, apavoram os crentes do terceiro milênio com a imagem do velhinho (quinta-feira, 10 de outubro) que teve o nariz quebrado por um soco do filho do Maguilla. Os novos profetas do Apocalipse falam aos gritos, alguns lançando o recurso bárbaro de espargir perdigotos sobre a lente da câmera e sublinhar o terror que alivia. Em casa todos agradecemos o nariz que permanece inteiro. Salvos. Pelo menos por mais um dia.
Eu vi Marcia Goldsmith levar mãe e filha ao palco para que a primeira confessasse que, depois de ser tão desprezada pelo ex-marido, o pai da moça, tinha virado lésbica e que aquele senhor que costumava ir ao apartamento das duas, no Bexiga, não era senhor, era senhora, era a sua atual namorada. Eu vi Marcelo Rezende apresentar um homem que estava vendendo um rim para quem lhe doasse um computador e mais os R$ 3 mil que precisava para saldar dívida que contraíra com um agiota para realizar o sonho de publicar um livro. Eu vi Cabrini entrevistando as garotas de programa que diziam estar com o jogador Guilherme, todo mundo mamando uísque, quando o carro que ele dirigia entrou na contramão e bateu em outro. Eu vi Datena dizendo ?oh meu Deus, tem fratura exposta? e mandando o helicóptero Águia Dourada se aproximar mais do acidente em que um carro atropelou mãe e filha na Freguesia do Ó.
A vida é um inferno, como dizia o subtexto das orações de Júlio Louzada, e por esse vale de chamas continua marchando a humanidade, agora como se fôssemos todos personagens de um interminável tablóide inglês. E o sexo, então?! Só desgraça. Eu vi dois sujeitos se acusando de ?corno? e cada um garantindo que havia desfrutado da mulher do outro, sendo que essas senhoras também estavam presentes, todos aos palavrões e tentando se esmurrar, no palco do circo dos horrores do João Kleber na Rede TV! A idéia é rir da miséria alheia e criar a sensação de que somos superiores ou pelo menos de outra cepa. ?O senhor não é mole não, hein?!?, gargalhava Marcia Goldsmith diante de um certo senhor Vavá, pai do DJ Thaide e de mais de uma dezena de filhos, ?soltos por aí?, uma delas sendo apresentada a ele e ao irmão naquele exato momento.
A grande tragédia da família brasileira está sendo exposta, como a fratura do Datena, no mesmo horário em que ela antes se reunia para rezar a Ave Maria e tentar a salvação. A sensação geral, dos dois lados do vídeo, é de que ficou difícil escapar. Os programas dão alívio imediato de que aquela mulher com o cartaz de ?mãe desesperada com fome? na Paulista não tem nada a ver com a gente. Mas, pela gritaria que vem do estúdio, pelo deboche sensacionalista, a impressão é de que amanhã esses falsos compungidos te filmam e esculacham. ?Olha como ficou o rosto do pobrezinho?, dizia Cabrini narrando a imagem do menino estraçalhado pelo cachorro – uma cena que, para piorar as coisas, tinha o selo televisivo de ?Vivo? na testa do ?pobrezinho?.
É o mesmo truque dos programas evangélicos. Estes não mostram a mulher jogada na rua com dez filhos por falta de aluguel, como fez a Goldsmith na quinta-feira. Mas prendem os fiéis pela descrição de um mundo cercado de demos tais e inexplicáveis que só pagando o dízimo ou louvando o pastor da semana conseguiremos sobreviver. Cabrini, Rezende, Marcia, Kleber e Datena reúnem-se todos os dias às seis para avisar que o mundo está acabando, esmurrado pelo Maguilla ou de fome, mas por enquanto você foi poupado. Não oferecem nenhum solução para que se escape do exterminador inevitável. Pelo contrário. Querem mais é salpicar um ?vivo? na testa do próximo morto. Passam, sempre lamentando, a angústia de que ele infelizmente pode ser você.
É verdade que nas orações do Julio Louzada pedia-se que alguém descesse dos céus e salvasse a todos desse inferno – e ninguém, a não ser aquela confusão lá em Fátima, foi visto descendo. Nos programas populares das seis, o deboche ri tanto dos miseráveis e infelizes que não se contém. O helicóptero que sobrevoa mãe e filho atropelados na Freguesia do Ó não traz socorro. Nenhuma salvação vem a bordo do Águia Dourada. É apenas o olho do novo deus-máquina acertando o foco na tua fratura exposta.”
PROER DA MÍDIA
“O ?Proer da Mídia? e o fato consumado”, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 13/10/02
“Juarez Quadros é uma figuraça. Semana passada, depois de confrontado com o óbvio – que o governo tinha atropelado o Congresso ao editar a MP sobre a entrada do capital estrangeiro mesmo não sendo este um assunto urgente – o ministro das Comunicações respondeu que o Planalto não quis alijar o Parlamento da decisão sobre o assunto. Não é bem assim e ele sabe disso.
Conforme os prazos de aprovação de uma MP, o Congresso tem 60 dias para transformá-la em lei ou rejeitá-la. Como a MP é de 1? de outubro, este primeiro prazo termina em 1? de dezembro. Se a medida ficar parada no Congresso, a sua validade é prorrogada por 60 dias. Como neste interregno (sabia que um dia usaria esta palavra!…), há as férias dos parlamentares (entre 15 de dezembro e 15 de fevereiro) e elas não contam para o decorrer do prazo, este só termina em 1? de abril (que não se perca pela data…). Se ainda assim nada for feito a respeito da MP, o Congresso vai definir, por Decreto Legislativo, se a MP e os atos assinados durante os 120 dias em que ela estava em vigor são válidos ou não.
Uma tramitação dessa já seria complicada em outro momento, imagina neste, em que não só uma legislatura está acabando, mas que a próxima terá uma correlação de forças radicalmente diferente não só da que se encerra como de todas as outras da história do Congresso. E ainda por cima com eleição das Mesas da Câmara e do Senado rolando a partir de fevereiro… A chance desta MP ser votada em algum desses prazos é quase zero, portanto.
Assim, há nas empresas quem defenda que, diante da crise sufocante pela qual todas estão passando, que elas se aproveitem do período de acomodação dos primeiros meses do novo Congresso para praticar a política do fato consumado: assinar os acordos e depois pressionar de todas as formas possíveis (até não ortodoxas, se for o caso) para que sejam validados.
Para que esta jogada dê certo é claro que será necessária a anuência dos investidores, pois estes poderiam se ver às voltas com uma batalha legal desgastante e cara. No caso dos gringos, sempre com um pé atrás diante de nossos ?exotismos?, pode haver resistência ao esquema, mas com os nossos fundos de pensão, muitas vezes fontes dos mais estranhos ?exotismos? do mercado, com grande poder de influir no Congresso e advogados sempre a postos para qualquer embate, os papéis podem ser assinados.
A tentativa de resistência contra a trama, como sempre, vem da bancada do PT. A fim de jogar a discussão na rua ainda antes do fim da atual legislatura, o partido fez dez propostas de alterações no texto da MP. A maior parte delas visa a restringir o amplo campo de manobra que os sócios financeiros das empresas teriam para, através de investimentos de menos de 20% em várias delas, ter enorme poder em vasta rede de meios de comunicação, especialmente de radiodifusão, fazendo com que a concentração dos meios, que já é grande no Bananão, fique ainda maior.
No entanto, não será uma batalha fácil de vencer para aqueles que lutam pela democratização da comunicação no país. Os interesses são enormes e tão poderosos que fizeram com que o governo, num momento delicado como esse, se arriscasse a editar uma MP tão estranha, um verdadeiro ?Proer da Mídia?, na feliz expressão da Carta Capital. Como diria o velho Orlando Batista, ?o mais laureado locutor esportivo?, ?quem viver verá!?
Boa companhia – Por um momento cheguei a pensar que era o único que tinha uma visão mais apurada da realidade no que se refere ao comportamento da mídia nas eleições presidenciais. Mas Bernardo Kucinski também tem e mostra as suas razões no artigo que você pode acessar por este endereço.
Monografias – Já estamos em meados de outubro e daqui a pouco minha caixa postal vai encher de estudantes de jornalismo querendo minha opinião sobre um monte de assuntos ligados à profissão. Não vou negar que adoro responder, mesmo que quase todas as respostas sejam necessárias ?para ontem?, mas uma coisa tem me deixado chateado nos últimos dois ou três anos: a insistência no jornalismo on-line. Longe de mim negar a importância deste novo ramo, mas as pesquisas neste sentido estão se tornando repetitivas, enquanto, de outro lado, acho que há pouca investigação sobre a história do jornalismo brasileiro, um ponto sempre negligenciado em nossas universidades.
Esse incômodo me atacou novamente lendo a coluna do Márcio Moreira Alves, publicada no sábado, dia 12. O colunista fala do livro ?Conversa com as memórias?, de Villas-Boas Corrêa, uma das poucas coisas boas que ainda existem no JB. Fiquei pensando porque os jovens não fazem uma monografia sobre a vida e a experiência de Villas, do próprio Márcio, de Nilson Lage, de Carlos Chagas ou de outros veteranos que ainda estão na ativa, ou mesmo de repórteres já falecidos como Carlos Castello Branco, um jornalista seminal da época da ditadura militar. Afinal, como diz o bom-senso, se você não sabe de onde veio, não vai saber onde está, nem para onde vai.
E para os que não gostam de História (não consigo conceber alguém inteligente que não goste, mas deve haver…) há ainda a boa opção de conversar com aquelas que Márcio Moreira Alves chama de ?matriarcado do jornalismo político? – Tereza Cruvinel, Heloísa Chagas e Dora Kramer. Creio que qualquer que fosse a abordagem seria algo muito rico até para os professores que orientassem estas monografias, que ficariam com algo escrito para referência futura.
Superados?! – E por falar em jornalismo on-line e Nilson Lage… Rolou um certo frisson semana passada com a entrada em rede do site Google News, um portal de notícias que reúne conteúdos caçados por agentes inteligentes (tipo ?aranhas?) e processados por algoritmos que criam links lógicos entre as matérias. Em português claro, as editam. Quem quiser saber o básico sobre a questão deve acessar aqui e baixar um texto de 14 páginas do meu ex-mestre. Mas não vou enganar ninguém: não é leitura muito fácil do meio para o fim. Tem que ter paciência e saber operar, um mínimo que seja, com Lógica.”