COBERTURA ELEITORAL
Ivo Lucchesi (*)
Em artigos aqui publicados, já tratamos da questão que envolve as implicações entre a produção jornalística e a limitação imposta pelo regime da informação. Em princípio, o leitor menos atento pode haver inferido que o autor nutre profundo menosprezo quanto ao fato de a prática jornalística priorizar a informação, em detrimento da interpretação, da análise e da explicação. Na verdade, porém, seria esse um juízo equivocado. O problema não reside na difusão da informação. Esta é uma ferramenta das mais eficazes, desde que a ela se destine a função devida, isto é, a informação como ponte entre o conteúdo do qual ela se faz portadora e a construção de um pensamento com o qual tanto o jornalista quanto o público leitor sejam capazes de dar expansão às possibilidades de entendimento do tema em pauta.
O equívoco
Se for respeitado o princípio acima formulado, o regime da informação sai absolutamente do foco de qualquer sentido negativo. Todavia, se, em lugar da vigência desse princípio, outro tomar lugar ? qual seja: a informação como meio e fim ?, então não resta outra avaliação senão a de combater o propósito hegemônico defendido por aqueles que depositam na informação o investimento supremo de suas práticas jornalísticas, por reconhecermos o vazio decorrente dessa prática. Em torno desse duelo entre dois caminhos para uma das mais significativas atividades no mundo moderno, um equívoco insiste em constantemente reaquecer a tensão entre as duas correntes. Em que consiste tal equívoco?
A corrente defensora do jornalismo-informação elege como “frágil” qualquer forma de pensamento capaz de ameaçar a positividade dos fatos. Focando a atenção no fato ou acontecimento, essa corrente crê estar em conformidade com a realidade. Ora, é uma formulação radicalmente ingênua, embora reconhecidamente cômoda, por proteger o responsável pela divulgação. A justificativa de que ao leitor cabe a tarefa de, livremente, compreender o que envolve a informação recebida, revela-se igualmente insustentável a menos que vivêssemos numa sociedade cujo perfil da população ostentasse um padrão de elevada qualificação intelectual. Em assim não sendo, o que parece óbvio, o leitor tende a sair da informação para “lugar nenhum”, caindo na “orfandade de sentido” ou limitando-se a repassá-la a seus eventuais interlocutores.
A corrente do jornalismo analítico, em direção oposta, usa a informação como simples instrumento, com o intuito de oferecer ao leitor um desafio ao pensamento. Para tanto, o pacto do risco é inevitável. O “jornalista analítico” opera sempre com margem de insegurança, razão pela qual o ofício se reveste de certa inquietação, compensada, porém, pela estimulante e atraente aventura de estar no centro das mutações que projetam o sentido da vida e da existência num cenário de emoções efetivas e não de excitações fúteis. No artigo anterior [remissão abaixo], mapeamos o problema, quando opusemos a informação à explicação. Vamos ilustrar o que até aqui foi pontuado com a campanha eleitoral já em pleno curso.
Responsabilidade da mídia
É flagrante, em acentuados segmentos da população brasileira, o estado de indecisão vivenciado pelo eleitor. Afora o que decorre da natureza própria de um jogo político cada vez mais obscuro quanto aos “discursos”, agrava-se o quadro pelo modo de atuação da mídia. Não se faz cobertura competente com divulgação diária das agendas de candidatos, reprodução de fragmentos de discursos pronunciados aqui e ali, destaque a resultados da mais recente pesquisa, elaboração de exaustivos gráficos e, menos ainda, com apelos a picuinhas entre concorrentes. Isto nada mais é que transformar a eleição num circo ou numa monótona resenha burocrática e, por vezes, tratá-la como o desenrolar de uma competição esportiva.
Como, jornalisticamente, seria possível oferecer ao leitor uma proposta de análise com a qual ele pudesse tentar compreender a razão de suas indefinições ou testar a resistência de suas convicções?
Num país cujo quadro partidário tem sólido enraizamento em conteúdos e proposições definidos no encargo jornalístico, conforme ocorre em vários países da Europa, seria por outros atalhos. Todavia, num país, a exemplo do Brasil, cuja identidade partidária é historicamente indefinida, quando não artificializada, seria dever ético de todos os veículos de comunicação traçar pautas na direção da “ferida”, de modo a procurar a “cura” possível.
Proposta de análise
À luz da realidade brasileira, quantos eleitores estão efetiva ou razoavelmente esclarecidos quanto ao que significam os partidos a sustentarem suas respectivas candidaturas? Quantos realmente poderão, com pleno centramento e total descontaminação de origem passional, ser capazes de estabelecer reais fronteiras entre PMDB, PFL, PL, PSDB, PT, PDT, PPS, PTB e PSB ? citados apenas os partidos diretamente envolvidos com os quatro principais candidatos na disputa presidencial.
Respeitando o adequado espaço deste artigo, trataremos apenas das legendas de maior suporte às candidaturas. A julgar pelos “programas dos partidos”, desde a respectiva fundação, todos defendem os mesmos belos princípios com os quais a felicidade será alcançada. Não será, pois, esse o caminho analítico rentável.
Em linguagem mais direta possível, podemos sugerir a seguinte síntese. Vamos, para tanto, seguir a ordem em função das recentes pesquisas. O discurso do atual PT, com igual avaliação para o PPS, cumpre, na verdade, o ideário da “social-democracia”, o mesmo que serviu de base para fazer nascer o PSDB. Por sua vez, o PSDB, ao assumir o governo, adotou, na prática, o modelo com o qual sempre se afinaram ideólogos do PFL (economia de mercado para contemplar a face do Brasil-industrial + preservação do latifúndio para satisfazer as “dinastias rurais”). É preciso lembrar que o PFL resulta de diferentes vertentes que outrora ficaram abrigadas na extinta Arena e, em seguida, migraram para o PDS. Quem, rigorosamente, governa o Brasil desde 1964 ? sem serem obviamente as mesmas pessoas ? é o idêntico campo de forças, o que explica, na raiz, a manutenção estrutural do modelo há décadas concebido, apenas acrescido dos reajustes impostos pela dinâmica do próprio capitalismo.
O PMDB, fruto do estilhaçamento do antigo e único movimento de resistência democrática (MDB), tem-se ancorado aqui e ali, destituído de qualquer traço efetivamente ideológico, razão para muitas deserções e outras tantas adesões de conveniências. Por fim, o PSB ? com o selo de Partido Socialista Brasileiro ? não consegue hoje harmonizar convincentemente que socialismo seria, frente às mudanças ocorridas no mundo e agravado pelo perfil indefinido do candidato escolhido, a despeito de muitas vozes contrárias em seus redutos, desde o início das negociações.
Diante do que foi sumariamente traçado, explica-se o atual estágio da campanha. O crescimento de Ciro Gomes tem a ver, em grande parte, com o mesmo impulso esperançoso que dá sustentação ao atual PT. As candidaturas de Lula e Ciro, somadas, pretendem traduzir o que se compreenderia como “centro-esquerda”, sem que nenhum dos dois, separadamente, possa ser identificado como “centro” ou como “esquerda”, com parte do PL e PMDB em apoio ao PT, e com parte do PFL (além do PTB) em apoio à Frente Trabalhista. Ou seja, nesse suposto arco de “centro-esquerda”, há inegável inserção de forças políticas da tradicional direita.
Nesse miolo, com acentuado teor de contaminação (ou de contradições ideológicas), encontra-se a figura do “candidato desgarrado”: José Serra, cuja campanha não decola pela total ausência de padrão de definição. Sofre rejeições de alguns setores do próprio PSDB, é frontalmente rejeitado por alguns segmentos do PFL e, por fim, não tem o referendo real de todo o PMDB. É, portanto, uma “candidatura engessada”. A polarização entre o econômico e o social não lhe permite maiores manobras capazes de marcá-lo como diferença substancial em relação ao que os discursos de Lula e Ciro já pontuem. Querendo ou não, o candidato do governo encarna o legado da dívida social que, a despeito dos oito anos de mandato, não restou tempo para dedicar-lhe a atenção historicamente reclamada. Quanto mais agora ele tenta acentuar, como promessa, a prioridade no investimento de uma política voltada para o social, mais deixa exposta a dívida do governo do qual ele é representante.
Por outro lado, a retórica dos ajustes sociais ? com maior ênfase na proposta do PT ? carece de sustentação convincente, em razão de sabermos que tal concepção vai na contramão dos princípios do capitalismo, somando-se aos vícios cultivados entre as elites econômicas do país. Que prática política será capaz de promover reversões sem intensas turbulências? E caso venham a existir, como serão enfrentadas e com que desfecho? Não podemos perder de vista que a realidade brasileira é habitada por duas radicais contradições: 1) o Brasil é a décima economia mundial; 2) o Brasil está atrás de 72 países em concentração de renda. Um abismo separa a experiência democrática na política, da vigência de uma política econômica com operacionalidade ditatorial. Aliás, a respeito desse impasse, já sobre ele nos manifestamos [cf. OI, edição 168, de 17/04/02, remissão abaixo], quando alertamos para o conflito que se perpetua na América Latina entre democracia política e ditadura econômica.
Emir Sader, em recente artigo intitulado “Democracia e capitalismo” (Jornal do Brasil, 28/7/02), retomou a questão: “Quando se pergunta, por exemplo, se o Brasil é democrático, costuma-se responder com base em um sistema político formalmente liberal. Não se faz a pergunta real: se a sociedade brasileira é democrática”. Adiante, Sader arremata: “Uma sociedade que distribui tão pessimamente suas riquezas socialmente se trata de uma ditadura, com uma ínfima minoria de ricos apropriando-se da grande massa de riquezas produzidas pelos trabalhadores”.
Enfim, foram sinalizadas apenas algumas questões que refletem a “geléia geral” na qual se encontra o quadro partidário em âmbito nacional. Imaginemos, pois, sem o apoio dos meios de comunicação para, passo a passo, fornecer ao eleitorado matérias analíticas, em que situação fica o eleitor para uma escolha consciente. O eleitor indeciso percebe estar habitado por “confusões generalizadas”, sem ter em contrapartida quase nada à altura de lhe dar visibilidade histórica e concreta para mínima compreensão sistêmica de um processo que dele cobra uma escolha, a não ser fragmentados recortes críticos colhidos meio ao acaso.
Num cenário com tantas assimetrias, a mídia teria a obrigação de rever sua atuação, em grau compatível com a responsabilidade de quem sabe existir perante si uma sociedade ainda portadora de grave fragilidade crítica. O findo e resumido “exercício”, passível de discordâncias profundas, serve apenas como “ilustração” do que pode um mero retalho conceitual detonar no leitor uma “atitude” pensante, capaz de tirá-lo do efeito imobilizador que tende a produzir a pura informação.
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV.
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