A VOZ DOS OUVIDORES
O PÚBLICO
"Sexo, Arte e Choque", copyright O Público, de Lisboa, 8/4/01
"Os jornais, por vezes, chocam. Não necessariamente porque tenham tido a intenção de chocar, mas porque aquilo que comunicam, ou o modo como o fazem, pode mexer com a sensibilidade de alguns leitores. Nem todos se sentem chocados com os mesmos assuntos, ou da mesma forma, que isto de um jornal de informação geral respeita a uma certa diversidade de públicos. Mas quando os temas tocam em sangue ou sexo, para citar dois exemplos dos tradicionalmente mais sensíveis, podem surgir melindres.
Diga-se, desde já, que o provedor só muito raramente tem recebido queixas sobre textos (ou contextos) chocantes, sendo certo que o Público não foge de tratar matérias por alguns ainda consideradas incómodas. Acontece isto, decerto, porque a generalidade dos leitores verá que o tratamento de tais matérias se procura fazer de modo sério e justificado, sem explorações gratuitas mas também sem cedência a preconceitos atávicos, trazendo para o debate público, descomplexadamente, tudo o que se julga de interesse no tempo que vivemos.
Não obstante, aqui e ali surge uma dúvida, uma questão, uma crítica. É o caso do leitor Manuel Moniz, que se mostrou ?perplexo e preocupado? com o que leu a propósito de uma iniciativa do Público destinada a assinalar o Dia do Pai (19 de Março).
No comentário aos muitos desenhos recebidos de crianças – texto sob o título ?Fragilidade, humor e alertas? -, a jornalista Paula Torres de Carvalho escrevia: ?Nem todos os desenhos representam a imagem de um pai forte, grande ou herói. (…) Há muitas caricaturas a salientar a fragilidade dos pais (…). Outros ainda são claramente reveladores de casos graves de abuso sexual, existindo mesmo referência explícita a determinadas situações?. O leitor pergunta-se ?quais as qualificações? da jornalista para tirar estas conclusões, considerando que são ?demasiado graves para serem lançadas ao vento displicentemente?.
Paula Torres de Carvalho garante que a revelação, embora possa chocar, foi feita ?com conhecimento de causa e não por leviandade?. Ela própria tem experiência jornalística de tratamento destas matérias (pelo que não será totalmente ?desqualificada?), e mesmo assim ficou ?perplexa? com o carácter chocantemente explícito de alguns dos desenhos e textos que recebeu das crianças.
Que fazer? Ignorar o assunto? Tratar dele com desenvolvimento? A opção acabou por ser a que se viu: estas situações particulares não foram objecto de trabalho mais aprofundado porque se entendeu que não era o momento próprio para o fazer – ainda recentemente a questão tinha dado motivo a um destaque nas páginas do Público, assinado pela mesma jornalista -, mas considerou-se igualmente que não se devia apenas passar adiante. ?O assunto é tão sério e tão preocupante que considerei que era oportuno referi-lo, num dia em que também é importante recordar que há pais e pais?, conclui Paula Torres de Carvalho.
Compreende-se a opção tomada, até porque parece ter sido tudo menos ligeira ou displicente. E, mesmo com risco de choque, convém sabermos de situações de uma violência tal que levam crianças de tenra idade a aproveitarem as páginas distantes de um jornal para gritarem, ao menos ali, a sua dor e a sua raiva.
Reproduzir os desenhos em causa, naquele contexto e sem enquadramento, seria, sim, uma ação de choque gratuita. Aproveitar a oportunidade – face à incontornável evidência dos exemplos recebidos – para chamar a atenção de um gravíssimo problema que entre nós existe, parece justificável.
Uma outra leitora criticou, semanas atrás, a divulgação, na revista Pública, de excertos de banda desenhada erótica do artista japonês Toshio Saeki, tendo-se mostrado chocada com um desenho específico – o que mostrava um casal e duas crianças envolvidos em carícias sexuais, sugerindo um quadro incestuoso. ?Quando compro uma revista como a Pública e a trago para casa, deixando-a em cima da mesa à disposição de quem queira ver, crianças incluídas, parto do pressuposto que ela, ao contrário de outras que também posso comprar se quiser, não tem este tipo de conteúdos. Deparar com eles assim, sem aviso, fez-me sentir enganada?, comentou a leitora.
Talvez não seja por acaso que esta questão se levanta na banda desenhada. Não há muito tempo, a apresentação de uma outra BD na Pública suscitou um ror de cartas de protesto contra as temáticas sexuais que ela explicitamente abordava. No entender do editor da revista, João Carlos Silva, perdurará ainda a ideia de que BD é uma ?arte infantil? – preconceito que ele, naturalmente, recusa.
Exemplos de outras manifestações artísticas com alusões sexuais têm sido apresentados nas páginas do jornal ou da revista e parecem ser recebidas com maior naturalidade pelos leitores. Veja-se o caso da polémica exposição da fotógrafa americana Renée Cox, que encenou uma Última Ceia originalíssima, com a figura de Jesus susbtituída pelo corpo nu de uma mulher (a própria artista), e que o Público reproduziu. O carácter provocador de alguma arte, que remexe inesperadamente as nossas rotinas ou incomoda o conforto de quadros mentais em que nos habituámos a funcionar, é uma das suas virtualidades. E se, por vezes, significa ?tratamento de choque?, embora situado no universo criativo e imaginário que nos projecta para além das nossas evidências materiais, nem por isso é necessariamente negativo. O incómodo, o imprevisto, o diferente, podem ser bem mais estimulantes do que o conhecido, o esperado, o ?normal?.
Voltando à BD de Toshio Saeki e à alusão ao incesto, parece claro que se trata de um desenho muito ?forte?, mas porventura menos agressivo do que tantas imagens reais que vemos (adultos e crianças) por todo o lado, seja na televisão, nos escaparates de um quiosque ou numa qualquer loja. Naquele caso, trata-se de uma manifestação artística, considerada significativa da obra peculiar de um famoso criador japonês, e que deve ser lida como tal, no contexto informativo em que foi apresentada. Independentemente dos gostos pessoais, ninguém confundirá aquilo com uma revista pornográfica. ?Não se pretendeu chocar ninguém e lamenta-se o facto de isso ter acontecido?, comenta João Carlos Silva, insistindo em que a BD não é uma coisa ?infantil? e ?a Pública também não?.
O problema, afinal, não estará tanto nas imagens em si, mas no propósito com que são feitas e no contexto em que são divulgadas. Sendo que, no caso de um jornal como o Público, o respeito pela sensibilidade dos leitores deve ir de par com a consideração pela sua inteligência, pelo seu desejo de conhecer e pela sua autonomia de pensamento.
EM SÍNTESE
Alerta: Mesmo em dia de festa, houve crianças que precisaram de gritar a sua dor
Choque: Respeite-se a sensibilidade dos leitores mas também a sua inteligência."
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