Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo de convergências e de confrontos

HIPÓLITO EM LONDRES

José Tengarrinha (*)

O aparecimento de jornais escritos em português no estrangeiro em considerável número e com grande vitalidade nos anos que antecederam a Revolução Liberal de 1820 foi um fenómeno inteiramente novo na história da imprensa lusa. A dimensão que atingiu e as características que apresentou exigem uma compreensão não apenas a partir de circunstâncias pontuais e singulares mas, também, de um conjunto vasto e complexo de razões que têm a sua origem em tempos anteriores. E deverá ser interpretado, igualmente, para além da esfera estritamente política a que, em geral, se tem confinado.

Vejamos, em primeiro lugar, como um dos factores mais influentes ? poderíamos mesmo dizer, decisivo ? o papel desempenhado pelos comerciantes portugueses, sobretudo os de Londres, mas também os do Brasil, de Lisboa e de outras cidades marítimas do norte da Europa.

A grande prosperidade comercial que a Metrópole viveu desde fins da década de 1770 foi, sem dúvida, o facto central da economia portuguesa desse período. Bastará dizer que, entre 1789 e 1806, o comércio geral português quadruplicou. O ouro deixava de ser a base fundamental do comércio externo português, como fora nos segundo e parte do terceiro quartéis do século XVIII.

Para tal, muito contribuiu, antes de tudo, a conjuntura internacional favorável à expansão do comércio português. Como factores mais influentes, a revolta das colónias norte-americanas e a guerra da independência, que perturbaram a rede mundial do mercantilismo britânico, ao passo que Portugal beneficiava com a neutralidade da sua bandeira. Também a Revolução Francesa e as guerras europeias sequentes contribuíram poderosamente para enfraquecer a presença marítima da França e da Holanda. Esta situação ainda provocou alguma dinamização do comércio com o Oriente, que no entanto já então representava um valor baixo relativamente ao conjunto.

A evolução da estrutura geográfica do comércio externo português durante este período também aqui nos interessa para compreender como, através de uma mais extensa rede de comerciantes e seus agentes (em contraste com a situação anterior), foi possível difundir com amplitude os jornais londrinos em língua portuguesa. Com efeito, essa evolução mostra, para além do grande aumento do valor total das importações e exportações, como era maior o número de praças abrangidas e também como se diversificavam mais as mercadorias e artigos transportados. Em consequência, Londres, sendo ainda dominante, deixa de manter a posição quase exclusiva que ocupara no quadro do comércio externo português nos três primeiros quartéis do século XVIII.

A forte alta dos preços durante os últimos quinze anos do século XVIII e a primeira década do século XIX está ligada a esta retomada comercial que, para além da referida conjuntura internacional favorável, também alguma coisa se deve a um certo arranque industrial que se faz sentir na Metrópole. [Não poucas vezes este facto é referido nos escritos dos jornalistas de Londres, aludindo aos têxteis (linifícios, sobretudo), chapéus de Braga, cutelaria de Guimarães, entre outros produtos industriais.] Mas são os novos mercados que se abriram aos produtos brasileiros que têm um papel determinante neste impulso comercial.

Analisando, assim, as balanças do comércio do ano, que se pode considerar exemplar, de 1796, verifica-se que o comércio com o Brasil representa 87% do volume total do movimento externo português. Nas importações do Brasil, o maior contingente era ocupado pelo açúcar e pelo algodão, este atingindo cerca de um quinto do valor total dessas importações, o que se compreende dada a importância estratégica deste produto para o sector têxtil da Revolução Industrial em face das insuficiências da matéria prima tradicional, a lã.

Sendo Lisboa a placa giratória deste comércio, [Em 1800, a capital do Reino concentrava 82% do comércio externo metropolitano, sendo quatro vezes superior ao do Porto.] é a praça de Hamburgo o principal mercado dos produtos brasileiros e não a Inglaterra, como se compreende, por esta se abastecer, também, nas suas colónias da América. Assim mesmo, a Inglaterra, que é o principal importador do vinho português, é o segundo importador dos produtos brasileiros e, entre estes, o algodão ocupa mais de 60%.

Quanto às exportações para o Brasil a partir de Portugal, as rubricas de “produções de fábricas”, “mantimentos”, “linifícios” e “produções da Ásia” distribuem-se em partes aproximadamente iguais. De salientar que neste comércio exportador para o Brasil, para além de produções metropolitanas industriais e agrícolas, Portugal desempenhava também um papel destacado como entreposto de produtos ingleses.

Na perspectiva que nos interessa agora, dois aspectos deveremos, sobretudo, reter. Primeiro: apesar da diversificação do comércio externo português, no movimento geral deste com a Europa ocupa a Inglaterra, muito distanciada, o primeiro lugar. Segundo: neste movimento invertem-se as posições tradicionais, passando os negociantes portugueses a superiorizar-se aos ingleses em Lisboa e a ocupar posições de maior destaque na rede do comércio externo português.[No final do século XVIII, o grande comércio, principalmente com o Brasil, é feito sobretudo por casas portuguesas, podendo calcular-se que estas absorvessem cerca de cinco sextos do movimento geral do comércio externo.]

Com a abertura dos portos do Brasil em 1808, entre outras consequências, verifica-se uma profunda quebra no comércio externo português com base nos produtos brasileiros. E o tratado de comércio com a Inglaterra de 1810 ainda mais agrava a dependência de Portugal perante esta. O que não impede os abastados comerciantes portugueses, ao longo deste processo, de tomarem posições de relevo em pontos importantes dos circuitos comerciais e financeiros internacionais e com ligação aos negócios do Brasil.

Londres era o vértice decisivo na relação triangular com Lisboa e Rio de Janeiro, sobretudo desde que a Inglaterra tivera que compensar a perda de influência no norte do Atlântico após a perda das suas colónias na América do Norte, culminando com a arbitragem das negociações conducentes ao reconhecimento formal da independência do Brasil em 1825. Londres era, ainda, o centro dos negócios do mundo, além dos de Portugal, garantindo mais facilidades de comunicação com o Brasil do que através de Lisboa. Aí chegavam de todo o mundo as mais rápidas e abundantes informações. Além de que o envio dos jornais para Portugal e Brasil fazia-se mais seguramente através de navios ingleses que não eram vistoriados pelas autoridades portuguesas.

Tudo isto permite explicar por que Londres passa a ser o grande centro da imprensa em língua portuguesa da primeira emigração, em contraste com Paris, onde então apenas se publicaram três periódicos em língua portuguesa: O Observador Lusitano em Paris ou colecção literária, política e commercial (janeiro a abril de 1815), Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras (julho de 1818 a abril de 1822) e O Contemporaneo politico e litterario (janeiro a setembro de 1820). Ao contrário, em Londres, saíram então Correio Braziliense ou Armazem Literario, junho de 1808 a dezembro de 1822, mensal, redigido por Hipólito José da Costa; O Investigador Portuguez em Inglaterra, julho de 1811 a fevereiro de 1819, mensal, de que foram redactores os médicos Bernardo José de Abrantes e Castro, Vicente Pedro Nolasco da Cunha e Miguel Caetano de Castro e, a partir de janeiro de 1814, José Liberato Freire de Carvalho; O Espelho Politico e Moral, maio de 1813 a fevereiro de 1814, semanal, redigido por João Bernardo da Rocha Loureiro, que encerra este jornal para fundar O Portuguez ou Mercurio Politico, Commercial e Litterario, abril de 1814 a 1822 e 1823 a 1826, mensal; Microscopio de Verdades, 1814 a 1815, irregular, de que foi redactor Francisco de Alpoim e Menezes; O Campeão Portuguez ou o Amigo do Rei e do Povo, julho de 1819 a junho de 1821, quinzenal, depois mensal, redigido por José Liberato Freire de Carvalho depois de ter abandonado a redacção de O Investigador; e O Padre Amaro ou Sovela Politica Historica e Literaria, janeiro de 1820 a agosto de 1829 (publica apêndices até 1830), mensal, redigido por Joaquim Ferreira de Freitas. [Além destes, apareceu ainda em Londres, antes da Revolução Liberal, um jornal absolutista, Argus (1809), de que foram publicados quatro números, sendo seu redactor José Anselmo Corrêa Henriques. O mesmo jornalista publica ainda em Londres, após a Revolução Liberal, um outro jornal absolutista O Zurrague Político das Cortes Novas, que aparece em 20 de março de 1821. Deste, disse José Liberato ser uma “produção bastarda que inclui em si tudo quanto há de mais miserável no estilo e na gramática, assim como tudo quanto há de mais vil, grosseiro e desprezível em indecência e personalidade” (O Campeão Portuguez, vol. 4, p. 128). Por seu turno, João Bernardo da Rocha Loureiro comenta: “O jornal parece redigido por um moço de estrebaria, pois é tão indecente e tão fora de todos os eixos que bem podemos afirmar nunca o prelo caiu depois que há imprensa sobre outra igual composição” (O Portuguez, t. 12, p. 146).]

Para bem compreendermos as características que os periódicos em língua portuguesa apresentaram nesse tempo na capital inglesa, deveremos ter em conta os antecedentes próximos do jornalismo em Portugal.

Desde os fins do século XVIII e até às vésperas da primeira invasão francesa (novembro de 1807), além da submissa e inócua gazeta oficial, predominavam dois tipos de periódicos. Uns, incidiam sobre áreas específicas, como os mercantis, literários e musicais, científicos, agrícolas, históricos ou apenas recreativos e de pura diversão. Outros, que assumem especial interesse para a compreensão de certas características da imprensa londrina, são os jornais de conhecimentos genéricos que podemos designar “enciclopédicos”.

Inserindo-se no que já foi designado “o espírito do século XVIII”, o enciclopedismo tem a sua expressão na imprensa portuguesa através de jornais que apresentam mesmo essa sua característica em título. O primeiro foi o Jornal Enciclopedico destinado para instrucção geral, com a noticia dos novos descobrimentos em todas as sciencias e artes, de julho de 1779 a 1781(?). Ainda três outros apareceram com essa designação até à Revolução Liberal de 1820. Mas, embora sem o título de “enciclopédicos”, muitos outros periódicos tiveram, na verdade, a mesma natureza, propondo-se divulgar conhecimentos científicos, literários, filosóficos, artísticos para um público mais amplo do que de hábito, superando os estritos modelos da cultura aristocrática tradicional. Transmitiam uma mensagem social e politicamente progressiva, baseando o motor do progresso humano no próprio homem, na sua capacidade de conhecer, de racionalizar, de dominar a natureza, sob inspiração do ideário iluminista. Eram, pois, valores inconciliáveis com a organização social e os regimes políticos tradicionais, sendo a sua difusão na Europa e também em Portugal feitas por estes periódicos e também por novas academias. Nas duras condições de censura prévia em que se vivia sob o Antigo Regime, não sendo possível um debate político público, eram estes jornais “enciclopédicos” os que, embora muito timidamente, apresentavam posicionamentos culturais de algum modo renovadores.

Não surpreende, pois, que tendo-se afirmado com bastante relevo em Portugal antes de 1808, esta linha jornalística emergisse também destacada na imprensa em língua portuguesa londrina da primeira emigração. O caso mais evidente é o de O Investigador Portuguez em Inglaterra, mas também, entre outros, o do Correio Braziliense, em certa medida, igualmente, um jornal “enciclopédico”, só assim, aliás, se compreendendo o seu subtítulo de “Armazem Literario”, com a inclusão regular de secções sobre artes, literatura e ciências. Embora a componente política no Correio seja mais dominante do que no Investigador.

Também no carácter predominantemente político desta imprensa de Londres vamos encontrar antecedentes próximos na viragem profunda que se registara em Portugal quando da invasões francesas. A apertada censura prévia do Antigo Regime, que impedira a criação e circulação de jornais políticos e o debate de ideias vai alargar-se nas novas condições.

Idêntico fenómeno se observara na generalidade dos países dominados por Napoleão. Em Espanha, por exemplo, os jornais haviam aparecido em profusão quando o povo se levantou contra o rei intruso que substituíra os Bourbons. Cádis, capital da resistência nacional, transformara-se subitamente num grande centro de irradiação da imprensa.

Em Portugal, logo durante a primeira invasão ? apesar da intensa vigilância exercida por Junot que ocupara o poder em Lisboa ? assistira-se a proliferação da literatura jornalística e panfletária clandestina. Mas já no ano de 1809, da segunda invasão, em que o domínio francês se exercia apenas numa parte do norte do país, foi possível criar 24 jornais que circulavam legalmente. Só num dia ? 1o. de setembro desse ano de 1809 ? foram fundados em Lisboa quatro periódicos, três dos quais diários. Este surto jornalístico surpreendente só foi possível devido à relativa liberdade que então os poderes públicos deram à imprensa.

A situação é explicada claramente por um dos mais destacados jornalistas da primeira emigração, José Liberato Freire de Carvalho:

Enquanto durou a guerra com a França e nossos governantes precisavam de nossa energia e entusiasmo para que ela se concluísse a bem deles, e não a bem do povo, a imprensa, por assim dizer, foi livre em Portugal: então tudo se escrevia, todos escreviam e a todos era lícito revelar seus pensamentos. Mas assim que a guerra se acabou e em vez de um despotismo militar se começou a estabelecer o despotismo civil e religioso, decretos sobre decretos e ordens sobre ordens deram logo cabo de todos os escritos; e só conservaram a Gazeta de Lisboa como imagem desse Alcorão Turco em que crer devem os fiéis que tudo está escrito quanto necessário é para a vida política, civil e religiosa. [O Campeão Portuguez, vol. 2, p. 229 (1/4/1820).]

Regressava-se assim, após a terceira invasão, ao apertado regime anterior da censura. João Bernardo da Rocha Loureiro, vendo proibido o jornal que redigira com Pato Moniz, o Correio da Península ou Novo Telegrapho (Lisboa, 3 de julho de 1809 a 2 de agosto de 1810), vai fundar em Londres O Espelho Politico e Moral e, depois, O Portuguez. Nada mais restava aos jornalistas liberais que se haviam empenhado no debate político durante cerca de dois anos do que retomá-lo no estrangeiro, em condições de maior liberdade que lhe permitiam sair em defesa aberta de uma nova ordem constitucional e criticar duramente a degradante situação nacional. E, desta maneira, não só procurar influenciar os meios políticos e diplomáticos estrangeiros, mas também ter algum peso nos centros de decisão de Portugal e Brasil, bem como espalhar as ideias liberais em círculos politizados.

Destes jornais, três devemos destacar pela sua qualidade jornalística e influência que exerceram: O Correio Braziliense, O Portuguez e O Campeão Portuguez. São os que iremos examinar agora mais de perto.

A audiência que alcançam está, é certo, muito condicionada pelas perseguições que lhes são movidas por governantes de Portugal e Brasil, bem como pela vigilância e frequentes restrições dos representantes diplomáticos portugueses em Londres. Esta questão, porém, não é linear. Segundo uma interpretação mais fácil, teria havido a princípio alguma desatenção e menor consideração das autoridades acerca do efeito exercido por estes jornais, os únicos escritos políticos que circulavam em Portugal e no Brasil, sob regime de censura prévia. A razão mais funda parece-nos ser outra. Depois do estudo que fizemos do funcionamento do aparelho censório no decénio anterior à Revolução Liberal julgamos ter ficado claro que a desorientação daquele era total quer quanto aos critérios de julgamento dos escritos quer quanto aos meios de intervenção, ambos completamente desajustados das difíceis condições políticas que se viviam. Bastará dizer que os censores tinham de guiar-se por textos de três origens diferentes, em muitos aspectos contraditórios: o regimento velho da censura, o regimento produzido no Rio de Janeiro e as frequentes ordens “azedas” do governo. Os censores menos intransigentes na defesa da velha ordem chegaram mesmo a ser acusados de “eivados de espírito republicano”, perseguidos, afastados do exame de certos periódicos (como o prestigiado conde de Barbacena). Acresce que, para tentar evitar restrições na circulação, os jornais de Londres refugiaram-se, sobretudo numa primeira fase, em posições prudentes. São os casos mais constantes do Investigador e do Campeão, redigidos por José Liberato, por receberem apoio do Rio de Janeiro e da embaixada portuguesa de Londres.

Quanto ao Correio Braziliense, a atitude das autoridades portuguesas foi muito oscilante. Em Londres, os representantes diplomáticos portugueses tentaram, desde o início, influenciar Hipólito a mudar de rumo. É muito elucidativo, sobre isso, o correio “secretíssimo” trocado, de 20 de maio a 4 de setembro de 1810, entre o embaixador de Portugal na capital inglesa e o regente do Reino, d. Miguel Pereira Forjaz. Em 20 de maio, tendo sabido que Hipólito ia publicar artigos contra os governantes portugueses, o diplomata tentou dissuadi-lo, mas, achando que ele estava renitente, pediu ao subsecretário de Estado inglês, Hamilton, que impedisse a saída do jornal da Grã-Bretanha, o que este recusou. Mostrando visível desorientação, desculpava-se o embaixador: “Espero que vossa excelência comece a persuadir-se que não é tão fácil fazer calar como vossa excelência imagina”. De qualquer modo, conseguiu evitar a saída de um artigo contra d. Miguel Pereira Forjaz, “a rogos do barão de Eben, a quem eu meti grande susto”. Em agosto e setembro mostrava-se o embaixador descrente de que conseguiria evitar os “desvarios” do jornalista. Por isso, em fins desse ano de 1810 é desencadeado o primeiro acto repressivo contra o Correio Braziliense: o governador de Rio Grande do Sul apreendeu e mandou depositar na Casa da Conferência Mercantil de Porto Alegre os exemplares de junho e julho. [Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo: 1957), p. 29.] No ano seguinte, pela ordem régia de 17 de setembro, era proibida a entrada e circulação do Correio, “folha perigosa” (participando-o à Mesa do Desembargo do Paço em 22 de março de 1812, que o transmitiu em edital). Hipólito ironizava, dizendo que, apesar de tudo isso, “lê-se o Braziliense até no Paço, sem rebuço algum” [CB, 14: 393]. Em 1811 (10 de janeiro a 27 de julho) tenta o representante diplomático português, insistentemente, junto dos governantes britânicos, obter medidas judiciais ou administrativas contra o Correio. Pede que Hipólito seja expulso de Inglaterra, Wellesley promete-lhe em termos vagos que serão adoptadas medidas, mas o jornalista tem a protecção da Maçonaria local e naturaliza-se inglês. Fracassadas estas diligências, é interdita, pela ordem régia de 17 de setembro de 1811, a entrada e circulação em Portugal do Correio “e todos os escritos do seu furioso e malvado autor” e advertindo de que as afirmações do Portuguez eram ainda “mais sediciosas e incendiárias, se é possível” (aviso do governo de Lisboa de 2 de março de 1812).

Em Portugal, os defensores das velhas instituições, tendo à cabeça o frade José Agostinho de Macedo, vociferavam em tom cada vez mais desabrido contra os redactores do Investigador e contra Hipólito, “esse trombeta da pedreirada legislador de Carracas ou esse malvado réu de lesa humanidade que ainda não disse senão bafordas e creia ele de caminho com vocês que se pode escapar do barril de alcatrão que o esperava no Rossio, não me escapará a mim das unhas, pois estou em um Reino onde uma indulgentíssima e mal empregada moderação não deixa responder a impressos com impressos; para o zurzir a ele, a vocês e a todos serei em Londres”. [BNL [Biblioteca Nacional, Lisboa], Res. ms. caixa 74, n.? 35 (carta de José Agostinho de Macedo, em 1812, aos redactores do Investigador).] Aliás, para Macedo não havia grande diferença entre o Correio e o Investigador, mesmo na primeira fase deste, apenas que “o Braziliense tinha o veneno patente, o Investigador, oculto”.

Ainda em outubro de 1816, Palmela, quando tomou conta da embaixada de Portugal em Londres, falou a José Liberato sobre o Investigador, dizendo-lhe que, embora o jornal recebesse um grande auxílio do governo, publicava alguns artigos de política “impróprios do carácter que ele deve ter no público e por isso julgo que é necessário que esses futuros artigos sejam aqui combinados na minha secretária”. [José Liberato Freire de Carvalho, Memórias da vida (Lisboa: 1855), p. 157.] Mas também essa pressão não resultou.

Uma certa indulgência que então se reconhece das autoridades portuguesas para com o Correio devia-se ao facto de ser voz corrente que recebia uma subvenção da Corte no Rio de Janeiro, assim também se compreendendo que tenha moderado as suas críticas. No ofício de Palmela de 5 de janeiro de 1817 dizia-se mesmo que “o Correio Braziliense tem, há tempos a esta parte, cessado quase inteiramente os ataques que fazia contra o nosso ministério”. Assim se explicaria o que foi então apelidado de moleza e desatenção das autoridades do Brasil e de Portugal à entrada daqueles jornais.

Mas a atitude das autoridades portuguesas endurece a partir de 1817. É o ano da insurreição republicana de Pernambuco e da pretensa “conspiração do general Gomes Freire” contra o governo de Lisboa. O conde de Palmela, embaixador em Londres, visando o Correio e o Portuguez, alerta os governantes portugueses: “Os acontecimentos recentes de Lisboa e de Pernambuco bem demonstram os danos incalculáveis que a tolerância da circulação destes periódicos tem causado ao nosso país”. [ANTT (Arquivo Nacional, Torre do Tombo), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Legação de Portugal em Londres. Correspondência, caixa 49, ofício reservado n.? 28 (9/6/1817).] O governo de Lisboa afirma estar “persuadido de que concorreram muito para esta conspiração e para o levantamento de Pernambuco as máximas revolucionárias e incendiárias dos dois periódicos Correio Braziliense e O Portuguez que se estavam lendo aqui, sem embargo da proibição”. [ANTT, Ministério do Reino, Governadores do Reino. Registo de cartas ao príncipe regente, L. 318, p. 23, conta n.? 479, de 6/7/1817.] A facção absolutista apela à repressão contra estes “inimigos do Trono e do Altar”, como o truculento frade José Agostinho de Macedo vociferando que “o Correio tem causado mais perturbações na sociedade que os mesmos franceses causaram com as suas pérfidas invasões”. [O Espectador , vol. 2, p. 85.]

Ao mesmo tempo, vinham recrudescendo as críticas desses jornais à situação política em Portugal e no Brasil. Em abril de 1817 o Portuguez chegara a afirmar: “A nossa fraqueza e miséria (toda, toda) devemos nós à incapacidade dos nossos últimos reis, mormente aos da augusta Casa de Bragança”. [O Portuguez, vol. 6, p. 619.]

Perante este quadro, os governadores de Lisboa concordam com Palmela e lançam a portaria de 17 de junho que reitera a ordem de interdição do Correio, estendendo-a ao Portuguez (com o mesmo objectivo desta portaria, e inspirando-se nela ao ponto de serem textos quase iguais, foram depois publicados o aviso régio de 25 de junho e o edital de 6 de julho de 1818). As penas de transgressão eram pesadas: seis meses de prisão no mínimo com multas ou mesmo, após duas recidivas, deportação para Angola. Em finais de 1817 é notória a inquietação dos governadores. Apertam ainda mais as malhas em volta dos jornais de Londres. Agora, é o Investigador, que publicou alguns artigos que desagradaram em Lisboa tanto em matéria política [(…) esta época há de chegar com o tempo ou por vontade ou violência”, n.? 77 (nov. 1817), p. 85.] como religiosa. [Acusa o papa Leão X de ter mandado “vender por toda a cristandade a mercadoria romana das indulgências plenárias”, loc. sit., p. 101.] Gozando até aí de uma certa indulgência por ser subsidiado pela Corte no Rio, este jornal passa a ser sujeito a exame prévio antes de autorizada a circulação e alguns exemplares (como o referido n.? 77) são mesmo proibidos. Os governadores de Lisboa pedem então ao monarca que adopte medidas mais severas contra aqueles periódicos, que se tornavam especialmente perigosos devido à “propensão com que se acha geralmente o espírito público para abraçar princípios antimonárquicos”. [ANTT, Ministério do Reino, Governadores do Reino. Registo de cartas ao príncipe regente, L. 318, p. 147, conta de 23/12/1817.] Em 1819, o aviso régio de 14 de outubro mandou proibir o Campeão Portuguez (edital de 15 de novembro, interditando a circulação em Portugal) e, em 10 de fevereiro de 1820, uma provisão régia proibia e mandava apreender os exemplares do Correio, do Portuguez e do Campeão que circulassem em Portugal e no Brasil. Já é visível bastante desespero dos governadores de Lisboa neste duro conjunto de ameaças, processos, proibições. [Para o estudo desta questão apoiámo-nos em vasta documentação inédita existente na secção dos Reservados da BNL e na correspondência dos governadores do Reino para a Corte no Rio de Janeiro no ANTT, Ministério do Reino.]

Ao mesmo tempo, a partir de Londres, o conde de Palmela, sempre diligentemente antiliberal, congeminava múltiplas medidas contra os jornais. Começou o embaixador de Portugal por tentar que fossem perseguidos em Inglaterra quer por via judicial quer administrativa. Seria impensável num país onde os governantes e até a família real eram com frequência duramente atacados pela imprensa. Não conseguiu que as autoridades inglesas expulsassem do país João Bernardo da Rocha Loureiro. Maior eficácia pensava ter o embaixador quando, retomando a ideia de um seu antecessor, pediu às autoridades (em nota de 2 de julho de 1817) e conseguiu que estas se comprometessem a fazer diligências para que os capitães dos barcos ingleses não levassem para Lisboa encomendas do Correio Braziliense e do Portuguez. Porém, as autoridades inglesas não teriam levado a cabo esta medida com muita diligência. Ao mesmo tempo, os governadores do Reino tinham conseguido do encarregado de Negócios britânico em Lisboa a promessa de tentar que o agente na capital portuguesa dos navios britânicos não permitisse a distribuição no seu escritório de “gazetas ou panfletos periódicos” vindos de Inglaterra, impossibilitando assim a sua entrada pelas vias até aí utilizadas. Embora nem uma nem outra ordem tenham sido inteiramente respeitadas, os jornalistas reconhecem terem sido estes duros golpes na distribuição dos periódicos e na sua situação financeira, pois só através das incertas e limitadas vias clandestinas seria agora possível a saída de Inglaterra e a entrada em Portugal. Em Lisboa chegou-se mesmo a pensar, nessa altura, que os jornais portugueses de Londres tinham acabado. [O Espectador Portuguez, t. 2, p. 74.] A verdade é que, depois de algumas perturbações, os jornais puderam continuar a entrar em Portugal, usando variados artifícios. É reveladora a carta enviada pelo correspondente em Lisboa do Campeão a José Liberato:

Aqui chegou do Rio de Janeiro a ordem para proibir o Campeão. Este governo, já mais prudente, não quis tomar sobre seus ombros este pecado do estulto e velho Portugal; contentou-se em mandar pregar pelas esquinas de Lisboa a proibição, assim como aparecera em corpo e alma nas esquinas do Rio de Janeiro; e aconteceu exactamente que nesse dia desembarcasse são e salvo esse mesmo seu Campeão. Assim, ao passo que se estava executando este moderado auto-de-fé, atravessava ele triunfante as ruas de Lisboa, às costas de um galego que eu ia acompanhando em distância. Não tenha por isso susto e fique certo que se até agora o liam cem, de hoje em diante há de ser lido por duzentos ou mil. [J. Liberato, op. cit., pp. 202-03.]

Como se vê, tanto antes como até depois de 1817 foi oscilante a dureza repressiva com estes jornais por parte das autoridades de Lisboa. Quanto ao Correio, não atingindo tão directamente Portugal, mais preocupado com o governo do Rio, era tratado com algumas hesitações. O Portuguez foi o mais duramente castigado, por ser a sua crítica predominante dirigida aos governadores de Lisboa. Contra José Liberato a sanha era recente. O Investigador, que fora criado com o apoio das autoridades portuguesas para combater a influência do Correio, não sofreu perseguições de início. Mas as posições crescentemente críticas de José Liberato, seu redactor desde janeiro de 1814, vinham indispondo cada vez mais o conde de Palmela contra ele. Um incidente em julho de 1818 com a publicação de uma carta de um correspondente de Lisboa onde era denunciada a gestão escandalosa da Alfândega Grande precipitou a crise. Do Rio de Janeiro também se protestava contra o Investigador ou melhor contra José Liberato, pois este era o único redactor que se ocupava dos assuntos políticos. Foi então que o Rio retirou o apoio ao jornal, que terminou em fevereiro de 1819, contra a opinião de Palmela, que considerava indispensável ter em Londres um periódico que contrariasse as posições críticas dos outros para com os governantes. Não conseguindo convencer José Liberato, este irá lançar em 1o. de julho de 1819 o Campeão que se projectará menos no Brasil do que os dois outros, mas que pela sua independência face aos governadores de Lisboa, será objecto, como se viu, de duras perseguições.

Entretanto, não menos oscilantes eram as posições do governo do Rio para com estes jornais. Sabia-se que o Portuguez tinha assinatura da Biblioteca Pública do Rio de Janeiro e era voz corrente que o Correio recebia favores ocultos da Corte. Por isso, Palmela, querendo sempre jogar pelo seguro, esperava instruções. Nomeadamente em relação ao Correio, as perseguições não tiveram sempre a mesma intensidade: foram muito frequentes os entendimentos com Hipólito, mesmo de autoridades acreditadas por d. João. Pelo que julgamos poder concluir, as perseguições teriam sido mais desencadeadas por ministros que individualmente se sentiam atingidos pelas acutilantes críticas de Hipólito, como d. Rodrigo de Sousa Coutinho pela responsabilidade que tivera nas decisões que subalternizaram o Brasil perante a Inglaterra. Assim se deverá interpretar a proibição de circulação do Correio no Brasil, em 27 de março de 1809, pelas críticas que fazia aos governos português e inglês e os ataques a pessoas, sendo por isso considerada obra “cheia de calúnias contra a nação e o governo inglês”. Em setembro de 1811 a Corte do Rio, através daquele ministro, ordenava aos governadores de Lisboa a proibição da entrada do Correio. Quanto é possível aperceber, porém, tais medidas não teriam sido aplicadas com rigor.

No fim de 1817, o responsável pelos Negócios Estrangeiros no Rio, João Paulo Bezerra de Seixas, reclamou a extradição de João Bernardo da Rocha Loureiro com base no referido ataque que este desferira, em abril anterior, contra os últimos reis da Casa de Bragança. Não o conseguindo, forçou a que fosse interdita a expedição do Portuguez para o Brasil. Por provisão régia de 9 de julho de 1818 dirigida aos governadores do Brasil, d. João VI proibia a sua entrada e circulação, mandando apreender todos os exemplares. Nem uma palavra, porém, sobre o Correio. Em consequência, João Bernardo viu-se reduzido ao extremo da miséria e o seu Portuguez, como dissemos o jornal de Londres mais ferozmente perseguido em Portugal, só pôde sobreviver graças ao apoio de alguns amigos.

Difusão e influência

As crescentes preocupações dos governos de Lisboa e do Rio com estes jornais, ora tentando dominá-los com dinheiro ora perseguindo-os por muitas formas são o melhor indicativo que desde logo podemos ter sobre a sua difusão e influência no espírito público. Como diz Luz Soriano, “foi a imprensa periódica ou o jornalismo português em Londres quem, por aquele tempo, principiou a difundir abertamente entre nós, por todas as classes da nação, as ideias liberais”. [Simão José da Luz Soriano, História da guerra civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal, 2.? época, t. 2 (Lisboa: 1881), p. 455.] Através de informações esparsas, poderemos tentar reconstituir algo do universo de leitores destes jornais.

Em Londres, eram lidos largamente pelos portugueses e também por comerciantes ingleses que tinham correspondentes no Brasil e em Portugal a quem os enviavam. Os círculos políticos do Brasil e de Portugal liam-nos regularmente, mesmo nos níveis mais responsáveis. João Bernardo da Rocha Loureiro cita a afirmação de Manuel Fernandes Tomás, o “patriarca da Revolução Liberal”, de que d. João VI não podia alegar ignorância do que se passava em Portugal antes de 1820 porque lia o Portuguez. A venda, na quase totalidade, era feita por assinaturas em Portugal e no Brasil. Admitia-se, em geral, ser necessário um mínimo de 400 a 500 para que o jornal se pudesse manter e, eventualmente, dar algum lucro. O Correio, o Investigador, o Portuguez e o Campeão tiveram seguramente, pelo menos, esse mínimo de subscritores. Testemunhos dão conta da circulação do Correio e do Portuguez em várias partes do Brasil, chegando a ser vistos exemplares do primeiro, em 1817, na biblioteca da Bahia. [Luccock e Tonellare, apud C. Rizzini, op. cit., pp. 28-29.] Hipólito referiu “a infinidade de cartas que aqui chegam a Londres todos os dias dos diferentes portos do Brasil” [CB, 5: 123; 6: 301].

No reino de Portugal, apesar de todas as dificuldades levantadas pelas autoridades,
esses jornais eram lidos seguramente por alguns milhares de pessoas, se tivermos
em conta o número de leitores de cada exemplar, muitas vezes passado
clandestinamente debaixo da capa. Sabe-se que o Investigador tinha larga
procura em Portugal e que, na primeira fase, era mesmo elogiado pela gazeta
oficial. É de admitir que a grande maioria dos leitores destes jornais
se situasse em Lisboa e no Porto, onde chegavam os navios de Inglaterra. Apesar
da penetração no interior ser difícil, há alguns
sinais da presença dos jornais de Londres nas províncias, mesmo
as mais remotas. Uma das informações mais expressivas é
dada em ofícios do corregedor de Bragança (no extremo nordeste)
de 10 e 27 de maio e 3 de junho de 1817: “Alguns indivíduos da comarca
procuram e lêem com ânsia os periódicos intitulados O
Portuguez
e outros satíricos impressos em Londres e na América,
enviando ao seu autor quantas notícias absurdas, insultantes e escandalosas
podem imaginar para desacreditar as mesmas autoridades; mas que por mais diligências
que tenha feito para alcançar algum dos ditos folhetos e individuar os
sócios de tais infames novelas lhe não tem sido possível”.
Assim, um dos índices mais significativos de que podemos dispor para
avaliar a expansão geográfica destes jornais é a correspondência
que recebiam e os locais sobre que publicavam notícias. Em geral em número
muito elevado e de muito diferentes pontos, estas cartas, opiniões, artigos,
memórias, simples notícias, normalmente publicadas com ocultação
dos nomes dos autores, constituem também um acervo do maior interesse
para o conhecimento da opinião liberal “clandestina” antes da Revolução
de 1820. Rocha Loureiro conta que ? como os outros jornalistas em Londres ?
tinha agentes ou correspondentes em Portugal com quem comunicava por cartas
cifradas, utilizando para isso o livro das Ordenações do Reino;
um destes correspondentes, o advogado Manuel Luís Nogueira, do Porto,
acabaria por ser enforcado por d. Miguel. [João Bernardo da Rocha
Loureiro, Apologia do cronista do Reino João Bernardo da Rocha (Coimbra:
1838), p. 24.
] Os leitores destes jornais situar-se-iam preferencialmente
nas profissões liberais (médicos e advogados, sobretudo), comerciantes,
estudantes da Universidade de Coimbra. Os exemplares corriam de mão em
mão, só assim se conseguindo superar as dificuldades de aquisição
devido ao alto preço, para o que contribuía, além dos pesados
custos de produção, o agravamento com os portes de correio sempre
muito elevados (por exemplo, um número do Correio pagava de Londres
ao Brasil 110 réis).

Redes de interesses e dependências

Para melhor compreender as motivações dos jornais e as verdadeiras razões que por vezes se ocultam sob as teses defendidas, é indispensável conhecer, antes de tudo, os seus percursos e compromissos, as suas ligações a redes de interesses, as suas sujeições ou independência, o que normalmente não é fácil descortinar. Quatro forças, com frequência divergentes, exerceram influência relevante nesta imprensa em língua portuguesa de Londres: os negociantes portugueses (sobretudo através do seu clube em Londres), a Corte e governo do Rio, os governadores de Lisboa e a Maçonaria.

Saiba-se, em primeiro lugar, que conseguir manter um jornal em Londres (onde os custos de produção eram superiores aos dos jornais de Paris) não era obra simples. É evidente que o lançamento de um periódico, mesmo quando dispondo de meios humanos mínimos, exigia recursos que não estavam ao alcance dos emigrados políticos, fugidos normalmente em condições precárias.

José Liberato estimou em 40 libras as despesas mensais só com papel e impressão de cada edição do Investigador de 64 páginas. [J. Liberato, op. cit., p. 159.] Quanto ao Correio Braziliense, sabe-se que cada tiragem de 500 exemplares com 128 páginas custaria 51 libras (a 60 pence por mil réis teríamos 204 mil réis em 1808) e seriam necessários 300 subscritores apenas para a manutenção material do periódico; somando 150 libras de alugueres e as despesas com o correio, empregados e despesas gerais, e considerando que o redactor, para viver decentemente em Londres, precisaria então de 450 libras anuais, conclui-se que Hipólito necessitaria de 1212 libras, ou seja, o valor de mais de 600 assinaturas, número excessivamente elevado. Era, assim, muito difícil para qualquer destes jornais conseguir manter-se sem apoio material exterior: quer sob a forma de pagamento de algumas centenas de subscrições (fossem os exemplares depois vendidos ou não) quer da concessão directa de um subsídio.

Quanto a Hipólito da Costa, os sólidos estudos que lhe são dedicados esclarecem tão longe quanto possível. [Ver, sobretudo, os trabalhos de Mecenas Dourado e Carlos Rizzini.] As suas conhecidas relações com a influente Maçonaria inglesa deram-lhe condições para se mover mais facilmente no território e nos meios políticos, onde gozava de algumas boas protecções. A respeito das suas ligações ao Rio de Janeiro permanecem ainda, porém, muitas sombras. As ácidas opiniões sobre ele produzidas por José Liberato não poderão deixar de relativizar-se, tendo em conta os confrontos políticos que mantiveram. [De Hipólito disse José Liberato que não tinha “probidade alguma política e indiferentemente vendia sua pena a quem melhor lhe pagava” (Memórias da vida, p. 194) e estava a soldo do governo do Rio de Janeiro (op. cit., p. 198).] Certo parece ter sido que o governo do Rio, por d. Rodrigo de Sousa Coutinho, lhe fez a oferta de compra secreta de 500 assinaturas trimestrais no valor de 325 libras, com o compromisso de o jornal, em contrapartida, publicar “tudo o que pudesse ser útil ao aumento da agricultura, indústria e comércio do Reino e do Brasil, deixando-se de tocar em objectos que ordinariamente só produzem sedições e nunca efeito algum útil aos homens”. [C. Rizzini, op. cit., pp. 32-36.] Em tais “objectos” estavam compreendidos a apologia dos pedreiros-livres e de certos modelos constitucionais e os ataques pessoais em que Sousa Coutinho se via particularmente atingido. Presume-se que não se tenha consumado o acordo, em que era intermediário o conde de Funchal, embaixador em Londres. Certamente por isso as relações entre este e Hipólito deterioraram-se em 1810. Que apoios, então, teria recebido o redactor do Correio, sabendo-se que sem eles o jornal não se teria mantido muito tempo? Num certo momento declara que para sobreviver precisava de encontrar outros meios de subsistência, visto não serem suficientes os “escassos lucros da produção literária deste jornal” para conseguir manter-se com um certo estatuto pessoal [CB, 23: 174]. Esses outros meios de subsistência estariam ligados a actividades comerciais relacionadas com a orientação do jornal. Seriam os tais “recursos invisíveis”, de que fala, que lhe permitiram aguentar o jornal, provindos dos negociantes portugueses. É evidente que numa certa fase ele aberta e repetidamente os defende, embora depois a embaixada de Portugal tenha conseguido dividi-los, esfriando depois as suas relações, como o próprio Hipólito reconhece. Isto é, sendo seguro que o jornal não poderia viver muito tempo sem apoios, parece certo que os suportes teriam vindo dos comerciantes portugueses, numa fase, e noutra fase do governo e comerciantes ingleses, embora os interesses entre os primeiros e os segundos não fossem coincidentes. Do que dissemos atrás parece não restarem dúvidas, pois, haver períodos em que o Correio Braziliense teria sido atacado e perseguido pelos governos do Rio e de Lisboa, outros em que teria beneficiado de protecção da Corte.

Quanto ao Investigador, como se depreende do que dissemos atrás, não foi menos sinuoso o seu percurso. Começou por ser docilmente “ministerial”, a fim de contrariar a influência do Correio, sobretudo nos ataques deste ao governo do Brasil. Para tal, recebia a subvenção de 14 mil cruzados da Corte no Rio, além de pagas as despesas com o papel e a tipografia. Os governantes do Rio enviam mesmo ordens para diversos governadores do Brasil no sentido de promoverem a leitura do Investigador, recebido sob os auspícios do príncipe regente. Era apoiado, também, pelos negociantes portugueses em Londres. A empresa era sem dúvida lucrativa, pois quando abandonou o jornal José Liberato retirou mais de mil libras de proventos. A sua saída do Investigador, que provocou logo a seguir o encerramento do jornal, resultou da indisposição crescente do embaixador Palmela perante atitudes cada vez mais independentes de José Liberato, de que resultou serem-lhe feitas imposições inaceitáveis. Mas reconhecia o jornalista que as suas posições independentes haviam provocado um aumento de leitores, de onde concluiu que o jornal dependia menos do governo do que dos seus assinantes e estes aumentavam na medida em que se mantivesse distante do poder. É depois disso que José Liberato funda o Campeão, servindo-se para isso de parte do lucro que tivera com o Investigador. Afirma-se independente dos governantes, conseguindo um número de assinantes que lhe garante estabilidade, a par de apoios que recebe também dos comerciantes portugueses em Londres.

Mas a defesa dos interesses destes será feita, principalmente, pelos jornais de João Bernardo da Rocha Loureiro. Tudo leva a crer que a partida de Loureiro para Inglaterra, onde chega a 3 de abril de 1813, após a proibição em Portugal do seu Correio da Península, tivesse sido organizada por membros do Clube dos Negociantes Portugueses de Londres que o chamaram para lhe confiar a redacção de um jornal financiado por eles e destinado a defender os seus interesses. Loureiro dá mesmo a entender que a formação desse clube e o nascimento em Londres de uma imprensa portuguesa livre eram factos relacionados. [Georges Boisvert, Un pionnier de la propagande libérale au Portugal: João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853). Notes biographiques (Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1974), p. 48.] O que passou a tornar audíveis os protestos e reclamações dos negociantes portugueses ? diz ? foi eles terem tido meios de os tornar públicos, assim tendo nascido “a primeira aurora do espírito público na classe dos comerciantes”. [O Portuguez, vol. 12, p. 105.] Não se limitando a conceder apoios financeiros a jornalistas, este clube apoiava-os na expedição dos jornais, por isso não sendo visto com simpatia pela embaixada portuguesa, que via nele um factor de perturbação nas relações com os comerciantes ingleses. O assunto era de grande importância. Como mostrámos de início, negociantes e armadores portugueses continuavam a controlar a partir de Londres bens muito consideráveis. Por um lado, queriam ver-se ressarcidos das retaliações sofridas em consequ&eecirc;ncia do apoio (limitado) do governo de Lisboa ao Bloco Continental entre 20 de outubro de 1807, data da adesão formal, e o 29 de novembro seguinte, data da partida da Corte para o Brasil e, portanto, do regresso à aliança tradicional com a Grã-Bretanha. Com efeito, nesse período os negociantes portugueses foram vítimas de represálias exercidas pelos ingleses, que lhes capturaram navios e mercadorias, causando-lhes prejuízos avaliados entre 35 a 40 milhões de cruzados. Daqui nasceu um contencioso com muito longa e difícil solução. Por outro lado, a aliança luso-britânica contra os franceses reabriu as possibilidades de reforçarem as suas posições comerciais. Foi após o desvantajoso tratado de comércio assinado pela Corte do Rio com a Grã-Bretanha em 1810 que os negociantes portugueses decidiram constituir esse clube para “melhor defender os seus interesses e fazer valer os seus direitos tanto junto das autoridades britânicas como do seu próprio governo”. Ao mesmo tempo, reconheciam ser indispensável a mudança das instituições em Portugal. Assim, os interesses e as queixas dos comerciantes portugueses em Londres eram de tal monta que eles procuraram quem os defendesse na imprensa. Era quase geral, nesse sentido, a atitude dos jornalistas de língua portuguesa em Londres, constituindo um marco fundamental no processo de formação e desenvolvimento da imprensa da primeira emigração. [Assim o confirma Rocha Loureiro no Espelho Político e Moral, 4/5/1813.]

O primeiro dos jornais que Rocha Loureiro funda com o apoio do clube é O Espelho Político e Moral (4 de maio de 1813). A ligação deste jornal ao clube é evidente em várias passagens elogiosas, como quando diz ser “uma associação de negociantes portugueses que reúnem as suas forças para o serviço do comércio e para o bem geral da sua pátria”. [Espelho, n.? 20, 10/9/1813, pp. 153-54.] O então embaixador de Portugal em Londres, conde do Funchal, escrevia em 2 de junho de 1813 estar informado de que Rocha Loureiro não tinha falta de meios e que tal se devia ao apoio de fortes cabedais. Mas os custos do Espelho eram demasiado elevados por ser semanal (encerra em 1o. de fevereiro de 1814). Funda depois, com os mesmos apoios, um mensal, o célebre Portuguez, que irá ter papel muito importante em Portugal na difusão das ideias liberais. A empresa deste foi tão lucrativa que Rocha Loureiro chegou a dispor de cerca de 12 mil cruzados por ano. Vitoriosa a Revolução Liberal, Rocha Loureiro deixa a Inglaterra, não sem antes exprimir claramente os seus agradecimentos no último número do Portuguez aos que o haviam ajudado, “muito especialmente os negociantes portugueses de Londres, bem como dois ou três outros no Brasil”, que, por vezes à sua própria custa, asseguraram a difusão do jornal. [O Portuguez, vol. 12, p. 444.]

Ainda um outro jornal fundado em Londres com o apoio dos comerciantes, o Microscopio de Verdades (1814-15), teve menor projecção, mas notabilizou-se sobretudo, na linha dos interesses daqueles, pelos violentos ataques que lançou contra o tratado de comércio de 1810.

O último jornal em língua portuguesa fundado em Londres antes
da Revolução Liberal foi O Padre Amaro ou Sovela Politica,
Historica e Literaria
(de janeiro de 1820 a 1826). O seu redactor, o padre
Joaquim Ferreira de Freitas, tinha mau estilo e pior moral, pondo a sua pena
em leilão a quem mais lhe desse. Serviu, assim, vários amos com
a mesma aparente convicção. Após a morte de Hipólito,
tendo o encarregado de Negócios do Brasil em Londres, Caldeira Brant,
defendido junto do governo do Rio ser conveniente que alguém tomasse
a defesa desse reino, foi disso encarregado Ferreira de Freitas, mediante o
pagamento de 50 libras mensais. [C. Rizzini, op. cit., pp. 43-44.] Já
antes este jornal se prestara a defender o marechal Beresford a troco de “muito
bom dinheiro”. [G. Boisvert, op. cit., p. 48.]

Temáticas e orientações

A insuficiente consistência ideológica que os jornalistas de Londres em geral apresentaram, agravada em não poucos casos, como se viu, pelos compromissos com quem os subvencionava, torna difícil determinar com precisão as coordenadas dos seus ideários. No entanto, algumas linhas poderemos apontar como dominantes.

Em primeiro lugar, a batalha política que se trava no Reino de Portugal. Não recorrendo apenas a meios repressivos, procura-se aqui contrariar a influência dos jornais de Londres através de escritos de diversas naturezas. Apareceram panfletos e folhetos ocasionais e rápidos, publicações avulsas, da iniciativa de fervorosos absolutistas, usando em geral linguagem desbragada, que pretendiam não só levantar a opinião pública contra “os ímpios pedreiros-livres não tementes ao Trono e ao Altar” mas igualmente incitar as autoridades a serem mais severas para com esses jornais. Também da Impressão Régia de Lisboa saíram quatro cadernos para combater Hipólito, da autoria do desembargador José Joaquim de Almeida e Araújo Correia de Lacerda. O autor que mais se destacou nesta cruzada foi, como vimos, o furibundo frade José Agostinho de Macedo. Mas outras publicações, mesmo de natureza periódica, foram então lançadas com o mesmo objectivo. Já em 1809 o juiz do crime do Porto alertava para a perniciosa influência do Correio Braziliense “por conter não só reflexões e discursos cheios de erros de facto e doutrina, mas também princípios e máximas subversivas da ordem social e ofensivas das regras estabelecidas para espalhar a insurreição e introduzir a insubordinação e que por isso cumpriria refutar-se e suprimir-se”. [ANTT, Ministério do Reino, Governadores do Reino. Registo de cartas ao príncipe regente, L. 314, p. 46.] Pela sua reconhecida lealdade ao Trono e capacidade intelectual foi o magistrado encarregado da refutação, enquanto os governadores de Lisboa aguardavam a ordem de proibição do jornal que circulava livremente no Reino. Para combater o Correio foram então lançadas quatro publicações periódicas: Abelha do Meio-Dia (Lisboa, 1809), Reflexões sobre o Correio Braziliense (Lisboa, 1809), Exame dos Artigos Históricos e Políticos Que Se Contêm na Collecção Periódica Intitulada Correio Braziliense (Lisboa, 1810) e, em Londres, como dissemos, O Investigador Portuguez em Inglaterra (1811). A posição oficial sobre o Correio está expressivamente documentada na censura que faz o padre Lucas Tavares ao Exame dos Artigos Históricos e Políticos, em 19 de julho de 1810, declarando ser esta obra em tudo louvável, porque “trata de prevenir os males da pátria, unir os ânimos, conciliar a paz e destruir as falsas ideias que tendem a desorganizar o corpo político” contra um “homem não só mau mas perverso”, cujas ideias pretendem “acender a discórdia entre o nosso governo e o povo”. [ANTT, Real Mesa Censória. Requerimentos para impressão e censura, maço de censores, ?Lucas Tavares?.]

Quanto aos jornais de Londres, a mais saliente linha comum entre eles é a crítica às instituições políticas e aos governantes de Portugal, variando porém de intensidade e conforme os jornais, ao longo destes anos. Como se viu, o Investigador, pago pelo governo português, foi cordato numa primeira fase, ao ponto de ser elogiado pela gazeta oficial de Lisboa. Ainda assim se manteve mesmo depois da entrada de José Liberato para redactor político, em janeiro de 1814. Só em 1818, como vimos, as posições do jornalista começaram a mostrar-se impertinentes. O Campeão, que depois redige, passa a usar de maior dureza crítica, embora os memoriais que dirige ao rei, aos ministros e ao povo português (quatro primeiros números de 1819) sejam relativamente moderados. Quanto ao Correio, como dissemos, sofreu a princípio mais duramente o castigo das autoridades portuguesas. Mas foi o Portuguez, desde 1814, que manteve permanentemente uma mais forte e fundamentada oposição à situação política em Portugal. Célebres ficaram os “memoriais” que Loureiro dirigiu a d. João VI, verdadeiramente demolidores sobre a ruína a que Portugal estava lançado pela incompetência dos ministros e a inércia do monarca. Um facto histórico interessante para medir o estado da opinião nos círculos políticos portugueses em Portugal, no Brasil e em Londres foi a verificação que alguns jornalistas fizeram de que os seus leitores aumentavam tanto mais quanto mais duras fossem as suas críticas às instituições e aos governantes do regime absoluto. O que os levou a uma situação curiosa, que se traduziu numa verdadeira viragem nas suas relações com os poderes políticos: considerar que lhes era mais vantajoso em termos materiais depender dos leitores do que dos subsídios dos governantes. Como diz José Liberato em carta ao embaixador conde de Palmela, em 9 de novembro de 1816:

Querer que os redactores dependam, como até agora, dos subscritores e entrem apesar disso a escrever em um sentido em tudo oposto às opiniões deles e só conforme com as do governo, é exigir, certamente, impossíveis. Não se pode ao mesmo tempo servir a dois senhores e com especialidade quando eles têm opiniões tão diversas. Em prova do que tenho exposto, direi a v. ex.? que o Investigador estava já em tal descrédito e que o número dos seus subscritores tinha tão consideravelmente diminuído que se eu lhe não tivesse dado uma nova forma no princípio deste ano de 1816 e não o houvesse, por assim dizer, ressuscitado e levantado da insignificância e desprezo em que estava, apenas hoje contaria com um cento de subscritores. [J. Liberato, op. cit., pp. 158-64.]

Também aqui o momento da viragem, bem nítido, é o ano de 1817, em que todos se unem em violento protesto contra a execução dos considerados implicados na pretensa conspiração de Gomes Freire.

A questão comercial é outra que merece também relativo consenso, o que se compreende em vista dos favores que em geral os jornais recebiam do clube dos negociantes portugueses em Londres.

Quanto a Hipólito, desenvolve campanha contra os monopólios, denunciando vigorosamente os monopolistas portugueses e valorizando as vantagens do livre-mercado para os negociantes, os consumidores e o próprio Erário. Entre outros, dá como exemplo o comércio do sal, que fez reverter para o Erário mais rendimentos desde que foi liberalizado. Como defensor da liberdade do comércio, chega mesmo a assumir-se como órgão dos “negociantes da Baía”. A princípio, Hipólito procurara defender a ligação comercial privilegiada entre Portugal e Brasil, atacando por isso a abertura dos portos do Brasil em janeiro de 1808. Faz-se eco das queixas dos comerciantes portugueses em Londres, muito prejudicados, afirmando: “Os primeiros que têm que sentir este dano serão os navios portugueses que agora se acham em Londres, porque a maior parte deles terá que voltar em lastro para o Brasil” [CB, 1: 77-78]. Por isso, também, ataca o tratado de comércio de 1810 que concedera vantagens leoninas a Inglaterra, entre outras disposições lesivas para Portugal e Brasil impondo restrições à entrada de produtos brasileiros em Inglaterra e nas colónias inglesas que fossem concorrentes com as produções destas. Verbera violentamente, por isso, os que no Rio o defenderam, em primeiro lugar o anglófilo d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Consumava-se assim a ruptura entre o Correio e o governo do Brasil. Oscila entre a defesa da manutenção de um comércio colonial integrado no espaço metrópole-colónia, considerado como “comércio interno”, e como tal não devendo ser permitido a nações estrangeiras [CB, 15: 53-54; 16: 447], e uma proposta de reorganização ponderada das pautas alfandegárias [CB, 16: 574-75]. E em outras passagens, como quando do rescaldo da revolta pernambucana de 1817, afirma a identidade dos interesses comerciais com a manutenção da união dos dois reinos [CB, 19: 206-08]. Esta defesa dos interesses dos comerciantes portugueses de Lisboa, Porto e Londres é comum, em traços gerais, à dos outros jornais de Londres. Só divergirão quando o Correio os atacar fortemente, na sequência da decisão das Cortes liberais de enviarem tropas para dominar os independentistas: “Os negociantes portugueses, esperando ainda recobrar seu monopólio do comércio do Brasil que lhes tornará somente com seu rei d. Sebastião” [CB, 28: 709-10].

Quanto à problemática constitucional, uma das dominantes destes jornais, há posições próximas na defesa de uma Monarquia moderada, na base da “excelente Constituição antiga de Portugal” que assegurasse Cortes representativas da nação participando nas grandes decisões de interesse público. Fórmula imprecisa, que permitiria posições algo vagueantes sobre as propostas políticas para a construção da nova ordem, apenas com a consistente linha comum do reformismo constitucionalista, mais ou menos inspirada no modelo inglês. Podem ser reconhecidos, aqui, importantes pontos de divergência. Um diz respeito a como alcançar o regime constitucional. Defende o Portuguez mais claramente uma via revolucionária, a convocação de Cortes, a soberania do povo, menos identificada, pois, com o processo reformista inglês. Também o Correio não se ajusta inteiramente ao modelo inglês: partindo de um tradicionalismo constitucional, termina apresentando para o Brasil um plano de Constituição de certo modo inspirado no inglês mas, sobretudo, no exemplo americano. Assim, Hipólito e Loureiro acabam por opor-se à proposta tradicionalista de José Liberato que defende a convocação das Cortes à maneira antiga. Entre este e Hipólito, sobretudo, desencadeiam-se algumas polémicas. Em setembro de 1820 Hipólito ataca José Liberato por ter publicado no Investigador a cronologia das Cortes, ao que este respondeu com um forte artigo no Campeão intitulado “Insinceridades do Correio Braziliense”.

O confronto entre ambos atingiu mesmo duros aspectos pessoais. Diz José Liberato: “Hipólito, vaidoso e ingrato, foi o único português que em Londres se declarou por meu inimigo”. Mais adiante, acusa-o de pensar que ele alinharia na sua política de “fazer a guerra e desacreditar o conde de Funchal a quem se procuravam pretextos para lhe tirar a embaixada e para isso estava vendido ao partido do conde da Barca, António de Araújo”. Acrescenta José Liberato que, por não ter querido alinhar, Hipólito “declarou-me uma guerra torpe e baixa, à qual poucas vezes respondi. Afinal, como ainda direi, fizemos as pazes”. [J. Liberato, op. cit., pp. 138-39.]

A divergência programática de fundo era que, então, nem Loureiro nem Hipólito já defendiam as Cortes velhas. Depois da Revolução de 1820, José Liberato virá a justificar-se que assim fizera porque era a única maneira de não “passar pelo labéu de revolucionário e porque não queria assustar o governo que me podia logo desde o princípio impedir a minha marcha; e porque enfim sabia muito bem que as Cortes velhas traziam no ventre as Cortes novas. Aparecendo as primeiras, não havia de tardar muito que não aparecessem as segundas”. [J. Liberato, op. cit., p. 202.]

Até à Revolução de 1820 são visíveis, sob alguns aspectos importantes, as convergências e até cumplicidades entre Hipólito e Loureiro. Aliás, ainda quando redactores do Correio da Península (1809-10), em Lisboa, Rocha Loureiro e Pato Moniz haviam manifestado acordo com as posições de Hipólito. Todos eles “patriotas”, isto é antifranceses e pró-ingleses, defendendo acima de tudo os interesses nacionais, repudiando igualmente o despotismo, desconfiando das massas populares (eventuais motoras da “fatal oclocracia”), pois só as classes possidentes e instruídas seriam capazes de participar nas decisões de interesse público, defendendo uma Monarquia moderada, na base da “excelente Constituição antiga de Portugal”. Quando Loureiro emigra para Inglaterra, após a proibição do seu Correio da Península, em condições físicas e pecuniárias dificílimas, encontra em Londres o apoio de Hipólito, que desde logo cauciona a sua permanência na capital, sem necessidade de pedir autorização à embaixada portuguesa. Houve aqui, claramente, conivências maçónicas. Mesmo admitindo que Loureiro não fosse membro da maçonaria, era-o o seu amigo Pato Moniz, que por isso o teria recomendado a Hipólito. Este acolheu-o, assim, como um amigo. E quando em 4 de maio de 1813 Loureiro inicia em Londres a publicação do Espelho Politico e Moral é com o patrocínio de Hipólito, que no seu Correio Braziliense anunciara pouco antes o aparecimento do novo jornal. A embaixada de Portugal, aliás, viu o novo jornal como um reforço do Correio, sobre o qual já havia fortes inquietações. Algum tempo depois, em ofício reservado de 5 de janeiro de 1817, confidencia o embaixador conde de Palmela: “O Portuguez, começado e continuado debaixo da influência e protecção do redactor do Braziliense, despica a este com usura da sua recente moderação”. [ANTT, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Caixa 49, ofício reservado n.? 12.] Esclareça-se que esta convergência entre Hipólito e Loureiro era possível, para além das cumplicidades maçónicas, pelo facto de os jornais não serem concorrentes, incidindo sobre áreas de público diferentes: o Correio mais para o Brasil, o Espelho e o Portuguez mais para Portugal.

As maiores divergências começarão a desenhar-se em torno da questão união/desunião dos dois reinos. Havia desacordo crescente sobre a importância relativa de Portugal e Brasil.

Hipólito, em várias passagens, como quando do rescaldo da revolta pernambucana de 1817, que reprovou, afirmava, como dissemos, a identidade dos interesses comerciais com a manutenção da união dos dois reinos. E, confiante no futuro do Brasil, defendia que no Reino Unido o Brasil era a parte mais importante, devendo a Corte aí permanecer.

Ao contrário, Loureiro, apontando que o Brasil era um reino de apenas “dois dias de idade”, não deveria ser dominante sobre um Reino, como Portugal, com tão antigo e glorioso passado, queixando-se da posição subalterna em que Portugal se encontrava perante o Brasil após a ida da Corte para o Rio de Janeiro.

Quanto a José Liberato, durante alguns anos aceitou que a Corte deveria permanecer no Brasil. Mas em 1818 alterou a sua posição e, tal como Loureiro, passou a invocar razões históricas, culturais, entre outras para defender que deveria ser Lisboa a capital do Reino Unido, criticando também duramente a sua sujeição perante o Rio. Descreve os sofrimentos e descontentamento do povo português causados pela prolongada ausência do rei e pelos abusos e incompetência dos governadores de Lisboa. Critica severamente a administração do Reino Unido que ele caracteriza como uma “aparatosa invenção ministerial” por não ser verdadeiramente um reino unido. “Não há igualdade de tratamento dos dois países; os ministros no Brasil vão despovoando Portugal e despejando os seus cofres e parece que a máxima desses ministros é que o Brasil deve receber tudo e que Portugal deve pagar tudo. Por causa das más leis feitas por ministros incompetentes, como no tratado de 1810, parece que o Brasil está mais unido com Inglaterra que com Portugal”. [O Campeão Portuguez, I, agosto de 1819, pp. 75-87.]

Em comum tinham apenas a ideia ? partilhada pelas opiniões políticas dos dois lados do Atlântico ? de que o “Reino Unido” era uma fórmula com um conteúdo cada vez mais frágil.

A alteração radical na atitude de Hipólito dá-se com a Revolução de 1820, que também merece a sua aprovação. Mas a posição das Cortes vintistas para com o Brasil fazem-no passar a defender a irreversível separação dos dois reinos. Consumava-se a ruptura.

(*) Professor catedrático de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autor de, entre outras obras, História da imprensa periódica portuguesa (2? ed. Lisboa: 1989); Da liberdade mitificada à liberdade subvertida. Uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828 (Lisboa: 1993); Movimentos populares agrários em Portugal 1751-1825 (2 vols. Lisboa: 1994); História do governo civil de Lisboa (2 vols. Lisboa: 2002). No Brasil, publicou Historiografia luso-brasileira contemporânea (de colaboração com o prof. José Jobson de Andrade Arruda. Bauru: Edusc, 1999); Historiografia portuguesa, hoje (São Paulo: Hucitec, 1999); História de Portugal (dir. e colab. 2? São Paulo/Bauru: Unesp/Edusc, 2001).