CASO DANIEL PEARL
“?Eu acuso!?”, copyright Veja, 22/10/03
“Um crime bárbaro interrompeu, no início do ano passado, a bem-sucedida carreira do jornalista americano Daniel Pearl. Correspondente do Wall Street Journal na Índia, ele foi a Karachi e Islamabad, no Paquistão, para fazer uma série de reportagens sobre o Islã. No dia 23 de janeiro, saiu do hotel para entrevistar Mubarak Gilani, líder de uma organização fundamentalista. Um discípulo de Gilani levaria Pearl, de carro, ao esconderijo do líder. Era uma cilada. O americano foi seqüestrado. Depois de uma semana em cativeiro, na qual chegou a levar um tiro na perna durante uma tentativa de fuga, o jornalista foi assassinado de maneira cruel – cortaram-lhe a cabeça com um punhal. Os criminosos gravaram a decapitação em vídeo e divulgaram a imagem pela internet. O mundo ficou chocado com a monstruosidade. Pearl tinha 38 anos e sua mulher, Mariane, estava grávida de sete meses. O filósofo Bernard-Henri Lévy, grande estrela da intelectualidade francesa, sentiu-se especialmente atingido. Ele via pontos em comum entre sua trajetória e a do jornalista. Os dois se interessavam pelo conflito entre Índia e Paquistão, e haviam escrito sobre o assunto. O terrorismo era outro tema recorrente nos textos do filósofo e do repórter, ambos judeus. Em entrevistas, Lévy, que não conheceu Pearl pessoalmente, o chamava de ?amigo póstumo?. Essa identificação motivou o intelectual a escrever sobre o assassinato do jornalista. Best-seller na França, onde vendeu 200.000 exemplares, e bem recebido pela crítica nos Estados Unidos, Quem Matou Daniel Pearl? (tradução de Flávio Quintiliano; editora A Girafa; 469 páginas; 52 reais) chega nesta semana às livrarias brasileiras.
Bernard-Henri Lévy define sua obra como um romance-reportagem, e evoca no prefácio o nome de Truman Capote, autor do grande clássico do gênero, A Sangue Frio. Não se espere, no entanto, um relato jornalístico nos moldes americanos, objetivo e impessoal. Lévy conduz sua narrativa como um romance policial, tendo como personagem principal o detetive – no caso, ele mesmo. Para reconstituir as trajetórias de Pearl e do cérebro por trás do crime, o terrorista inglês Omar Sheikh, o filósofo deu a volta ao mundo. Rastreou pistas no Paquistão, Afeganistão, Índia, Estados Unidos, Inglaterra, Bósnia e Emirados Árabes Unidos. A aventura da investigação é contada em detalhes, na primeira pessoa. As qualidades e os defeitos do livro decorrem dessa opção. Lévy fala demais de si próprio, como se a obra fosse sobre ele. Maldosamente, parte da crítica francesa apelidou o livro de ?Tintin no Paquistão?. A virtude que compensa o percalço é que a narrativa é irresistível. Como nos melhores romances de detetive, o leitor acompanha cada pista e cada conclusão provisória do investigador, e vai montando o quebra-cabeça junto com ele. O livro também tem ?clima? – o autor desvenda, com olhar arguto, usos e costumes do mundo muçulmano. À sua maneira, Lévy elucida o crime, extraindo de sua investigação conclusões polêmicas.
São duas as teses do filósofo. A primeira não é exatamente original. Lévy assevera que Omar Sheikh, o arquiteto da monstruosidade, o homem que atraiu Pearl para a armadilha agendando a falsa entrevista, não era um fanático agindo isoladamente. Nascido na Inglaterra numa família paquistanesa de classe média, Sheikh estudou em bons colégios e foi aluno brilhante. No início dos anos 90, época em que fazia faculdade na prestigiada London School of Economics, assistiu a um documentário sobre a Bósnia. Chocado com o que viu, resolveu participar de uma caravana de estudantes ingleses a Sarajevo. Nascia aí um militante islâmico. Quando planejou o seqüestro de Daniel Pearl, Sheikh já havia participado de várias ações terroristas, tendo sido inclusive preso na Índia. Condenado em vários processos, como se explica que circulasse livremente pelo Paquistão? Segundo Lévy, ele era protegido e até teleguiado por uma ala radical do ISI, o serviço secreto paquistanês. Não é uma tese original porque a CIA e a polícia da Índia trabalham com a mesma hipótese, e o intelectual Tariq Ali chegou a escrever sobre o assunto. Lévy, no entanto, foi a campo e recolheu mais evidências. Entrevistou um policial paquistanês que falou da existência de terroristas ?intocáveis?, protegidos pelo ISI. Examinou os autos do processo de Pearl e constatou que, embora Sheikh tenha sido preso e condenado à morte, vários dos envolvidos no assassinato do jornalista americano não foram nem sequer interrogados. Lévy deduz que o governo do Paquistão quis resolver o caso rapidamente entregando um peixe grande à opinião pública ocidental, mas se eximiu de ir mais a fundo e expor as entranhas do serviço secreto do país.
A segunda tese do filósofo reza que o jornalista não foi assassinado apenas por ser americano e judeu, simbolizando assim o opressor, na ótica dos fundamentalistas. Pearl, segundo ele, estava próximo de descobrir uma conexão entre o serviço secreto paquistanês e a rede terrorista Al Qaeda, comandada por Osama bin Laden. Ele apóia essa hipótese na obsessão do repórter em entrevistar o líder fundamentalista Mubarak Gilani, chefe de uma organização de importância secundária. Qual a razão de tanto empenho, se Gilani era um peixe relativamente pequeno? Segundo Lévy, havia indícios de que o líder fundamentalista era ligado à Al Qaeda, podendo esclarecer a suposta ligação com os paquistaneses. Lévy investigou a conexão por conta própria e colheu o impressionante depoimento de um agente do serviço secreto afegão, que afirma que Omar Sheikh conhecia Osama pessoalmente, o que fecharia o círculo. O Wall Street Journal, onde Pearl trabalhava, negou-se a colaborar com a investigação de Lévy, sem confirmar nem desmentir a hipótese. O filósofo ouviu também fontes do serviço secreto americano, que rechaçaram a tese. Ainda assim, Lévy insiste em sua teoria. Chega a ligar os pontos e diz textualmente que a Al Qaeda de Osama bin Laden teria se aproximado do ISI com o intuito de colocar as mãos numa bomba atômica paquistanesa.
Aos 55 anos, Bernard-Henri Lévy é o representante mais notório de uma espécie tipicamente francesa: a do intelectual superstar. Em seu país, ele é conhecido pelas iniciais BHL, da mesma maneira que o estilista Yves Saint Laurent, seu grande amigo, assina YSL. Cioso de sua imagem, usa sempre camisas brancas cuidadosamente desabotoadas e cultiva um corte de cabelo que é a sua marca registrada. Recentemente, uma revista publicou uma reportagem sobre ele com o seguinte título: ?Deus morreu, mas o meu penteado continua ótimo?. BHL, que recebeu uma herança considerável, mora num belo apartamento no bairro parisiense de Saint Germain. Tem, ainda, uma casa no sul da França e um palacete em Marrakesh, no Marrocos, que já pertenceu ao milionário americano John Paul Getty. A imprensa adora fofocar sobre seus supostos namoros, mas o filósofo garante ser fiel à mulher, a atriz Arielle Dombasle, uma das maiores beldades do cinema francês. Eles seriam uma versão gaulesa do casal Arthur Miller e Marilyn Monroe. BHL, que também se considera cineasta, escreveu um filme para Arielle e fez questão de dirigi-lo. A película, Le Jour et La Nuit (?O Dia e a Noite?), de 1997, que mescla existencialismo com cenas de sexo, capricha, para variar, nas referências autobiográficas. Como se tem em alta conta, BHL chamou ninguém menos do que Alain Delon – outro amigo – para interpretar seu alter ego.
Parte da imprensa francesa viu em Quem Matou Daniel Pearl? uma tentativa pretensiosa de repetir o famoso panfleto ?J?accuse? (?Eu acuso?), escrito no fim do século XIX por Émile Zola. Na ocasião, o autor de Germinal fez a defesa de Alfred Dreyfus, capitão do exército francês que havia sido condenado injustamente por espionagem – no processo, o que contou na verdade foi o anti-semitismo dos oficiais contra o judeu Dreyfus. Lévy também teria se inspirado no patriarca de todos os intelectuais franceses, Voltaire, que no século XVIII defendeu Jean Calas, injustamente condenado à morte por assassinato – na verdade, Calas, protestante, foi vítima de uma corte católica intolerante. Lévy, com seu estilo pop-ribombante, está para o clássico Voltaire assim como os Rolling Stones estão para Beethoven – não há termo de comparação entre eles. É saudável, no entanto, que tenha resgatado os valores de seus antecessores ilustres, defensores de cidadãos inocentes contra a arbitrariedade. Ao longo do século XX, a intelectualidade francesa fez papéis vergonhosos. Primeiro, foi a recusa em condenar o nazismo antes da II Guerra, numa neutralidade próxima da conivência. Depois, pela adesão majoritária ao stalinismo, que atingiu até o maior mito da categoria, Jean-Paul Sartre. O autor de O Ser e o Nada chegou a dizer que o escritor dissidente Alexander Soljenitsin era um ?elemento nocivo? por ter denunciado os crimes de Stalin, numa vergonhosa defesa do opressor. Ao contrário de tantos de seus compatriotas, Lévy não se guia pelo antiamericanismo cego. Acha que o Ocidente deve, sim, combater o terrorismo. Ou seja, pode ter um cabelo impecável – mas embaixo dele existe um cérebro que funciona.
UM CRIME DE ESTADO
?Daniel Pearl foi seqüestrado e assassinado por grupos islamitas manipulados, com toda a certeza, por uma facção dos serviços secretos – a mais radical, a mais violenta, a mais antiamericana das facções que disputam o controle dos serviços. E como negar que ela se comportou neste caso, de cabo a rabo, como se estivesse à vontade no Paquistão de Musharraf? Esse crime não é uma notícia de coluna policial, um assassinato à toa, um ato descontrolado de fundamentalistas fanáticos – é um crime de Estado, premeditado e acobertado, quer isso nos agrade ou não, pelo governo paquistanês. (…) É um ?massacre de Estado?, cujo paradoxo é pôr em causa um país amigo dos Estados Unidos e do Ocidente, aliado na luta de morte contra o ?eixo do Mal?, membro oficial, em outras palavras, da coalizão antiterrorista.? Trecho de Quem Matou Daniel Pearl?”
ECOS DA GUERRA
“O Diário dos Bravos – e dos descontentes”, copyright Aol Notícias (www.aol.com.br), 17/10/03
“Graças a um exaustivo trabalho de reportagem do Stars and Stripes jornal das Forças Armadas dos Estados Unidos, descobriu-se que há no Iraque um foco de descontentamento com a ocupação americana . Ele se acha no seio de grupo fortemente armado, que não fala árabe, não segue a religião islâmica e tampouco idolatra Saddam Hussein. Ainda assim, tem potencial para causar dores de cabeça horrendas em George Bush. Afinal, ele é formado por boa parte dos próprios soldados americanos que controlam o país.
O jornal registrou a insatisfação da tropa a partir de uma investigação que mobilizou três equipes de repórteres, todos militares. Eles foram enviados ao Iraque em agosto com a missão de entrevistar o maior número possível de soldados, com base num questionário de 17 perguntas. Passaram dois meses no país, entrevistaram 1935 homens e mulheres em uniforme e o resultado de seu trabalho começou a ser publicado na quarta-feira nas páginas do Stars and Stripes. Ele desmascara um dos principais mitos propagados pelo governo americano: o de que suas tropas no Iraque estão bem treinadas para a missão e com o moral elevado.
Metade dos entrevistados disse que o que acontece no teatro de operações é exatamente o contrário. As tropas estão despreparadas para auxiliar na reconstrução do país e o moral entre elas é baixo. Quarenta por cento afirmaram que a experiência iraquiana fez com que decidissem dar baixa das Forças Armadas tão logo tenham a oportunidade. Outros 30% disseram que sua missão é pouco clara e que não conseguem perceber como o Iraque de Saddam era visto por seu governo como um a ameaça.
O próprio jornal reconhece que sua pesquisa não tem um caráter científico – os entrevistados não foram escolhidos para representar o universo das tropas que ocupam o Iraque. Mas diz que elas, junto com o testemunho de seus repórteres, serve para medir com relativa precisão o que anda pela cabeça dos soldados no teatro de operações. Analistas ouvidos pelo jornal The Washington Post concordam.
Sobre a questão da moral entre os soldados, ponto absolutamente sensível de qualquer ação militar, 34% descreveram a sua como baixa. Outros 49% responderam que a moral também caiu em suas unidades. O problema atinge mais de perto tropas do Exército e da Guarda Nacional, um contingente de reservistas.
As reportagens do Stars and Stripes apareceram em meio a uma ofensiva do governo americano contra a midia dos Estados Unidos. George Bush, nos últimos dias, acusou a imprensa de pintar um quadro bem mais crítico da situação iraquiana do que o que existe na realidade. Lembrou que os dignatários e autoridades que visitam o país a convite dos americanos saem de lá muito bem impressionados.
Não é bem assim, escreveram os jornalistas do Stars and Stripes. Vários soldados e oficiais entrevistados disseram que estas visitas têm caráter de espetáculo. Os visitantes, principalmente os congressistas enviados por Washington para testemunhar as ?benfeitorias? da invasão, têm sua circulação e contato com as tropas severamente controlados. Alguns afirmaram até que os soldados são proibidos de conversar com os visitantes.
Os editores do Stars and Stripes resolveram fazer este esforço de reportagem depois de compararem as cartas que recebiam de soldados baseados no Iraque com o discurso ofical sobre a ocupação. Viram que o tom delas diferia muito do que saia da boca dos porta-vozes do governo e decidiu ir à campo investigar o que estava realmente ocorrendo. Fez isso apostando na tradição de independência do jornal, que apesar de receber fundos do Pentágono desde sua fundação, em 1917, nunca deixou que os generais influenciassem sua linha editorial. Até porque, essas são suas ordens. Em toda a sua história, submeteu-se apenas a censura militar em operações de guerra – coisa a qual a imprensa, de um modo geral, é obrigada e se submeter.
O Stars and Stripes agradece a sua existência a John Pershing, um dos grandes generais da história militar americana, e a uma penca de garotos, na maioria aspirantes à jornalista que estavam no Exército por causa da I Guerra Mundial. Pershing, comandante da Força Expedicionária Americana enviada à Europa em 1917, ordenou que fosse publicado um jornal para manter as tropas informadas enquanto estivessem em solo estrangeiro.
No punhado de voluntários que apareceu para cumprir a ordem, estavam o soldado Harold Ross, que depois saiu para ajudar a criar a revista The New Yorker e um dos mais importantes cronistas esportivos americano do século XX, o então tenente Grantland Rice. O jornal, um semanário, foi publicado pela primeira vez no dia 8 de fevereiro de 1918 em Paris.
Tomou seu título emprestado de um folhetim de apenas uma página que circulou uma única vez na Guerra Civil americana, Stars and Stripes – uma referência à bandeira americana. A primeira edição tinha quatro páginas e tiragem de pouco mais de mil exemplares. No final da guerra, vendia 526 mil exemplares. Circulou até 1919, quando os últimos soldados retornaram aos Estados Unidos.
Ele reapareceu 24 anos depois, em maio de 1942, acompanhando a expansão militar americana na II Guerra Mundial. Trazia na capa entrevista com o Chefe do Estado Maior da Forças Armadas, George C. Marshall. O general relembrou o que Pershing queria do jornal. ?Nós mantemos sua instrução para que não haja qualquer controle oficial sobre o que é publicado no jornal?, disse ele. ?Ele é um jornal para o soldado e feito por soldados?. Logo virou diário.
No final da guerra, chegou a vender um milhão de exemplares. Hoje, sua circulação média é de 100 mil exemplares, distribuídos principalmente entre militares americanos estacionados em países estrangeiros. As vendas sobem substancialmente em momentos de guerra, devido ao aumento de tropas no exterior.”
“Nua em Bagdá”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/10/03
“Por incrível que pareça, esse é o título de um excelente livro sobre cobertura internacional lançado recentemente nos EUA. A autora, Anne Garrels, é uma veterana correspondente de guerra americana que faz questão de dizer que não trabalha mais para televisão. Fez a incrível opção pelo rádio. Hoje, ela é uma das estrelas da NPR, National Public Radio. Mas apesar do título apelativo do livro e para decepção de muitos leitores, a autora não revela nenhum grande segredo intrigante da vida daqueles jornalistas que resolveram ser ?correspondentes internacionais? de verdade.
O livro é leitura obrigatória para todos aqueles que ainda se interessam pelo jornalismo internacional e pelas condições de trabalho daqueles jornalistas muito especiais que fizeram a opção de cobrir o que há de melhor e pior nos seres humano em situações de conflito.
Anne Garrels é uma ?senhora? jornalista. Aos cinqüenta e tantos anos (não sejamos indiscretos) ainda é muito atraente e competente. Passou os últimos 25 anos cobrindo diversos conflitos na Bósnia, Chechênia, Afeganistão e mais recentemente no Iraque. Já trabalhou para grandes redes de televisão americanas, como a ABC e NBC, mas se apaixonou pelo rádio. No livro, Anne não esconde suas paixões. Afinal, ela tem o privilégio de trabalhar para um dos melhores serviços jornalísticos nos Estados Unidos, a NPR. Aqui entre nos, é a minha rádio preferida aqui nos EUA. A cobertura é muito melhor do que as redes de TV. Ouço todos os dias a NPR e considero a melhor cobertura internacional no EUA. Eles possuem recursos invejáveis para uma rádio pública. São razoavelmente independente, não sofrem as pressões da guerra contra o terrorismo ou da audiência. A cobertura jornalística é equilibrada e competente em tempos de restrições profissionais e excessos patrióticos. Além disso, a NPR tem o bom gosto e bom senso de complementar a sua própria cobertura com os boletins do World Service da BBC de Londres.
Como estrela da NPR, Anne faz questão de comentar e comparar a cobertura jornalística predominante das grandes redes de TV nos EUA com o seu trabalho solitário e discreto de uma correspondente de rádio. Com muita modéstia ela diz que uma das razões para as autoridades iraquianas terem permitido a sua permanência em Bagdá durante os piores dias da guerra foi simplesmente porque ?eles não achavam que rádio era importante?! Enquanto as televisões e suas enormes equipes ocupavam todo o espaço, os jornalistas de rádio criavam suas próprias alternativas com pautas mais criativas, ousadas e principalmente, mais ?verdadeiras?. Sempre acreditei que o radio ainda é uma excelente alternativa para as baixarias das nossas televisões e dos nossos telejornais.
Defensora do meio radiofônico, Anne Garrels e a NPR nos relembram do potencial do rádio para cobrir grandes eventos em tempos de ?vagas magras?. Mas, enquanto isso na Voz do Brasil da Radiobrás … deixa pra lá!
O livro de Anne Garrels é um diário de uma jornalista americana que enfrentou muitos medos e dificuldades ainda maiores para continuar em Bagdá enviando suas matérias para os ouvintes americanos. Apesar das ameaças e restrições, ela resolveu enfrentar o bom senso dos editores e suas próprias limitações para continuar trabalhando em condições muito difíceis antes, durante e após os bombardeios. Somente 16 jornalistas americanos conseguiram permanecer na capital iraquiana durante os piores dias do conflito. Ela descreve o clima de medo e privações no famigerado Hotel Palestina, epicentro da cobertura internacional em Bagdá. Apesar do clima de heroísmo, ela não deixa de comentar sobre as baixarias da própria imprensa ao lidar com as autoridades iraquianas. Anne toca na ferida ao descrever a cumplicidade entre os ambiciosos jornalistas, principalmente aqueles que trabalham para as grandes redes de TV e os corruptos funcionários iraquianos que prestavam serviços para o todo-poderoso Ministério da Informação. O livro chega a ser ?indiscreto? ao descrever os limites ou a falta de limites para garantir privilégios e exclusividades. Anne sofreu os resultados dessas negociações. Ela descreve em detalhes as suas próprias dificuldades ao lidar com as autoridades iraquianas que nem sempre queriam ?somente? dinheiro. Ela não poupa seus colegas jornalistas de TV e faz questão de dizer que muitas ?jovens e atraentes? produtoras das grandes redes de TV, principalmente algumas ?francesas?, faziam qualquer ?negócio? para conseguir renovar os preciosos vistos de permanência no Iraque. Outros jornalistas faziam questão de denunciar a cobertura de colegas junto às autoridades iraquianas com o objetivo de se livrarem da competição indesejada e incomoda. Ou seja, Anne revela em seu livro as ?Baixarias em Bagdá!
Mas Anne Garrels é uma mulher inteligente, sensível e, às vezes, chega mesmo a ser ousada e indiscreta consigo própria. Ela faz questão de descrever a sua dependência profissional e afetiva com seu ?local fixer? – uma mistura de produtor jornalístico, motorista e ?quebra-galhos? que normalmente trabalha para correspondentes estrangeiros. Não sobram elogios melosos para o seu parceiro iraquiano, Amer, que era, segundo Anne,: ?os seus olhos e ouvidos em Bagdá?!
Até aí, tudo bem. O problema é que Anne faz questão também de dizer no livro que é muito bem casada com um artista plástico americano. Ele participa do livro com excelentes toques de humor, ironia e muita admiração ao descrever o trabalho da esposa, super jornalista. Anne incluiu os emails do marido que insistia em descrever e repassar os detalhes das aventuras de Anne Garrels em Bagdá para os amigos em comum. Um verdadeiro ?menage a trois?. A autora é uma boa contadora de histórias. Insinua, mas não revela. Uma Scherazade moderna em conto das mil e uma noites em uma Bagdá em chamas! Mas, apesar das pequenas ?indiscrições?, o livro é bom. Também vai ser muito útil satisfazer a curiosidade do público sobre a vida de jornalistas em situações de perigo! Merecia ser publicado no Brasil.
Para aqueles que continuam intrigados com o título, eu explico. Não é nada do que vocês estão pensando. As autoridades iraquianas não permitiam que Anne Garrels utilizasse o seu telefone celular via satélite do Hotel Palestina. Para evitar ser surpreendida, ela teve uma grande idéia. Resolveu transmitir seus boletins durante a noite, escondida em seu quarto e… totalmente ?nua?. Ou seja, caso alguém batesse na porta, ela atenderia, mostraria que não estava vestida, que precisava de alguns minutos para se recompor e com isso, teria tempo para esconder toda a sua tralha e evitar o confisco inevitável. Engenhoso? Erótico? Tanto faz. O importante é que certamente o título ajuda a tornar um livro de jornalismo em um grande sucesso de vendas.
Anne tem viajado por todo os EUA e por diversos países divulgando as suas aventuras. Quem quiser saber mais sobre o livro ou ter oportunidade de vê-la ou ouvi-la, é só clicar aqui.
Enquanto isso, no Brasil, continuamos aguardando o livro da nossa única correspondente de guerra, a veterana e atraente Cristiana Mesquita. Assim como Anne Garrels, Cristiana certamente tem muitas aventuras para contar. Agora mesmo está em mais uma ?roubada? na Bolívia, trabalhando para as agências internacionais de TV e distante dos nossos telejornais – Deus sabe por que! O título provisório do livro da Cristiana também promete: ?Alguém aqui que tenha sido estuprada e fale inglês?? Quem conhece a figura já imagina que o livro promete! Quem sabe ela consiga terminar o livro e conseguir uma editora brasileira com coragem suficiente para publicar as ?revelações? de uma correspondente de guerra ?brasileira?.
?Naked in Baghdad: The Iraq War as Seen by NPR?s Correspondent Anne Garrels?
(?Nua em Bagdah: a guerra do Iraque vista pela correspondente da NPR?, Radio Pública Nacional Americana) Editora: Farrar Straus & Giroux; September 2003 240 pgs. Preço: US$ 20 ISBN: 0374529035″