ACM & MINISTÉRIO PÚBLICO
Ana Lúcia Amaral (*)
A "visita" do senador Antonio Carlos Magalhães ao Ministério Público Federal, em Brasília, é um daqueles tantos episódios da vida nacional que, por trazerem à tona fatos muito graves sobre como se faz política no país ? no menor e pior sentido ?, tendem a ser desfigurados, transformando vítimas em agressores, culpados em inocentes.
A ida espontânea de qualquer cidadão ao Ministério Público, seja federal ou o estadual, para levar notícias de fatos que podem configurar prática de delitos é o exercício de cidadania responsável. A possibilidade de ser mantido em sigilo, ou no anonimato, a identidade de quem faz eventuais denúncias decorre da natureza dos fatos, e da possibilidde de quem dá a notícia vir a sofrer qualquer perigo de ameça ou dano. Se os fatos noticiados puderem expor, indevidamente, a intimidade de alguém denunciante, ou não, a lei determina a preservação desse bem. O que não está coberto pelo sigilo é o fato de alguém, ao denunciar prática de crimes por outrem, vir a confessar outros tantos praticados por ele próprio. Vale dizer, o órgão do Ministério Público que recebe as denúncias não pode deixar de buscar a responsabilidade civil e penal do denunciante, também infrator da lei, e dirigir a persecussão penal somente contra aquele que foi acusado, ao fundamento que o denunciante teria pedido sigilo. Órgão do Ministério Público não pode ser confundido com padre confessor.
A decisão pela manutenção do sigilo de informações, em outra hipótese, pode se dar se a revelação das informações recebidas pudere levar o autor dos fatos delituosos a destruir provas ou evadir-se, para dificultar a ação penal.
Entretanto, se alguém se dirige ao Ministério Público e narra situações que se referem a investigações já em curso, e que em nada podem afetar essas mesmas investigações, não há razão para manter sigilo. E se as situações que foram reveladas o são em função do cargo público do declarante, que lhe propicia acesso a certas informações, mormente se tudo se referir à coisa pública, não está presente a necessidade de manutenção de sigilo sobre o que foi noticiado/revelado.
No caso da ida do senador Antonio Carlos Magalhães ao MPF-DF, Sua Excelência não contou nada que já não se comentasse pelo Planalto, conforme observa Fernando Rodrigues na sua coluna na Folha de S.Paulo (26/2/01). Do que se apurou relativamente ao caso do TRT/SP, via CPI do Judiciário e mesmo nas investigações e ações judiciais a cargo do Ministério Público Federal, que levaram à cassação um senador da República e a prisão do juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, há fatos ainda não esclarecidos ligados ao ex-secretário do presidente da República, Eduardo Jorge Caldas Pereira ? situação esta para a qual colaborou o próprio senador ACM, quando do depoimento do sr. Eduardo Jorge perante comissão do Congresso Nacional. Vir Sua Excelência ao Ministério Público Federal e dizer que seria conveniente a quebra do sigilo telefônico no período no qual o ex-secretário esteve na função, não representa nenhuma informação inédita. Se insinua (como o noticiado com base em gravações da referida conversa com procuradores da República) que chegar-se-ia à presidência da República, é algo que passa pela cabeça de qualquer um, conheça ou não o presidente da República, aprecie ou não o seu governo.
Há muito que voga a sensação/idéia de que políticos não são anjos. Se senador do PFL da Bahia faz tal insinuação, a responsabilidade é dele, por força de seu próprio cargo. Não se esqueça que ACM compôs a base governista até então.
Truque da desqualificação
Teria também declarado o senador ACM que sabia como votou cada senador no episódio que acabou por cassar o mandato do ex-senador Luiz Estevão. Se violou ou não o placar de votação é assunto para investigação ? do ponto de vista penal ? de iniciativa do Procurador Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal, mediante autorização do Senado da República. Também perante aquela casa parlamentar procedimentos poderiam ser instaurados e, conforme o resultado, até motivar a cassação do ex-presidente do Congresso Nacional.
Observe-se que não basta tão-somente a gravação da conversa para se imputar crime ao ex-presidente do Senado. Ainda que não pudesse valer como prova, a gravação ensejaria a investigação de um indício. Exames periciais podem esclarecer mais do que qualquer gravação. Se confirmado que a senadora Heloísa Helena não votou pela cassação, poderia estar confirmada a violação do sigilo. E que desgaste para a senadora, hein?! E se os senadores abrissem seus votos? Bom , já estamos querendo muito!
Quanto a fatos delituosos que teriam sido cometidos pelo atual presidente do Senado, Jader Barbalho, eventuais procedimentos investigatórios também deveriam se dar via Procurador Geral da República e STF, e pelo próprio Senado.
Lendo tudo isso, estará o leitor a indagar: aonde a subscritora quer chegar?
Quero chegar ao afirmado no início: um episódio no qual se desvia a atenção do verdadeiro foco. Como disse Luis Fernando Verissimo, em sua coluna no Estado de S.Paulo (2/3/01), sob o título "Em Bizâncio":
Enquanto as denúncias, os indícios, o que "em Brasília todo o mundo sabe" não são investigados, o que torna este governo um campeão da corrupção presumida, e as CPIs que ele barra versões reincidentes do bloco carnavalesco "Concentra, mas não sai", no Brasil da desconversa quem está nas manchetes é o procurador Luiz Francisco. Em Bizâncio é assim: dão mais atenção ao procurador do que ao procurado, ao gravador do que ao gravado, ao acusador do que à acusação. E ninguém se surpreenda se, da metralhadora do ACM, na próxima vez, saírem cocadas.
E coincidentemente o escrito de Veríssimo foi publicado na mesma edição do cujo editorial sob o título "A confissão do Inquisidor", assim está escrito:
Depois de negar a autoria da gravação e de sua divulgação e de, como sempre, prometer "novas revelações", o nosso Torquemada ? aparentemente cobrado pelos seus próprios colegas Guilherme Shelb e Eliana Torellhy, que o acompanharam na escuta da proposta (indecente) do senador baiano (do qual escondeu, traiçoeiramente, a decisão de gravar e de divulgar o que diria) ? resolveu acabar com o suspense e confessar tanto a gravação clandestina quanto o vazamento para a revista IstoÉ. Daí por diante, tem se enredado em contradições tão grandes, que não enganaria por um minuto o menos perspicaz de seus colegas sherlocks, se eles estivessem mesmo dispostos a tirar tudo isso a limpo: se usou o "grampo" proibido para se precaver, como disse, de eventuais "mentiras" que o depoente poderia assacar, mais adiante, contra ele, por que a destruiu depois, criando exatamente a situação que alega que queria evitar, de sobrar em cena apenas a palavra de ACM contra a sua?
Quanto à cena, entre patética e cômica, do "pisoteamento da fita até quebrar o invólucro de plástico e apertando com as mãos o seu conteúdo, jogado depois no chão para ser removido (por quem?) para o lixo", se é verdadeira, é mais uma confirmação da psicopatia exibida nas aparições na TV.
O jornalão sabidamente alinhado/cooptado com/pelo Executivo federal desenvolve, há tempos, campanha contra o Ministério Público, em especial o federal, exatamente por ter atribuições na esfera federal no que respeita às questões de improbidade administrativa, quer a face penal quer a criminal. Não se esqueça dos editoriais em prol da Lei da Mordaça, nos tempos em que era dirigido por Pimenta Neves, e o espaço conferido à "vítima", a subprocuradora Delza Curvello. É considerada "vítima" porque, na visão do jornal, a referida subprocuradora representa o que gostariam o Executivo federal e o jornalão que fosse o modelo de órgão do Ministério Público. Só que a maioria expressiva dos membros do Parquet federal já fez sua opção conforme a Constituição Federal. Se a linha editorial do Estadão poderia, à época, ser atribuída à mente de um homicida em potencial, fica claro que a linha da "desconversa" é uma opção da própria empresa, cujos interesse comerciais já abandonaram o jornalismo de qualidade faz tempo.
Acredita a empresa jornalística que atacando a pessoa do procurador Luiz Francisco de Souza possa atingir a Instituição. Seria o mesmo que tomar todos os profissionais do referido jornal como homicidas em potencial, e daí tentar desqualificá-los. Parece que não é por aí. Apenas uma observação: chamar alguém de "psicopata" pode ter sérias conseqüências…
Encarando ACM
No que se refere à postura da "desconversa", alguns jornalistas conseguiram escapar da lamentável tendência bem apontada por Veríssimo. Entre eles vale lembrar Fernando Rodrigues, que em sua coluna na Folha (26/2/01), sob o título "A atitude de Luiz Francisco" assim se manifestou :
Passado o calor inicial da crise, na estiagem de meio do Carnaval, peço licença para criar uma polêmica e discordar da análise mais ou menos generalizada sobre o procurador da República em Brasília Luiz Francisco de Souza.
Consta que Luiz Francisco gravou uma conversa entre ele, o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e outros dois procuradores, na segunda-feira da semana passada.
Virou lugar-comum em Brasília ouvir o seguinte sobre o fato: "São dois levianos. ACM por ter fuxicado com procuradores sobre acusações das quais não tem provas. E Luiz Francisco por ter gravado sem permissão, colocando em risco a reputação do Ministério Público como um todo".
O primeiro defeito dessa análise é colocar no mesmo balaio ACM e Luiz Francisco. E, como é óbvio, ACM não é Luiz Francisco e vice-versa.
É importante registrar que Luiz Francisco cometeu uma impropriedade quando se considera o fato isoladamente. Não se espera que um procurador saia por aí gravando conversas sem avisar a seus interlocutores.
Mas é necessário fazer o julgamento "dentro do contexto", para usar a expressão que os jornalistas mais ouvem quando uma fonte não gosta do enfoque de uma notícia publicada. Todas as declarações e acusações feitas por ACM eram de conhecimento de jornalistas e autoridades em Brasília. Quanto aos jornalistas, não podiam publicar porque ACM antes fazia o pedido do "off". No caso das autoridades, julgue o leitor por que nunca ninguém do Palácio do Planalto insurgiu-se contra o baiano.
Luiz Francisco também sabia de tudo. Resolveu gravar. E divulgar em seguida para a revista "IstoÉ". Cometeu um erro? Pode ser. Mas tornou público para 170 milhões de brasileiros algo que apenas uns gatos-pingados conheciam em Brasília. Nesse sentido, colocando a própria pele e a reputação em risco, o jovem procurador prestou um serviço ao país.
Na "desconversa" que muitos pretendem levar à frente, é bom que se observe que o procurador Luiz Francisco não grampeou conversa alguma. Gravou conversa da qual ele próprio participava e nessa atitude não há ilegalidade. Quanto a pedir ou avisar ao interlecutor que fará a gravação, tudo depende de quem são os partícipes e do eventual uso que se fará da gravação. Ainda que não escrito em manual algum, eu, como procuradora regional da República, não descartaria a possibilidade de gravar a conversa. E por quê? Porque não estaria conversando com um cidadão qualquer. Um senador da República não vai ao MPF só para conversar por conversar. Um senador como o ex-presidente do Senado, menos ainda. Se fosse indagado sobre a redução a termo de suas palavras, duvido que aceitasse. A gravação foi medida de cautela de quem se dispôs a ouvir. Insisto: não se tratava de um cidadão que não sabia muito bem se era ou não ali que deveria formalizar algum inconformismo.
Diferentemente do que ocorreu, a divulgação do conteúdo das fitas, entendo, deveria se dar por meio de uma comunicação coletiva a todos os órgãos de informação. Se assim tivesse ocorrido, boa parte da crítica, por parte da imprensa, não ocorreria. Há uma dose de ciúmes da escolha de um e não de outro órgão. Qualquer um dos que criticam a divulgação gostaria de dar o "furo".
Não cabe, por outro lado, a crítica por implicar a divulgação do conteúdo da conversa tornar públicas acusações ainda não devidamente apuradas. Quais foram elas?
Reconheço que o desentendimento havido entre os procuradores da República, que participaram do encontro polêmico, encerra gravidade. Mas, como bem foi observado em editorial pela Folha de S.Paulo (2/3/01), sob o título "À procura de senso"
A credibilidade de Luiz Francisco está tão prejudicada quanto a fita em que pisou. A questão é saber se o Ministério Público atuará no flanco interno com a firmeza devida. Se não o fizer, a tendência é a desconfiança se transferir para a própria instituição.
Assim sendo, a questão afeta à conduta de membros do Ministério Público tem como ser tratada internamente, e com certeza o será. Por outro lado , o episódio que fugiu a todas as ocorrências rotineiras a que estão acostumados os membros do Ministério Público não pode ser tomado como a única manifestação da Instituição. Mesmo com erros, se algum órgão de pesquisa se propuser a averiguar, apurar-se-á que é uma das poucas instituições públicas dignas de credibilidade. Ainda que não tenha sido a iniciativa do procurador Luiz Francisco de Souza a mais adequada para a circunstância, suas outras iniciativas, que lhe deram projeção, não podem ser esquecidas. Cumpria ele seu dever, é claro. Mas quantas outras pessoas que também poderiam ter cumprido suas obrigações não o fizeram?
Escreveu Fernando Rodrigues, frisando que não pode ser colocado o procurador da República e o senador no mesmo balaio, que Luiz Francisco prestou um serviço a 170 milhões de brasileiros. Alguns desses brasileiros em geral ignorados mandaram e-mail à subscritora deste artigo, dizendo acreditar que Luiz Francisco faria a mesma coisa se, servindo café, tivesse ouvido o que o senador ACM declarou.
No meio da "desconversa" parece que está sendo "desconversado" o fato de Luiz Francisco, um rapaz que não atende aos padrões estéticos "globais" nem ao padrão de consumo de uma sociedade altamente consumista (sociedade esta cuja pusilanimidade da classe polítca é o traço mais marcante), ter peitado nada mais, nada menos, do que Antonio Carlos Magalhães.
E isto parece uma "falta" imperdoável…
(*) Procuradora regional da República em São Paulo, associada ao IEDC ? Instituto de Estudos "Direito e Cidadania"