MENOS É MAIS
Muniz Sodré (*)
Há um ramo importante da sociologia européia ? onde se destacam nomes como o do italiano Franco Ferrarroti ? que hoje privilegia, na observação da vida social, as pequenas "histórias de vida". Poderia ser muito útil a pauteiros e a editores prestar uma certa atenção aos resultados dessa metodologia voltada para o pequeno, para o mínimo ou para os microcircuitos do cotidiano.
A lembrança nos ocorre porque, na ampla cobertura que a imprensa carioca tem dado ao descontrole do crime organizado, só as folhas populares deram em grandes linhas a notícia do assassinato de um velho taxista português no dia em que o caos armado tomou conta das ruas da cidade.
(Com um pedido de licença aos velhos "reis do lide" e aos vigilantes da suposta objetividade jornalística, optamos usar neste texto a primeira pessoa em seu plural majestático ? "nós" ?, porque de alguma maneira nos envolvemos emocionalmente com o fato.)
É que acabávamos de entrar num táxi a caminho do bairro de Ipanema, no Rio, quando o jovem motorista indicou-nos com o olhar a foto, na primeira página do jornal, do taxista assassinado, comentando: "Eu o conhecia muito". A vítima tinha 73 anos, era casado, sobrevivera recentemente um sério problema coronariano e rumava para casa ao ser envolvido pela fumaça de um ônibus queimado na avenida Leopoldo Bulhões, Zona Norte do Rio. Aparentemente, a fumaça o impedira de perceber que alguns traficantes lhe haviam sinalizado para que parasse o carro. Perseguido, foi arrancado de seu meio de trabalho e assistiu, chorando, a que adolescentes fortemente armados o incendiassem. Ato contínuo, arrastado para uma favela próxima, o motorista de táxi foi torturado e morto a tiros.
Um relato desses é, em si mesmo, assombroso e chocante. Mediado por alguém familiarizado com a vítima ? um colega, que todavia não acrescentou nenhum tom dramático à narrativa ?, deixou suspensa no ar uma tristeza cortante, que não estimulou qualquer outra fala. Já fora do táxi, uma pergunta do taxista persistia em nossos ouvidos: "Por quê?"
Pés decepados
Não era preciso refletir muito tempo sobre essa pergunta para nos darmos conta de que ela não buscava qualquer causa de estrutura para a eclosão da violência no Rio. A pergunta trazia consigo a força de uma história de vida conhecida, portanto a de uma experiência traduzida em narrativa. Era de fato uma questão mais funda, que visava a algo de absurdo ou de insondável na condição humana, raramente presente em página de jornal, noticiário televisivo, nem mesmo em juízos reflexivos de artigo de segundo caderno.
O assassinato do velho taxista não fora determinado por nenhuma ordem direta de um chefe do crime, nem de seus estrategistas do terror, e sim pelo inumano. Não esse lado obscuro ou inconsciente que todo mundo carrega, como bem vive demonstrando a psicanálise, mas o inumano demais.
Não pôde deixar de vir-nos à cabeça os relatos das execuções crudelíssimas na Bósnia e outros, que já se vão apagando da memória recente, como os do genocídio em Ruanda, quando falanges da etnia hutu, armadas de fuzis, porretes e machadinhas, assassinaram centenas de milhares de tutsis. Conta-se ser comum que as vítimas tivessem ambos os pés decepados, na maioria dos casos quando ainda estavam vivas. Por quê? Aqui, a resposta é "simples": como os tutsis têm estatura mais elevada do que os hutus, supunha-se que a decepação e a morte reduzissem de algum modo a sua imponência.
Serviço social
Sabemos, claro, que relatos dessa ordem poderiam encher páginas de jornais, de livros ou de tempo televisivo, com variações de países, etnias ou personagens, a partir de fatos acontecidos ou mesmo ainda anunciados. Por exemplo, os jornais de quarta-feira, 12/3, noticiavam que o chefe da "etnia" guerreira norte-americana, Bush, tinha ordenado a abertura de concorrência entre empresas de seu país para as obras de reconstrução do Iraque. É o mesma inumanidade dos hutus, com um avanço tecnomercadológico: à "decepação" e à morte se seguirá a reconstrução comercializada.
É possível que, no caso do assassinato do taxista português no Rio, o inumano deva ser pesquisado na droga, esta intensificação da lógica do pior no homem. Toda "purpurina" (termo usado por uma coluna social para a droga) que se consome é garantida pelo niilismo neoliberal, pelo rebaixamento economicista dos valores, pela exaltação narcísica do ego, pela irresponsabilização da cidadania.
O jornalismo prestaria um grande serviço social se, ao lado das estatísticas e das entrevistas bombásticas, alinhasse histórias de vida pertinentes à melhor compreensão do horror cotidiano nas grandes metrópoles brasileiras. Em outros termos, que se revitalizem a grande reportagem e o jornalismo cívico.