RADIOBRÁS
Sylvia Moretzsohn (*)
Em sua "Nota de despedida" (Folha de S.Paulo, caderno TV Folha, 12/1/03, p.2), o recém-empossado presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, faz considerações de cunho ético que merecem ser analisadas mais detalhadamente.
Em primeiro lugar, aponta o "conflito de interesses" entre a função que exercia ? a de crítico da mídia ? e a que exercerá agora, devido a uma "objetiva" perda de independência, que teria como conseqüência a perda de credibilidade.
Tem razão sobre as conseqüências, mas o que cabe questionar é justamente a lógica do raciocínio que lhe dá essa razão. Pois o que está em jogo aqui é o velho embuste da imparcialidade como norma e objetivo ? ainda que inatingível, como já se cansou de dizer ? do "bom" jornalismo. Embuste muito difícil de se despregar do senso comum, e que leva a pensar que o jornalista dedicado exclusivamente à sua profissão não tem interesses a defender a não ser os do público; uma vez que passe a exercer outras funções, públicas ou não, torna-se automaticamente suspeito…
Ainda que fosse possível crer que o jornalista não fala "de lugar nenhum", é preciso perguntar: serão homogêneos os interesses desse "público" genérico em nome do qual se exerce a profissão? E esse jornalista imparcial e independente acaso não trabalha numa empresa? Seria preciso acreditar piamente na idéia de "quarto poder" para achar que essa empresa tampouco defende interesses e trabalha exclusivamente para servir ao público.
Hora de mudança e de debate
Por isso, a proibição de que os colunistas da Folha ocupem cargos do Executivo ? e que está, de forma ampliada, no art. 10 do Código de Ética do Jornalista ? é uma providência de natureza muito mais formal do que parece à primeira vista. É louvável a intenção de evitar que o jornalista use seu espaço para favorecer seu outro patrão, público ou privado. Mas essa armadilha se desmontaria facilmente se o jornalista em questão declarasse sua outra função ao assinar seus textos. Afinal, mostrar de que lado está o jornalista é mais uma informação que se dá ao leitor, como dizia Ricardo Kotscho, um crítico das idéias de objetividade e imparcialidade, atual assessor de imprensa de Lula, num livrinho escrito nos anos 80 e ainda hoje muito difundido entre estudantes de Jornalismo.
Mas o próprio Bucci permite desfazer as ilusões quanto à imparcialidade ao abordar, embora contraditoriamente, o papel do jornalismo: num primeiro momento, aponta a necessidade do controle do Estado pela sociedade e, "em especial", pela imprensa. Teríamos aí, então, a imprensa como uma instituição da sociedade, no pleno esplendor do "quarto poder". Porém, logo a seguir ele afirma sua confiança nas possibilidades de um jornalismo "público" (o que exercerá a partir de agora), "a salvo da asfixia que as tais ?leis de mercado? têm imposto às empresas jornalísticas". Em suma, confia num jornalismo não submetido à lógica do capital. Ora, então quem fiscaliza o Estado é a imprensa… do capital? Por que diabos deveríamos, então, confiar nessa "fiscalização"? Que interesses inconfessos tal imprensa estaria defendendo, quando aponta sua câmera tantas vezes oculta para os tais bastidores do poder?
Se é hora de mudança, talvez seja o momento de refletirmos sobre questões como essas.
(*) Professora do Departamento de Jornalismo da UFF