Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

João Gabriel de Lima

ELEIÇÕES 2002

“A imagem é tudo”, copyright Veja, 14/8/02

“Quando vão a um debate, candidatos se armam de estatísticas, preparam perguntas capciosas, esmiuçam a biografia dos adversários. Tudo isso, no entanto, não é tão efetivo quanto parece. Para uma parte significativa da audiência, o que conta é o grau de segurança que os presidenciáveis passam, a veemência de seus gestos, a simpatia pessoal. Numa palavra, a imagem que conseguem transmitir. Para se ter uma idéia de como a maioria dos eleitores enxerga os candidatos, VEJA encomendou ao Instituto Vox Populi uma pesquisa qualitativa sobre o debate de domingo passado na TV Bandeirantes. Foram selecionados, em São Paulo, dez homens e mulheres entre 25 e 45 anos, pertencentes à classe C, a mais requisitada nesse tipo de pesquisa por seu pensamento corresponder ao da média do eleitorado. Todos tinham também em comum o fato de integrar a fatia dos indecisos. No grupo de discussão, foram mostrados trechos do debate, primeiro com a televisão sem som, e depois com som. O dado mais curioso da pesquisa é que nenhum dos temas levantados pelos presidenciáveis – isso mesmo, nenhum – foi discutido pelos integrantes do grupo. Nenhuma estatística foi questionada, ninguém concordou nem discordou de nada do que foi dito, poucos se deram conta dos assuntos que estavam em pauta. Para avaliar Lula, Ciro, Serra e Garotinho, inclusive conferindo-lhes notas (veja quadros ao longo desta reportagem), as pessoas basearam-se unicamente no que viram. Não houve praticamente nenhuma diferença entre a avaliação com som e o julgamento sem som. Em resumo: a forma prevaleceu sobre o conteúdo.

Durante a pesquisa, todos ouviam calados quando Ciro Gomes e Lula falavam. O grupo se dispersava nas intervenções de Serra e Garotinho. ?Isso é um indício do maior carisma dos primeiros?, analisa a psicóloga Elizabeth Andrade Fontenelle, do Vox Populi, mediadora do encontro. No caso de Ciro Gomes, considerado o melhor pelo grupo recrutado pelo instituto de pesquisa, ficou evidente que a comparação com o ex-presidente Fernando Collor de Mello pode estar mais carregada de positividade do que de aspectos negativos. Assim como Collor em 1989, ele passa a impressão de elegância, juventude e capacidade para atingir seus objetivos. Aos olhos dos eleitores, Lula, que ficou em segundo lugar, é o sujeito que saiu do nada e ?chegou lá?. Sua indigna&cceccedil;ão soa, agora, mais parecida com a do chefe de família da classe média que tenta esticar o salário no fim do mês do que a de um incendiário que prega a revolução socialista.

Essas constatações que vieram à tona na pesquisa embutem um ponto complexo e que sofreu mutações no decorrer da história: a de como se delineia e se fixa a imagem pública de um líder político. Até o surgimento da moderna democracia, no final do século XVIII, tiranos e reis impunham-se, no mais das vezes, pelo medo que inspiravam. Se houvesse marqueteiros na Roma antiga, eles muito provavelmente aconselhariam aos imperadores que caprichassem nas expressões ameaçadoras – era o que fazia Calígula, que costumava treinar caretas ao espelho, antes de aparecer em público. Mesmo os príncipes do Renascimento, responsáveis pelo patrocínio de delicadas e transformadoras obras de arte e arquitetura, eram instados a reiterar uma imagem enérgica e cruel. Os conselhos de Maquiavel, em seu famoso livro O Príncipe, são exemplares nesse sentido.

Evidentemente, com o desenvolvimento dos sistemas políticos representativos, a imagem pública dos líderes teve de ganhar outros contornos. Ela não deveria mais aterrorizar, e sim convencer. Esse convencimento se dá no plano psicológico de duas formas: pela identificação com o homem do povo ou pela personificação de suas aspirações mais nobres. Dificilmente por ambas ao mesmo tempo. Para reforçar a identificação, alguns usam roupas baratas, como fazia Jânio Quadros. Outros exageram no sotaque caipira, como Orestes Quércia e José Dirceu, e comem coxinha no boteco, recurso generalizado entre os políticos brasileiros. Uma imagem que corresponde a aspirações elevadas é a do presidente Fernando Henrique Cardoso. Por mais que os eleitores o desaprovem, é impossível negar que sua cultura, refinamento e desenvoltura no cenário internacional são tudo aquilo que, no íntimo, boa parte dos brasileiros gostaria de ter.

Dentro dessa linha de raciocínio, o caso de Lula merece reflexão. Ex-operário que se manteve umbilicalmente ligado a suas origens, o petista não precisa recorrer a expedientes artificiais para garantir uma identificação imediata com a maioria dos eleitores brasileiros. Por sua trajetória bem-sucedida na política, podia representar também uma aspiração. Não era o que ocorria, pelo menos até pouco tempo atrás, porque sua imagem desgrenhada, tão ao gosto dos intelectuais de esquerda, incomodava o eleitor mais pobre. Este via em Lula uma pessoa tão igual a ele que não parecia ser capaz de realizar saltos mais ambiciosos. O petista perdeu três eleições seguidas, uma para Collor e duas para Fernando Henrique, e agora vem operando uma mudança radical de imagem. A conselho de seu marqueteiro, anda sempre com bons ternos, tem visitado e recebido estadistas estrangeiros, discute economia com empresários – tudo devidamente registrado pela mídia impressa e televisiva. A mudança de estilo já começa a dar resultados nos grupos qualitativos. Na pesquisa encomendada por VEJA, afirmações como ?venceu na vida? e ?chegou a vez dele? apareceram mais do que frases do tipo ?gente como a gente?.

Na era da indústria cultural, o cuidado com a imagem pública tem de ser redobrado. Isso porque, por obra de fotógrafos e diretores de televisão, ela pode ganhar uma autonomia indesejada, desgrudando-se da personalidade de carne e osso que a gerou e voltando-se contra ela. O exemplo clássico é o do presidente americano Franklin Delano Roosevelt, que governou de 1933 a 1945. Ele pilotou o New Deal, o ambicioso projeto socioeconômico que tirou os Estados Unidos da Grande Depressão, levou o país à vitória na II Guerra e consolidou a liderança americana no mundo. Fez tudo isso preso a uma cadeira de rodas, vítima da poliomielite. Seus assessores, no entanto, proibiam que o presidente fosse fotografado na cadeira. A despeito de todas as realizações e da personalidade carismática de Roosevelt, eles achavam que exibir o seu problema físico o fragilizaria perante a população.

Os métodos de aferição da força ou da fraqueza de uma imagem pública foram sendo aperfeiçoados à medida que se fortalecia a modalidade conhecida como marketing político. Hoje, um dos procedimentos mais utilizados pelos institutos que fazem pesquisas qualitativas em época de eleições é o ?retrato chinês?. Os participantes dos grupos de discussão são chamados a comparar cada candidato com um animal, um prato, um estilo musical, uma marca de carro etc. O importante é que os eleitores efetivamente consigam montar o retrato. Isso configura quão forte é a imagem do político. No grupo formado a pedido de VEJA, Serra e Garotinho apareceram com retratos pouco definidos. Ainda por encomenda da revista, o Instituto Vox Populi reuniu um segundo grupo de discussão, composto de meninas e meninos de 9 a 12 anos, pertencentes à classe B. Na avaliação das crianças, o império da imagem revela-se em estado puro. Elas julgam unicamente pelo que vêem, porque não têm informações prévias sobre os candidatos. Entre os quatro presidenciáveis, Lula foi considerado ?o mais chato? e também ?o mais sério? (veja quadro abaixo). Para os pequenos, ele seria também o mais rico, por ser o que mais apareceria na televisão. ?Quem vai muito à TV só pode ter muito dinheiro?, disse um deles. Garotinho seria ?o mais legal?, um adulto que provavelmente brincaria com crianças (detalhe: ninguém sabia no grupo que o candidato do PSB é pai de nove filhos). Ciro e Serra obtiveram pouca repercussão. Se a eleição fosse feita entre as crianças, Lula ficaria em primeiro lugar, Garotinho em segundo, Ciro em terceiro e Serra em quarto. Apesar de pouco simpático, o candidato do PT, para elas, tem ?mais cara de presidente?. Não deixa de ser uma outra boa notícia para os marqueteiros de Lula.”

“Ciro Gomes e os ?babacas?”, copyright Folha de S. Paulo, 11/8/02

“Em minha coluna na Folha Online, classifiquei de manipulação o fato de Ciro Gomes apresentar-se como o dono do prêmio do Unicef em reconhecimento ao esforço de combate à mortalidade infantil no Ceará. Ciro recebeu o troféu, mas era somente coadjuvante do programa lançado por Tasso Jereissati, seu antecessor.

Com base nessa informação, José Serra quis mostrar no debate da TV Bandeirantes – e a acusação foi repetida várias vezes na semana passada- que Ciro Gomes mentiu, como se tivesse inventado uma condecoração. O candidato oficial manipulou eleitoralmente a manipulação.

A verdade: Ciro tem o direito de dizer que o Unicef premiou o Ceará durante sua gestão. Mas enganou quando contou sobre a autoria do programa de combate à mortalidade.

Nos últimos dias, os tucanos mudaram de tática contra Ciro. Experimentaram, de início, atá-lo à imagem de Fernando Collor. Ambos, de fato, se parecem, especialmente no voluntarismo um tanto tresloucado e na dificuldade de manter o equilíbrio emocional. Mas comparar Ciro a Collor é apenas uma jogada de marketing. E ainda não funcionou, se é que vai funcionar.

Agora, eles batem na tecla de que Ciro não é confiável, apontando-o como mentiroso crônico. E aqui existe margem de manobra: o ex-governador dá a entender que sempre estudou em escola pública (errado), que parou de falar mal de Antonio Carlos Magalhães depois da morte do seu filho, Luís Eduardo (errado), que fundou o PSDB (errado), que não faz linchamentos morais (errado), que saldou a dívida do governo (errado).

Durante a semana, imaginava-se, em particular nos meios governistas, que os ataques fossem surtir efeito. Na quinta-feira, porém, a desilusão veio numa pesquisa do Ibope: Ciro subiu e Serra caiu.

Provar que um político mente comove a opinião pública?

É mais fácil encontrar neve no Ceará do que um político que nunca mentiu ou manipulou eleitoralmente uma informação. Serra, por exemplo, apresentou-se como criador do seguro-desemprego, que foi criado por José Sarney. Vendeu a idéia de que a queda da mortalidade infantil era uma das grandes conquistas de sua gestão como ministro da Saúde -uma vitória que, em essência, pode ser dividida entre várias esferas e pessoas, a começar do programa lançado no Ceará, cuja autoria é manipulada por Ciro. É verdade quando dizem que Serra não estava tão identificado com o Plano Real, ao contrário do que ele tenta mostrar na campanha.

Seria tão fácil quanto injusto igualar as atitudes de Serra e de Ciro. Mas será que o eleitor comum percebe as diferenças?

Há tempos, venho notando (e as minhas impressões são reforçadas por educadores) que, para a imensa maioria dos estudantes, o ?rouba, mas faz? é, em larga medida, aceito. É mais ainda disseminada a percepção de que todos os políticos enganam, ludibriam, mentem. Tais visões alimentam nos jovens um ceticismo geral e crônico em relação aos políticos, o que os afasta da leitura dos jornais e até do aprendizado de história, visto como uma sucessão de versões oficiais.

Sentem-se como se todos os políticos, sem exceção, os considerassem ?babacas?, a quem acenam com promessas mirabolantes, torcendo números e fatos.

Essa percepção que vejo com nitidez entre os jovens foi detectada em toda a população pelo Instituto Vox Populi, que mostrou aos entrevistados uma lista de categorias e indagou-lhes qual delas fala menos a verdade. A lista relacionou como categorias artistas de televisão, empresários, crianças, advogados, jornalistas, motoristas de táxi, políticos, professores e padres. Em primeiro lugar, bem na frente (muitíssimo na frente), ficaram os políticos.

Transformar os palanques em espaço para fazer o ranking de políticos que mentem talvez seja notícia de jornal ou matéria para artigos e análises -daí a criar um diferencial diante do grosso do eleitorado é, no mínimo (e coloque mínimo nisso), uma empreitada arriscada.

PS – Não tenho vocação corporativista. Mas, quando Ciro Gomes, na sua crônica irritação, chama de ?babacas? os fotógrafos que cobriam um de seus comícios, ofende não apenas os jornalistas mas também os trabalhadores. Ou ele acha que aqueles indivíduos estão ali para se divertirem? Com isso, ele passa a seguinte dúvida: se como candidato trata as pessoas com tal nível de desrespeito, imaginem quando se tornar presidente.”