QUALIDADE NA TV
TV & ENERGIA
"A vaca e o frango à luz de Kant", copyright no (www.no.com.br), 17/05/01
"O presidente da Câmara de Gestão da Crise de Energia, ministro Pedro Parente, decidiu ontem que toda a programação noturna de televisão será suspensa durante uma hora até outubro. Cada emissora dará sua cota de sacrifício até que as usinas brasileiras estejam recarregadas. Um grupo formado por representantes do governo e das emissoras debaterá o horário em que os transmissores serão desligados. Já éstá acertado que a administração prática do apagão televisivo será feito a partir da cidade paraguaia de Nueva Königsberg, vizinha de Itaipu. Dali serão desligados os 134.492 milhões de aparelhos de televisão existentes no país, numa operação inédita em todo o mundo. A notícia, divulgada esta madrugada, pegou os jornais do dia já fechados e a própria Rede Globo de surpresa. Uma reunião urgente com executivos globais foi marcada para todo o dia de hoje.
O ministro Parente disse, em tom de brincadeira, que passaria os sessenta minutos do apagão televisivo se dedicando a buscar luzes na razão de Kant, mas que a medida, absolutamente necessária no atual quadro enegético, também poderia demolir uma das suas grandes fontes de prazer nos últimos tempos:
?Eu particularmente lamento?, disse Parente, ?pois não gostaria que a Cartoom Network escolhesse o horário do desenho A Vaca e o Frango para dar sua cota de sacrifício. É o meu programa preferido de tevê no momento.?
A Cartoon operava apenas com seu departamento técnico hoje pela manhã e ainda não se pronunciou. O desenho mostra dois irmãos, a vaca e o frango, exercitando um humor que, se não corrói como os Simpsons, também não serve como obra de exaltação à bondade dos humanos. ?A depressão é um prato que se come frio?, disse o frango, o personagem mais infeliz da série. A vaca, sempre eufórica, tem as tetas bem relevadas no desenho e, noite dessas, tirava ela própria o leite para funcionar como elemento de troca numa transação profana. Um outro personagem, encucado e com um doce na boca, perguntava a uma raposa sábia: ?Mestre, quantas linguadas são necessária até se chegar ao centro açucarado do pirulito?? A Cartoon lidera a audiência entre as tevês a cabo. A Vaca e o Frango vai ao ar todas as noites às 21h30.
Segundo o Ibope, o brasileiro vê quatro horas de televisão em média por dia (um recorde no continente), o que resulta num consumo de kWh equivalente ao de uma cidade como Curitiba constantemente ligada. Com a interrupção de imagens, preferencialmente no horário nobre, que será a sugestão do governo, tenta-se mais uma medida de esforço para não se chegar ao radicalismo do apagão geral de energia. O governo quer trocar seis meses sem Ratinho, Luciana Gimenez, Adriane Galisteu e a Iemanjá global pela possibilidade de vida normal em todas as cidades brasileiras. A Câmara de Gestão da Crise de Energia estuda inclusive uma maneira de bloquear a transmissão do chuvisco televisivo, quando não há imagem no ar. Teme-se que o brasileiro, viciado na tevê, deixe o aparelho ligado, sem nada sendo transmitido, como se fosse um abajur, o que anularia todo o esforço de racionamento.
Em menos de 24 horas o governo tirou os holofotes das duas principais diversões do brasileiro: o futebol e a televisão. Parente, como leitor de Kant, tem razão, embora evidentemente fonte do gabinete da CGCE negue que tenha havido qualquer ato de crítica nas duas medidas. ?Somos técnicos em energia, não analistas de tevê?, disse um deles por telefone, usando um embaralhador de vozes como esses usados nos telejornais. Analistas do setor, no entanto, acham muita coincidência que os jogos tenham sido transferidos para as três da tarde, um horário de comédia absurda, no mesmo dia em que a Fifa anunciou o ranking das seleções, deixando o Brasil fora do primeiro lugar depois de uma hegemonia de sete anos. Setores do mercado acham que um futebol forte não estaria entre as vítimas do esforço anti-apagão, e que o mesmo comentário valeria para a televisão.
Meses atrás o governo tentou enquadrar o veículo com medidas disciplinares para conter o avanço da violência no horário nobre. Os casais, no entanto, continuam se esbofeteando no quadro do DNA do Ratinho. No domingo, dias das mães, o festival de lágrimas que tomou conta dos programas teria chocado setores importantes da administração federal. Sabe-se que assesores da Justiça participaram da reunião que concluiu pela inclusão das tevês na estratégia energética. Uma programação sem luzes ficou mais fácil de ser cortada.
Com uma hora a menos de programação por noite, as emissoras ajudariam a economizar kWh e seriam forçadas a repensar sua vocação artística (a última notícia do setor é que Netinho, depois de bater Gugu e Faustão à tarde, brilharia à noite na Record). Do jeito que está, o humor inteligente de A Vaca e o Frango é, à luz da razão kantiana, o melhor programa da apagada televisão brasileira."
SENSACIONALISMO
"Um sensacionalismo diferente", copyright Jornal do Brasil, 20/05/01
"O programa Cidade Alerta, que vai ao ar todos os dias no final da tarde, pela Rede Record, costuma receber críticas por ser sensacionalista. Suas reportagens invariavelmente tratam de façanhas policiais, crimes e arruaças de toda espécie. Às vezes, escorre sangue na tela. À primeira vista, parece ser mais um entre tantos ?noticiários? policialescos que infestam a televisão e o rádio no Brasil e que, em conjunto, formam um gênero pavoroso de entretenimento de massa. Esse tipo de espetáculo degrada a condição humana. As desgraças dos brasileiros mais pobres são liquefeitas em circo. Policiais valentões, vítimas de assaltos na periferia das metrópoles e famílias desestruturadas pela criminalidade viram combustível do show; a dor dos anônimos é ofertada como atração irresistível aos olhos sádicos do público. Mas Cidade Alerta não é bem isso. Tem diferenças.
Na última quarta-feira, o telespectador teve uma nítida demonstração dessa diferença. Cidade Alerta exibiu cenas da repressão empreendida pela polícia militar baiana aos cinco mil manifestantes que, nas ruas de Salvador, na tarde daquela mesma quarta, pediam a cassação dos senadores Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda. As câmeras mostraram detalhes dos ferimentos causados pelos policiais nos manifestantes. A reportagem não tomou partido da polícia. No estúdio, encontrava-se o ministro Raul Jungman, do Desenvolvimento Agrário. Em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, ele condenou, com a elegância que o cargo lhe exige, os excessos da tropa de choque. Foi uma breve aula de democracia.
É verdade que o repertório diário do Cidade Alerta tem parentesco próximo com o circo de horrores que faz a fortuna dos aproveitadores transvestidos de apresentadores. Mas não é verdade que a condução de todas aquelas imagens obedeça à lógica fascista que é a marca registrada do sensacionalismo policial. A orientação básica do noticiário de Datena não é o fascismo. Façamos algumas comparações.
O Linha Direta, da Rede Globo, tem traços fascistas. Exibido nas noites de quinta-feira, dedica-se a estimular no público a prática da delação anônima – um recurso que foi empregado em massa em regimes totalitários, como o nazismo. A denúncia anônima pode ser uma ferramenta em investigações policiais? Claro, ninguém contesta isso. No Rio de Janeiro e em São Paulo já funciona o Disque-Denúncia, uma iniciativa de ONGs, financiadas pelo setor privado, em parceria com as secretarias de Segurança Pública. O objetivo é receber denúncias de cidadãos que se sentem inseguros para procurar diretamente a polícia. O Disque-Denúncia lhes garante o anonimato – e o saldo da iniciativa é positivo. O problema do Linha Direta é de outra ordem: nele, a denúncia anônima deixa de ser uma ferramenta em favor da segurança do cidadão, uma ferramenta usada com critério e com controle, e se deforma numa aliada do festival de barbaridades.
Atrocidades que de fato ocorreram são reconstituídas por atores profissionais; os crimes reais ganham cores trágicas, fundo musical e ritmo de suspense. Sob o impacto de tais ?reconstituições?, o telespectador é incitado a telefonar à emissora e contar o que quiser, com a garantia de ter sua identidade preservada. Os responsáveis pelo programa depois se gabam de ter ajudado a polícia a encontrar criminosos – mas a que preço? Ao preço de transformar o público inteiro numa massa de delatores, o que lembra o fascismo. Ao preço de transformar uma rede de televisão, a maior do Brasil, numa extensão interativa de delegacia de polícia. Ao preço de deseducar os cidadãos sobre a Justiça e de reduzir o pânico diante da insegurança pública, que consome a todos nós, a um ingrediente a mais em prol do faturamento publicitário.
São fascistas os programas radiofônicos levados ao ar por locutores histriônicos, que berram pela pena de morte e incentivam a execução sumária de ?marginais?. Por que são fascistas? Porque fazem incitação ao crime, porque desinformam os ouvintes sobre seus reais direitos. Na prática, defendem uma idéia de ordem que é sinônima da implantação de um Estado de exceção, governado por forças policiais. Essas excrescências do rádio e da TV têm o seu direito sagrado de ir ao ar, mas é preciso dizer que são nocivas à formação de uma mentalidade democrática e não ajudam, de nenhum modo, no combate à criminalidade. Fazem o contrário, promovem-na: se a criminalidade acabasse, essa gente perderia o ganha-pão.
Cidade Alerta não é exatamente assim. Ainda que trate de assuntos policiais, sua orientação admite aberturas para o bom jornalismo – como foi visto na quarta-feira. A melhor cobertura da pancadaria promovida pela PM baiana foi ao ar pelo Cidade Alerta. Logo a seguir, o telejornal de Boris Casoy, no mesmo canal, mostrou as mesmas cenas, abreviadas, informando o número de vítimas dos policiais baianos. Contavam-se 19 até aquele instante. Foi curioso verificar naquela mesma noite que o Jornal Nacional reservou-se a um relato bem telegráfico do incidente, dizendo apenas, entre imagens rápidas, que quatro manifestantes e três policiais saíram machucados, segundo fontes da PM. No dia seguinte, o número de feridos entre os manifestantes chegava perto dos 30 segundo alguns jornais.
Cidade Alerta é sensacionalista? É, sim. A busca da imagem de grande impacto, a predileção pelas cores da violência, o gosto pelos confrontos físicos o aproximam do gênero do jornalismo policial, marcadamente sensacionalista. Mas o sensacionalismo, no Cidade Alerta, ainda que seja uma opção arriscada e prejudique eventualmente a objetividade, não implica uma sistemática falta com a verdade. É um sensacionalismo, por assim dizer, mais adjetivo que substantivo, ou seja, o programa se vale de atrações sensacionais, de fato, mas não está ali para simplesmente enaltecer a truculência. Cidade Alerta tem dado sinais de que é possível falar de temas indigestos como a criminalidade e, ao mesmo tempo, manter compromisso com a cidadania."
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