MEMÓRIA EM LIVROS
Norma Couri (*)
Revistas em Revista, Ana Luiza Martins, 593 pp., Edusp, São Paulo, 2001
JK, O Artista do Impossível, Cláudio Bojunga, 798 pp., Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001
No tribunal.
Juiz: Qual é sua profissão?
Testemunha: Jornalista.
Juiz: Esqueça por um momento de sua profissão e diga somente a verdade
O diálogo foi transcrito do jornal Violeta, da Sociedade Dançante Terpsychore Paulistana, de 1888, por Ana Luiza Martins no livro Revistas em Revista, recém-lançado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). Vai deixar muita gente preocupada porque em 593 páginas de revisão do Brasil a autora faz História com jornalismo, abarcando o período de 1890 até a eclosão da Semana de Arte Moderna. O subtítulo deste tijolo fascinante é justamente "Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República (1890-1922)".
"Não ter curso primário completo era corrente mesmo para quem vivia no universo da escrita", escreve a autora. Ainda assim, era um tempo de deixar o jornalismo moderno com água na boca pela explosão de títulos e tendências ? uma efervescência vinculada ao processo de modernização e de acumulação de riquezas gerado pelo desenvolvimento, em igual proporção, da cultura cafeeira.
Para reforçar a imagem de São Paulo como "o maior empório comercial da América do Sul" era preciso, além da Companhia Antárctica de Cervejas ou da RCA Victor, revistas como a Klaxon. "Se ninguém a ler, paciência" , esnobava Menotti Del Picchia, um dos editores. "Klaxon não se queixará jamais de ser incompreendida pelo Brasil. O Brasil é que se esforçará para ler Klaxon."
As revistas literárias, as infantis e até as agronômicas, como a Revista Agrícola, refletiam interesses políticos e socioeconômicos bem definidos, uma ideologia e uma forma de fazer jornalismo que explicam aqueles 32 anos de Brasil. Uma leitura idêntica à que as revistas nos dão hoje.
O surpreendente é o "avangardismo" de algumas publicações, como a Klaxon, e a nostalgia de outras, como Rainha do Lar. Havia de tudo um pouco: as mulheres usaram a imprensa para vencer preconceitos, como ocorreu com os contos de Júlia Lopes de Almeida publicados em Chácaras e Quintais; a ideologia e a política de oposição à oligarquia apareciam em periódicos como A Farpa (1910); a censura era denunciada em O Parafuso (1918), revista auto-intitulada "Semanário de Combate". (A propósito de O Parafuso, em número especial a revista noticiou sua própria suspensão, na capa: "REAPPARECERÁ no dia em que acabar o estado de sítio". Mais tard, o título foi substituído por A Rolha ? "Semanário independente… Enquanto puder".)
Só em São Paulo, Ana Luiza listou a existência de 42 tipografias. Machado de Assis, João Ribeiro, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Lima Barreto, Afonso Taunay eram os autores de alguns dos textos. As ilustrações podiam ser escolhidas por Di Cavalcanti e assinadas por Anita Malfatti, por exemplo. O grafismo passava pela vanguarda russa, a art-nouveau e a art-déco.
Aurora, O Queixoso, A Cigarra, Revista Feminina, Sports, Tico-Tico, O Guarany ? dos títulos só restou a saudade, o início da caça aos assinantes e a origem dos magros salários: "Esses… montam as revistas e saem com o pires", reclamava Monteiro Lobato.
Contestado e esquecido
Depois de um hiato histórico eis outro momento mágico de crescimento econômico e modernização do Brasil, somado à democracia. É o período encalacrado entre o Estado Novo e a última ditadura militar. São os anos JK, presidente cuja biografia foi escrita pelo jornalista Cláudio Bojunga e lançada pela Editora Objetiva. A obra revive os históricos anos 50 costurados habilmente com depoimentos, entrevistas e perfis de políticos, historiadores, economistas, diplomatas, artistas, sociólogos. É outro irresistível tijolo de 798 páginas, indispensável para decifrar o Brasil. História em forma de jornalismo puro.
Juscelino Kubitschek de Oliveira presidiu o país entre 1956 e 1960. Este estadista sedutor e bem-humorado, que veio na esteira do catártico suicídio de Getúlio, foi o último presidente feliz. JK teve um papel central no Brasil ? e o principal está no título dado por Bojunga: JK, O Artista do Impossível. O Brasil ia dar certo.
Depois, a reviravolta, a ebulição cultural gerou a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro de Arena e a explosão das novas publicações. Na música, os gênios Tom Jobim e Vinicius de Moraes. No cinema, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Na literatura, Guimarães Rosa e João Cabral do Melo Neto. No futebol, Pelé e Garrincha. Foi na onda dos anos JK que os brasileiros venceram a Copa do Mundo na Suécia, em 1958; e, deslizando na passarela estendida pela euforia, Ieda Maria Vargas foi Miss Universo, em 1963.
"Nonô", o presidente bossa-nova, preparou o Brasil para vencer, para a alegria, e não para a derrota, os traumas e o sofrimento. Contagiou os brasileiros com seu estilo pé-de-valsa e os pés sem sapatos. "Trouxe a gargalhada para a presidência", disse Nelson Rodrigues. Mas o golpe de 1964 demoliu o sorriso do peixe-vivo, com conseqüências nefastas até hoje.
Bojunga propõe não só um estudo do Brasil daquele período mas uma revisão da Frente Ampla (segundo o autor, um beijo da morte entre JK, Jango Goulart e Carlos Lacerda, já que os três morreram em menos de um ano), como também do próprio "acidente" na Via Dutra, em 20 de agosto de 1976, que matou Kubitschek. (Estaria JK a caminho de um encontro com a amante Maria Lucia Pedroso?)
Bojunga não vê JK como inventor da hiperinflação nem no papel de entreguista por ter enxergado a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimento no país. Muito menos como currupto. Já no prefácio, avisa que pretende refutar infâmias e reparar injustiças. Como bom jornalista, deixa as conclusões para o leitor. Este deverá mergulhar nas nove partes em que a biografia se divide. Começa com a chegada do avô que veio da Bohemia para Minas, em 1820, até 2001, quando tenta resgatar a lenda JK. Entrementes, passa pelo governo de Minas de 1950 a 1954 e pela construção de Brasília, em quatro anos, nas mãos de Oscar Niemeyer e Lucio Costa ? sonho erguido e concretizado às custas de uma fortuna até hoje incalculada.
A biografia de um único homem acaba servindo de mirante, visão panorâmica da história do Brasil entre 1930 e 1980. Incluindo, é claro, aqueles anos dourados de 1956 a 1961.
Foram mais de dez anos de pesquisa que vingaram. "Ele nos ensinou a ser modernos, cosmopolitas e viáveis", diz Bojunga. Contestado em sua época, esquecido em seguida, JK atravessou a história para transformar-se em unanimidade quase meio século depois.
(*) Jornalista