Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo de precisão e RAC

INOVAÇÃO & OBSOLESCÊNCIA

Nilson Lage (*)

O tipo de sociedade que está se desenhando (a menos que a fúria guerreira consiga acabar com ela) dará valor especial ao conhecimento substantivo, àquele que se expressa em sentenças que ou são verdadeiras ou falsas, em valores que podem ser confirmados, naquilo que se sabe ou de que se têm indícios relevantes. Mesmo o que não pode ser desmentido ? e, portanto, é possível ? terá que ser provável para ser admitido.

Há imenso cansaço da retórica, que se expressa na abstinência eleitoral (onde o voto não é obrigatório) e na incredulidade das pessoas bem-informadas com relação à publicidade vazia e à propaganda enganosa. Carros de luxo, com o valor medido como símbolo de status, chamam a atenção, mas deveríamos estar atentos àquelas pessoas que, podendo comprá-los, não compram porque, afinal, não oferecem boa relação custo-benefício. É muito mais gente do que parece.

Quem freqüenta o supermercado observa o número dos que preferem sucos de frutas a refrigerantes, laranjas a bebidas gasosas. Na lanchonete, desprezam os sanduíches naturais de atum enlatado com milho em conserva. Compram roupas básicas. Vivem dentro de suas posses. Procuram manter-se informados e se aperfeiçoam em seus ofícios. Não ficam nada eufóricos ao saber que os bombardeios são cirúrgicos e que os aviões não podem ser vistos no radar. Não se sentiram especialmente motivados a ver Guerra nas Estrelas 4 ou 5.

Lido com jovens há muito tempo. Ao contrário do que parece, a maioria ? e, dentre esses, os mais capazes ? é de pessoas sérias, bem diferentes da imagem que se faz deles. Creio honestamente que assim serão os líderes do futuro.

O jornalismo de precisão pretende atingir essa gente. Descobrir o que se oculta por debaixo do preconceito e do palpite. Faz isso com técnicas científicas aplicadas à vida social, com ênfase em métodos estatísticos e cruzamento de valores. Envolve um tanto de investigação, mas o próprio planejamento da atividade investigativa resulta de simulações e hipóteses que se formulam com base em indícios e dados processados.

Jornalismo de precisão e uso de computador se complementam ? na verdade, a essa altura, se confundem. E, ainda citando o professor Meyer, já não há mais motivo para se falar em reportagem assistida por computador, pelo mesmo motivo que não se fala em design assistido por computador ou contabilidade assistida por computador.

Naturalmente, algumas técnicas de jornalismo de precisão poderiam ser aplicadas ainda que sem computador. É o caso do Método Delfos, em que se entrevistam especialistas sobre tema polêmico, editam-se as respostas, volta-se aos especialistas que as reexaminam, até que se chegue a um consenso ou a um balizamento de opiniões diferenciadas. Mas, mesmo aí, a internet dá imensa ajuda e amplitude ao trabalho.

Troca sem barreiras

Pesquisas de survey (baseadas em questionários), cruzamento de dados estatísticos em planilhas e bancos de dados, utilização de bancos de dados para organizar e acumular informações em uma área de cobertura ? nada disso oferece dificuldades. A matemática exigida está no nível de qualquer curso básico de graduação em informática e estatística.

Só que, para aplicar esses métodos, os jornalistas vão precisar saber um pouco dessas matérias de que, tradicionalmente, se afastaram. Alguns já sabem. O repórter Caco Barcelos, disseram-me, montou um excelente banco de dados sobre marginalidade em São Paulo reunindo informações que nem a polícia tem. A Folha de S.Paulo procura estimular esse tipo de atividade e importa especialistas estrangeiros para falar sobre o assunto ? embora ela mesma, a Folha, apóie sua política editorial mais em articulistas selecionados do que em repórteres diligentes. A Rede Globo de Televisão mantém profissionais trabalhando na alimentação de banco de dados e pesquisando sua utilização em diferentes circunstâncias, como nas épocas de eleições e em outros grandes eventos de interesse nacional. Há no Brasil dezenas de jornalistas webmasters, com domínio dos programas, recursos da máquina e métodos de gestão de sítios da internet.

Na essência, não há dificuldade alguma em desenvolver esses métodos, nem contradições de fundo. Jornalistas que cursam pós-graduação em disciplinas da área de Gestão do Conhecimento na Universidade Federal de Santa Catarina têm encontrado surpreendentes semelhanças entre os princípios básicos do jornalismo (por exemplo, o lead, ou a busca de linguagem precisa com as palavras e expressões ambíguas ou vagas das línguas naturais) e conteúdos temáticos de disciplinas como Inteligência Competitiva, Robótica e Inteligência Artificial.

Não é, assim, um problema de transferência de conhecimentos nem de importação de técnicas. A questão é mais simples e, ao mesmo tempo, mais séria. Ela envolve a mudança de mentalidades e a convergência entre o ser político, que o jornalismo continuará sendo, e a instância científico-tecnológica. Esse é o sentido da sociedade de informação, se ela vier a ser implantada.

Quanto à viabilidade de tal desdobramento, tenho dúvidas. Sempre me vem à cabeça uma citação de Norbert Wiener, um dos pais da Informática, em Cybernetics or control of communication in the animal and machine, de 1948:


"A sociedade da informação só pode existir sob a condição de troca sem barreiras. Ela é incompatível com o embargo ou com a prática do segredo, com a desigualdade no acesso à informação e sua transformação em mercadoria."


(*) Jornalista, professor titular da UFSC