‘‘… A eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude -feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas -pátria, glória e liberdade- ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes.’
Euclides da Cunha, em ‘Os Sertões’, mais precisamente na passagem que conta a travessia do Cambaio, assinala assim o caráter emotivo, banhado em irracionalismo, das palavras que movem os sentimentos militares. Elas não existem para ser compreendidas, analisadas e, muito menos, discutidas. São palavras motoras, que desencadeiam ações rigorosamente irrefletidas.
Antes de todas, vem ‘pátria’. Provoca entusiasmos, arroubos. Abriga mais vibrações que significados. Seu poder é encantatório, ao qual se ascende pela força da fé, pela prece, pela jaculatória hipnótica e exclamativa: ‘Pátria amada! Idolatrada! Salve! Salve!’.
Fantasias comovidas, essas fórmulas levam a convicções tão fortes que suplantam qualquer realidade. A pátria, a nação possuem a natureza de abstrações, de ficções, de generalidades. São sentidas, porém, como verdades mais poderosas do que aquilo que é, que existe, no concreto.
Assim, para salvar a pátria, a nação e, já que tudo aqui é fábula, até mesmo a liberdade, torna-se permitido matar, torturar, prender, exilar, suprimir direitos humanos elementares. As supostas fotos de Vladimir Herzog, publicadas recentemente nos jornais, trazem com elas esse pressuposto. A reação que suscitaram no Exército, com a nota renegada depois, mas sempre sintomática, comprova que, para alguns, a pátria continua acima das instituições e dos homens.
Carnaval – Naquela nota do Exército, uma passagem se refere à ‘índole cristã e pacífica de nosso povo’. Apropriação senhorial, superior, de povo pelo possessivo ‘nosso’, povo que ‘nós’ dirigimos ou vigiamos, mas com o qual ‘nós’ não nos misturamos. Sobretudo, afirmação de que brasileiros possuem uma índole, pacífica e cristã. Qual seria a índole dos suíços? Dos belgas? Dos japoneses? Dos árabes? Dos judeus? Eles também têm índoles. Que são construções mentais ilusórias e aberrantes como aquela formulada pelos militares na frase citada.
‘A Criação das Identidades Nacionais’, de Anne-Marie Thiesse, entre os livros sobre esses problemas, traça um percurso histórico, intrincado e exemplar. Ele desfaz todas as ilusões nacionais. O original é francês (ed. Seuil, 1999); há uma edição portuguesa (ed. Temas e Debates, 2000), que deveria estar em todas as estantes brasileiras, abalando crendices e mitos ideológicos ainda tão vivos. Identidades nacionais, pátrias, índoles, raízes revelam-se, de fato, quimeras voluntaristas que se modificam segundo os interesses, os pontos de vista, excelentes instrumentos para arregimentar, controlar, patrulhar.
Futebol – ‘Nada mais internacional que a formação das identidades nacionais’, reza a primeira frase do livro de Anne-Marie Thiesse. Essas identidades têm apenas 200 anos. Multiplicaram-se ao mesmo tempo, usando os mesmos instrumentos, um ‘kit’ ideológico, como diz a autora. Apesar disso, serviram para afirmar o ‘nosso’ como superior, e o ‘nós’ contra o ‘outro’, que se torna facilmente o ‘inimigo’.
Em nome desse ‘nós’ e desse ‘outro’, imaginários porém opostos, explodem guerras, mortes e massacres.
Samba – As nações inventaram suas histórias, e as histórias fortaleceram as nações. Histórias afirmativas, elas secundam hinos, bandeiras e monumentos. Celebram e reiteram. Mas há outra história, felizmente. Ela busca refletir, com rigor, a partir dos traços deixados pelos homens no passado. Traços incômodos, pois permitem desmontar credos e ficções. É mau sinal quando eles são ocultados ou dissimulados. Os arquivos, auxiliares primordiais do historiador, guardam muitas dessas marcas e cicatrizes essenciais. Por isso mesmo deveriam estar sempre abertos. Por isso mesmo, muitos temem que eles se abram. Em nome da pátria, da nacionalidade, da índole. Jorge Coli é historiador da arte.’
Biaggio Talento
‘Bastos : sem marola, os arquivos serão abertos’, copyright O Estado de S. Paulo, 6/11/04
‘O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminha para determinar a abertura dos arquivos secretos dos governos militares, informou ontem, na capital baiana, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. ‘Estamos trabalhando nesse assunto com determinação, mas com cautela, sem fazer marola, gritaria, suspenses à toa’, comentou o ministro.
De acordo com Bastos, o governo está avaliando o assunto, pois há documentos que ‘claramente não podem ser abertos, pois envolvem negociações diplomáticas’, disse ele. Ao mesmo tempo, o ministro salientou que a questão não pode ser revolvida precipitadamente, para não causar prejuízos ao País. Ele negou haver qualquer tipo de resistência por parte do presidente Lula: ‘O presidente é um estadista que raciocina, que pensa no bem do País e examina todos os lados de cada questão antes de decidir e é isso que está sendo feito agora’.
Bastos foi a Salvador assinar convênios na área de segurança pública com o governo baiano. Na solenidade com o governador Paulo Souto (PFL), realizada no Palácio de Ondina, o ministro encontrou o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), de quem se diz amigo há mais de vinte anos e que esta semana criticou duramente o governo no Senado.
O ministro respondeu com humor a perguntas sobre uma eventual investigação sobre as denúncias, feitas por ACM, de utilização indevida da máquina federal nas eleições municipais: ‘Acho que não, pois sou um político amador, na verdade sou um advogado transviado na administração pública’, brincou, acrescentando que esse tipo de denúncia é resolvida ‘nos fóruns políticos’.
A seu lado, Magalhães garantiu, no entanto, que existem arranhões sérios no seu relacionamento com o presidente Lula, porque o governo federal contribuiu para a derrota do seu candidato à prefeitura de Salvador, César Borges (PFL). Ele isentou o amigo Bastos das criticas desfechadas contra o Planalto: ‘O ministro é uma das exceções que eu faço no ministério do presidente Lula’, disse.
ACM opinou que o governo Lula ‘não deveria misturar ministros bons como Thomaz Bastos, Roberto Rodrigues (Agricultura) e Antonio Palocci (Fazenda) com incapazes e odiados nas suas próprias terras, como Humberto Costa (Saúde) Miguel Rossetto (Reforma Agrária) e Olívio Dutra (Cidades)’.
Perguntado se Bastos poderia ser uma ponte para a reconciliação com Lula, ACM exercitou sua ironia: ‘No momento não há lugar para ponte, a maré está muito alta’. E enfatizou: ‘Eu não voto com o governo, a não ser que seja um projeto de alto interesse do País’. O senador baiano explicou que, daqui para a frente, pretende, ‘tanto quanto possível’, não atacar pessoalmente o presidente Lula.
E voltou a dizer que Lula está misturando a presidência da República com o PT. Complementou: ‘Esse PT vai levá-lo ao desastre’. ACM informou que não recebeu qualquer telefonema do governo após as críticas feitas no Senado.’
Ricardo Rodrigues e Alberto Komatsu
‘Caso Herzog ‘foi a última gota’, diz Bastos’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/11/04
‘O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse ontem, em Maceió, que o que motivou a saída do ministro da Defesa, José Viegas, foi a posição do Comando do Exército sobre o caso Vladimir Herzog. ‘Eu só passei os olhos na carta de demissão do ministro Viegas’, comentou Bastos, ‘mas a saída dele está claramente ligada à posição do Exército em relação ao caso Herzog’.
Para o ministro, ‘essa foi a última gota dentro de um processo que o levou a pedir demissão’. Apesar de o pedido de ter sido aceito, o ministro da Justiça destacou que ‘o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um grande apreço por José Viegas’. E acrescentou: ‘O presidente gostava muito do trabalho que ele vinha fazendo no Ministério da Defesa’.
Bastos fez também elogios ao demissionário: ‘Ele fez um grande trabalho no Ministério da Defesa, nós trabalhamos juntos muitas vezes e agora o presidente aceitou a demissão dele e resolveu substituí-lo – uma substituição de nível – pelo vice presidente da República José Alencar’.
RESPONSÁVEL
No Rio, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Carlos Lessa, disse lamentar o pedido de demissão de Viegas. ‘Pessoalmente, desenvolvi ao longo desse tempo uma relação muito boa com o ministro Viegas. Ele é, do meu ponto de vista, um brasileiro muito responsável, um profissional, um diplomata muito bem preparado. Agora, administrar a Defesa é uma administração muito difícil, pela complexidade e pela extensão’, afirmou Lessa.
O presidente do BNDES preferiu não se estender sobre o episódio. alegando não ter ainda conversado como demissionário. ‘Queria dizer apenas o seguinte: ele (Viegas) vai continuar a ser um bom amigo meu’, acrescentou.
Sobre o vice-presidente José Alencar, que vai assumir o cargo de Viegas, o presidente do BNDES calcula que ele deverá se adaptar rapidamente à nova função. ‘O lado que o vice-presidente mais me impressiona é a rapidez impressionante com que ele assimila a uma massa de informações. Ele não sabia nada sobre transposição de águas, nada sobre o Rio São Francisco. Em dois meses ele leu tudo, ouviu todos os engenheiros que alguma vez pensaram alguma coisa sobre isso e virou especialista sobre o tema’, disse. ‘Não tenho a menor dúvida de que, no Ministério da Defesa, ele vai saber a diferença entre bala de titânio e bala de aço 596’, acrescentou.
O ministro da Cultura, Gilberto Gil, que participou com Lessa do lançamento de um programa de financiamento do BNDES para salas de cinema, ontem, no Rio, também lamentou o episódio. ‘Fiquei um pouquinho pesaroso porque vou perder um colega, mas vou ganhar outro’.’
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‘Viúva de Marighella defende abertura de arquivos’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/11/04
‘Clara Charf, de 79 anos, viúva do líder guerrilheiro Carlos Marighella – morto a tiros pela polícia política na noite de 4 de novembro de 1969 – defendeu ontem a abertura dos arquivos militares. ‘Nós precisamos ter acesso a esses documentos, as famílias têm de saber o que realmente aconteceu naquele período’, protestou Clara, durante ato pelos 35 anos da morte do companheiro. A homenagem incluiu a recolocação do Memorial Carlos Marighella, escultura de granito com 1,5 metro de altura e 400 quilos – obra do artista plástico Marcelo Carvalho Ferraz – fincada junto a uma tipuana na altura do número 815 da Alameda Casa Branca, nos Jardins, onde ele foi emboscado pelos agentes do DOPS. Moradores resistem à instalação da peça, sob o argumento de que ela ‘causa transtornos’. A versão oficial diz que Marighella, fundador da Aliança Libertadora Nacional, ‘força armada do povo’, reagiu quando se viu cercado. ‘Encontrei por acaso em um arquivo de Campinas documento em que um delegado diz que o Marighella não tinha usado a arma que a polícia dizia que estava com ele’, informou Clara, que se emocionou muito ao falar sobre ‘o grande lutador’, morto aos 57 anos. Ela estava com 44 e prisão decretada. Exilou-se em Cuba, onde trabalhou como tradutora. Maria Marighella, neta, participou da solenidade. O escritor Antônio Cândido disse que Marighella ‘cumpriu o sacrifício supremo, consagrou sua vida lutando pela igualdade’.’