A VOZ DOS OUVIDORES
O PÚBLICO
"?Notícias? à Venda", copyright O Público, Lisboa, Portugal. 25/3/01
"A maior parte das críticas dirigidas à comunicação social, nas últimas semanas, tem visado sobremaneira os canais de televisão. Embora os outros ?media? não estejam todos isentos de falhas profissionais ou éticas no que toca à cobertura de eventos com forte carga emocional, parece claro que a televisão – seja pela força de imagens ao vivo, seja pelo facto de passar horas e horas a transmitir em directo – corre mais riscos, sucumbindo mais facilmente às tentações de exagero. E então face à feroz competição que se instalou entre canais por busca de audiência…
Um jornal tem a vida facilitada. Os seus jornalistas não são obrigados a escrever ?a quente?, mesmo em cima do drama: têm sempre algum tempo, minutos que sejam, para pensar um pouco e distanciar-se dos acontecimentos que presenciaram. O seu texto raramente vai ?para o ar? sem que outros colegas o leiam, alargando a reflexão. Entre o momento dos factos e a sua chegada aos leitores vai um longo percurso, com intervenções variadas que ajudam a minorar os riscos de envolvimento excessivo numa fogueira de emoções e sentimentos. Algo que não tem um repórter de rádio ou TV, obrigado, com microfone aberto e câmara em acção, a fazer tudo no imediato e sem rede: contar, improvisar, entrevistar, interpretar, aguentar o directo enquanto a chefia mande.
Assim, falhas ou excessos deste tipo nos jornais são em alguma medida mais graves, pois são mais fruto de acções ponderadas do que de lapsos ou contingências do momento. Menos desculpáveis, pois.
Noutros domínios, entretanto, os comportamentos duvidosos dos ?media? parecem tocar por igual os diversos suportes. Veja-se o caso da publicidade.
Já se falou bastante de como as televisões fazem publicidade encapotada a produtos, confundem deliberadamente as áreas informativa e comercial (mesmo que seja para publicitar ?produtos? da própria casa) ou não separam adequadamente os anúncios dos programas.
E os jornais?
A última semana trouxe-nos um exemplo espantoso de como também é possível ?vender? notícias – ou algo que grosseiramente se faz passar por elas – na zona mais nobre da informação jornalística.
Um jornal diário, o ?Correio da Manhã?, decidiu, na edição da passada quinta-feira, ?vender? a sua manchete a uma empresa, transformando o título principal de primeira página num ?slogan? publicitário (ver foto). Repare-se que não vendeu apenas aquele espaço onde diariamente inscreve o título mais importante da edição; vendeu o próprio conteúdo da manchete e usou a mesma fórmula gráfica, o mesmo tipo de letra, o mesmo destaque. Ou seja, exactamente ?como se fosse? uma notícia. A única diferença foi que encimou o tal título com a mençãozinha de ?publicidade?, decerto para respeitar a norma legal de sinalização obrigatória dos anúncios -como se esse artifício resolvesse a questão de princípio que está em causa!
Como sucede com os títulos de primeira página, este remetia-nos para uma página interior onde, a par de um texto de carácter promocional sobre a empresa publicitada, se nos oferecia um largo e vistoso anúncio. Era essa, então, a ?notícia? suportada pela manchete: um anúncio!
Toma-se este caso apenas como exemplo – particularmente chocante, convenhamos – de uma prática que não é exclusiva daquele diário, mas que volta e meia nos surpreende na imprensa e para a qual será útil chamar a atenção. O próprio PÚBLICO também tem culpas no cartório: os leitores lembrar-se-ão de algumas decisões polémicas neste domínio, como a de imprimir todo o jornal num papel amarelo só porque dado anunciante ?comprou? essa ideia, ou a de ?vender? a capa do magazine dominical a uma empresa. Não se pretende, portanto, atirar pedras ao vizinho sem cuidar das telhas de vidro que por cá existam, embora seja justo salvaguardar as devidas proporções.
A questão que este caso coloca é, basicamente, a do respeito pelos leitores e pelas suas legítimas expectativas face ao produto/serviço que adquirem. É em nome desse respeito que estão habitualmente bem demarcados os espaços próprios da publicidade e da informação, para que se possa chegar a uns e a outros sem se ser levado ao engano ou apanhado à falsa fé. Por isso há, na televisão, os tão esquecidos separadores. Por isso há, nos jornais, os princípios de identificação do que é publicidade e de não utilização de elementos gráficos iguais aos das notícias.
As empresas e agências de publicidade estão no seu papel ao procurar formas sempre novas e surpreendentes de fazer chegar a mensagem aos destinatários. Tentam frequentemente ?invadir? as zonas delimitadas da informação porque sabem que, com isso, podem colher inesperadas atenções – ou mesmo, nalguns casos, uma chancela de credibilidade. Até já se inventaram umas ?publireportagens?, para travestir de trabalho jornalístico o que, de facto, não passa de propaganda comercial…
A publicidade não é inimiga dos jornais. Bem pelo contrário. É um dos serviços que os jornais prestam aos seus leitores e que tem uma óbvia componente informativa – embora diversa, na sua própria lógica, da que se espera do jornalismo. Além do mais, as receitas publicitárias são, como sabemos, um elemento essencial para a sobrevivência económica de praticamente todos os meios de comunicação social. E, quando os dinheiros escasseiam ou a concorrência aperta, há uma maior tendência para aceitar compromissos que ferem a indispensável independência dos respectivos campos de actuação.
Não sendo inimiga, mas parceira, nem por isso a publicidade deve ter (ou poder comprar…) o privilégio de se intrometer em terrenos que não são os seus – ou sequer de criar confusões deliberadas junto dos leitores, apropriando-se dos códigos que eles se habituaram a ver associados ás notícias.
Quando isso acontece, nasce a suspeita de que uma publicação se rege mais por critérios comerciais do que por genuínos critérios informativos nas suas opções. E, sendo assim, com que olhos se vai ler amanhã uma notícia desta empresa, uma reportagem sobre aquela instituição, uma entrevista àqueloutro gestor? Com olhos de quem crê estar a ser seriamente informado, de modo isento e rigoroso, ou com olhos de quem está porventura a receber uma mensagem publicitária (paga, se calhar…) mais ou menos disfarçada de notícia?
Muitas destas suspeitas, sabemo-lo, estão instaladas em grande parte dos leitores e espectadores. Nem sempre com fundamento, de resto. Mas, até por isso, seria bom que não lhes déssemos mais argumentos para novas dúvidas. Há tanto que fazer para ?limpar? as já existentes…
Em Síntese
Autonomia – O respeito pelos leitores exige que notícias e anúncios não se confundam nunca.
Perigo – A informação resistirá à suspeita de que se guia por critérios comerciais?"
A Voz dos Ouvidores ? próximo texto
A Voz dos Ouvidores ? texto anterior