A VOZ DOS OUVIDORES
O PÚBLICO
"Com o nome por baixo", copyright O Público, 1/4/01.
"Quem tem direito a ter opinião – e todos temos -, tem o dever de assinar o seu nome por baixo. É uma questão de respeito por aqueles a quem se dirige aquilo que dizemos ou escrevemos. Quando haja dúvidas sobre se o escrito é ?de opinião? ou ?de interpretação?, melhor será jogar pelo seguro: assinar também.
Perguntava-me recentemente um leitor se há normas que enquadrem o problema da publicação de textos de opinião não assinados. Não se referia em concreto a qualquer situação, designadamente retirada das páginas do PÚBLICO, mas veio a talhe de foice para lembrarmos, aqui, alguns princípios que a recente reformulação gráfica do jornal pode ter tornado mais actuais.
Vamos por partes.
Tanto quanto sei, não há qualquer preceito legal que especificamente proiba a publicação de textos de opinião anónimos, salvo a regra básica e elementar de que toda a pessoa deve ser responsável – e responsabilizável – por tudo o que escreve para o público. De resto, quando algum escrito nessas condições é publicado num órgão de comunicação social, nem por isso a ausência do nome do autor impede que se peçam responsabilidades: aí, quem tem de responder pelo texto anónimo é quem autorizou a sua difusão, ou seja, o director do órgão de comunicação.
No caso dos jornalistas, para além deste princípio genérico de convivência social com respeito pelo outro, há exigências de conduta, em termos profissionais e éticos, que não consentem qualquer refúgio das opiniões próprias sob o manto do anonimato. ?O jornalista deve assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos profissionais?, diz o Código Deontológico, de algum modo lembrando que a incidência social desta profissão, para além dos direitos que confere, comporta indeclináveis deveres.
No contexto de uma actividade que tem por fim assegurar o direito fundamental dos cidadãos à informação – e que, por isso, é um efectivo serviço público, mesmo se praticado em empresas privadas -, ninguém entende que os jornalistas abusem a seu bel-prazer do acesso privilegiado que têm à difusão pública de textos. Trabalhar na informação, e por essa via ter a possibilidade de escrever regularmente nos jornais, não é, para um jornalista, uma regalia pessoal de que ele disponha como muito bem lhe apetece, com ligeireza ou impunidade. Pelo contrário, é uma condição necessária à prossecução de um bem comum e que, por isso, só deve ser usada tendo esse objectivo como pano de fundo. Trata-se ‘apenas’ de respeito pela função e de respeito pelos cidadãos em nome de quem ela se exerce.
Tudo isto parece óbvio, e é até de fácil aplicação nos casos mais claros de separação entre os factos e as opiniões. Nunca se viu, nas páginas do PÚBLICO, que um texto encimado pela referência ?opinião? ou ?comentário? saísse sem assinatura.
O problema é que tal separação nem sempre é inequívoca. O problema surge quando os escritos dos jornalistas não são mero reporte de dados factuais, mas não são também opiniões no sentido estrito do termo. Ora, no caso do PÚBLICO, esta classificação intermédia pode atribuir-se à esmagadora maioria dos seus textos noticiosos…
O estilo informativo adoptado pelo jornal acentua, como é sabido, a necessidade de contextualizar os factos, de interpretar, de carrear elementos a montante e a jusante daquilo que se relata, tudo com o propósito de proporcionar aos leitores uma real compreensão daquilo que está em causa. Sendo que, como já aqui se tem dito, a verdade está frequentemente para além dos factos, ou até dissimulada por eles.
Foi pela vontade de praticar sistematicamente este ?jornalismo interpretativo? e de, ao mesmo tempo, impedir eventuais tentações de desresponsabilização individual, que o Livro de Estilo do jornal decretou, desde o início: ?Todos os textos do PÚBLICO são assinados, à excepção das últimas e das breves?.
No modelo gráfico recentemente adoptado, as secções do jornal abrem com uma coluna, de alto a baixo, que pode conter diversos elementos conforme os dias e as vontades (ou possibilidades práticas) do editor. Ora sai um comentário assinado, ora um número com alguma curiosidade, ora uma mini-estrevista, ora um conjunto de citações, ora umas notícias breves. Mas, de vez em quando, também por ali saem textos que, embora sob forma noticiosa, vão além do simples registo breve e se aproximam bastante do comentário – ou seja, da opinião. E nem sempre aparecem assinados, sequer com iniciais.
Pode ser discutível a fronteira entre texto de opinião e texto com propósito de interpretação dos factos. Mas olhemos para frases como estas: ?Em vez das causas de solidariedade, Dulce Pereira parece mais preocupada em substituir BMW com quatro anos por Mercedes novinhos em folha? (18/3/01); ?A presença portuguesa [no Salão do Livro de Paris] era mais do que discreta? (17/3/01); ?[Eriksson] – Homem do futebol algo atípico, pela forma elegante e inteligente como se insere num universo nem sempre cortês ? (8/3/01) ?Se há característica própria que Saleiro alimenta é uma exuberante tendência para a gabarolice? (21/3/91). Trata-se, em meu entendimento, de juízos de valor (não está em causa se justos ou injustos), de frases claramente opinativas, cujo objectivo é qualificar pessoas e comportamentos – veja-se o recurso aos adjectivos – e que, para sermos rigorosos, deviam ser subscritas pelos seus autores.
Mesmo considerando-os textos apenas ?com algum enquadramento e interpretação?, e não propriamente ?de opinião?, como parece preferir o director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, nem por isso eles deviam ser anónimos, face ao Livro de Estilo. Com isso, de resto, concorda o director (?tais textos deviam vir assinados com iniciais?), indo até um pouco mais longe, no que tem toda a minha concordância: ?Quando o conteúdo interpretativo é mais forte, [os textos] não deviam vir naquele espaço nem com aquela forma. Foi para evitar confusões entre notícias e notícias comentadas (para não falar de comentários disfarçados de notícias…) que, na remodelação gráfica, criámos os espaços de análise e abrimos mais colunas para comentários personalizados?.
De acordo na doutrina, falta só levá-la à prática de modo consequente e coerente. Sim, que também há múltiplos exemplos de tratamento correcto – ou seja, com a devida assinatura – de textos mais opinativos na coluna de abertura das secções. Até por isso, parece necessário fazer esta chamada de atenção, para que o leitor não fique baralhado com a desagradável oscilação de critério entre secções de um mesmo jornal, ou até entre dias diferentes no seio da mesma secção.
Em caso de dúvida, assine-se. Quando se trate de breves (os únicos textos que podem não vir assinados, como prevê o Livro de Estilo), então escreva-se de modo distanciado e cru, com respeito escrupuloso pelos factos, sem mistura de juízos, comentários ou… ?bocas?.
Em síntese
Jornalistas – Escrever num jornal não é um privilégio pessoal de que se possa abusar a bel-prazer
Opinião – Uma coisa é apresentar as notícias no seu contexto, outra coisa é comentá-las."
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