RESCALDOS DA GUERRA
Ignacio Ramonet
(*)
[Tradução: Jô Amado; reproduzido do Le Monde
Diplomatique n? 592, julho de 2003, www.monde-diplomatique.fr
e www.diplo.com.br ; título
e intertítulos da redação do OI]
"Eu preferiria morrer a proferir uma inverdade." (George
Washington)
É a história do ladrão que grita: "Pega
o ladrão!" Qual
imagina você que foi o título dado por George W. Bush
ao
célebre relatório de acusação contra
Saddam Hussein, que
apresentou no dia 12 de setembro de 2002, perante a
Assembléia Geral das Nações Unidas? Uma década
de mentiras e
desafios. E o que afirmava no relatório, detalhando "provas"?
Um rosário de mentiras! O Iraque, dizia ele em resumo, mantém
vínculos estreitos com a rede terrorista al-Qaeda e ameaça
a
segurança dos Estados Unidos porque possui "armas de
destruição em massa" (ADM) – uma expressão
assustadora
forjada por seus assessores de comunicação.
Três meses após a vitória das tropas norte-americanas
(e suas coadjuvantes britânicas) na Mesopotâmia, sabemos
agora que essas afirmações ? das quais questionamos
a fundamentação [ver Ignacio Ramonet, "De la
guerre perpétuelle", Le Monde Diplomatique, março
de 2003] ? eram falsas. Tornou-se cada vez mais evidente que o governo
americano manipulou informações sobre as ADM. A equipe
de 1.400 inspetores do Iraq Survey Group, chefiada pelo general
Dayton, não encontrou, até agora, nem a sombra de
um indício de prova. E começamos também a descobrir
que, no momento em que lançou tais acusações,
Bush já tinha recebido relatórios de seus serviços
de inteligência demonstrando que era tudo falso [ver International
Herald Tribune, Paris, 14/6/03, e El País, Madri,
1? e 10/6/3]. Segundo Jane Hartman, deputada democrata pela Califórnia,
estaríamos diante da "maior manobra de intoxicação
de todos os tempos" [Libération, Paris, 28/5/03].
Pela primeira vez em sua história, os Estados Unidos questionam
as verdadeiras razões de uma guerra quando o conflito já
terminou…
Nessa gigantesca manipulação, uma agência secreta
de dentro do Pentágono ? a Agência de Planos Especiais
(Office of Special Plans, OSP) ? desempenhou um papel crucial. A
revelação foi feita por Seymour M. Hersh, num artigo
publicado pela revista New Yorker [http://www.commondreams.org/views03/
0506.htm], em 6/5/03: a OSP foi criada após o 11
de setembro de 2001 por Paul Wolfowitz, o número dois do
Departamento de Defesa. Dirigida por um falcão convicto,
Abram Shulsky, essa agência teria por missão analisar
as informações coletadas pelas várias agências
de inteligência (CIA, DIA, NSA…) com o objetivo de sintetizá-las
e repassá-las ao governo. Baseando-se nos depoimentos de
exilados próximos ao Congresso Nacional Iraquiano (organização
financiada pelo Pentágono) e a seu presidente, o bastante
contestável Ahmed Chalabi, a OSP teria superdimensionado
a ameaça de armas de destruição em massa, assim
como os vínculos entre Saddam Hussein e a al-Qaeda.
Escandalizado pelas manipulações e manifestando-se
em nome da Veteran Intelligence Professionals for Sanity, um grupo
anônimo de ex-peritos da CIA e do Departamento de Estado afirmou
num comunicado endereçado ao presidente Bush, em 29/5/03,
que, também no passado, "informações já
haviam sido falsificadas por motivos políticos, mas nunca
de maneira tão sistemática, com o objetivo de enganar
nossos parlamentares para que autorizassem uma guerra" [http://www.counterpunch.org/
vips02082003.html].
O próprio Colin Powell foi manipulado. E agora arrisca seu
futuro político. Teria resistido às pressões
da Casa Branca e do Pentágono em divulgar informações
extremamente discutíveis. Antes de seu discurso de 5 de fevereiro
perante o Conselho de Segurança, Powell teve que ler o confuso
emaranhado preparado por Lewis Libby, chefe de gabinete do vice-presidente
Richard Cheney. Continha informações de tal forma
duvidosas que Powell teria tido um acesso de raiva, jogado ao ar
as folhas de papel e declarado: "Não vou ler isso. Isso
é uma m…" [veja International Herald Tribune,
Paris, 5/6/03]. Por fim, o secretário de Estado exigiria
que George Tenet, diretor da CIA, ficasse sentado bem atrás
de si, no dia 5 de fevereiro, para que partilhasse da responsabilidade
do que seria dito.
Numa entrevista à revista Vanity Fair, publicada
em 30 de maio, Wolfowitz admitiu a mentira de Estado. Confessou
que a decisão sobre o exagero da ameaça das ADM para
justificar uma guerra preventiva contra o Iraque tinha sido tomada
"por motivos burocráticos". Explicou: "Concordamos
num ponto ? as armas de destruição em massa ? pois
esse era o único argumento em relação ao qual
todo mundo estaria de acordo" [http://www.scoop.co.nz/mason/stories/
WO0305/S00308.htm].
Portanto, o presidente dos Estados Unidos mentiu. Em sua busca
desesperada por um casus belli que lhe permitisse contornar
as Nações Unidas e aliar a seu projeto de conquista
do Iraque alguns cúmplices (Grã-Bretanha e Espanha),
Bush não hesitou em fabricar uma das maiores mentiras de
Estado.
Não foi o único. No dia 24/9/02, seu aliado Anthony
Blair, primeiro-ministro britânico, declarou na Câmara
dos Comuns: "O Iraque possui armas químicas e biológicas.
(…) Seus mísseis podem ser disparados em 45 minutos".
Em sua intervenção do dia 5 de fevereiro perante o
Conselho de Segurança da ONU, Powell declarou: "Saddam
Hussein desenvolveu pesquisas sobre dúzias de agentes biológicos
que provocam doenças como a gangrena gasosa, a peste, o tifo,
a cólera, a varíola e a febre hemorrágica".
E, por fim, o vice-presidente Cheney afirmou em março, às
vésperas da guerra, que "acreditamos que Saddam Hussein
tenha, na realidade, reconstruído seu arsenal nuclear"
[Time].
Por ocasião de inúmeras declarações,
o presidente Bush insistiu nas mesmas acusações. Num
discurso pela rádio à nação americana,
em 8/2/03, chegou a mencionar os seguintes detalhes: "O Iraque
enviou peritos em explosivos e na fabricação de documentos
falsos para trabalhar com a al-Qaeda. Também dispensou à
al-Qaeda treinamento com armas biológicas e químicas.
Um agente da al-Qaeda foi enviado ao Iraque por várias vezes,
no final da década de 90, para ajudar Bagdá na aquisição
de venenos e gases".
"Estamos em perigo!"
Recebidas e amplificadas por todos os meios de comunicação
belicistas, transformados em agências de propaganda, todas
essas denúncias foram repetidas ad nauseam pelas redes
de televisão Fox News, CNN e MSNC, pela emissora de rádio
Clear Channel (com 1.225 estações nos Estados Unidos)
e mesmo por jornais de prestígio, como o Washington Post
e o Wall Street Journal. Pelo mundo afora, essas acusações
mentirosas constituíram o principal argumento da turma do
"vamos-à-guerra". Na França, por exemplo,
foram encampadas, sem vergonha alguma, por pessoas como Pierre Lelouche,
Bernard Kouchner, Yves Roucaute, Pascal Bruckner, Guy Millière,
André Glucksmann, Alain Finkelkraut, Pierre Rigoulot etc.
[ver Le Monde, 10 e 20/3/03, e Le Figaro, 15/2/203;
ver também, de Anna Bitton, "Ils avaient soutenu la
guerre de Bush", Marianne, 9/6/03. Agora, que a mentira
foi confirmada, é surpreendente o silêncio dessas pessoas…]
As acusações também foram repetidas por todos
os aliados de Bush. A começar pelo mais diligente deles,
José María Aznar, presidente do governo espanhol que,
em 5/2/03, assegurou, diante das Cortes (Parlamento) de Madri: "Todos
nós sabemos Saddam Hussein possui armas de destruição
em massa. (…) Também sabemos que ele guarda armas químicas"
[El País, Madri, 4/6/03]. Alguns meses antes, em 30
de janeiro, executando uma ordem dada por Bush, Aznar redigira uma
declaração de apoio aos Estados Unidos, a "Carta
dos Oito", assinada, entre outros, por Anthony Blair, Silvio
Berlusconi e Vaclav Havel. Afirmavam, no documento, que "o
regime iraquiano e suas armas de destruição em massa
representam uma ameaça à segurança mundial".
Portanto, durante mais de seis meses, para justificar uma guerra
preventiva que nem as Nações Unidas nem a opinião
pública mundial queriam, uma verdadeira máquina de
propaganda e intoxicação, pilotada pela seita doutrinária
que assessora Bush, divulgou uma enxurrada de mentiras de Estado
com a presunção e orgulho que são próprios
dos regimes mais detestados do século 20.
Elas se inserem numa longa tradição de mentiras de
Estado que vem acompanhando a história dos Estados Unidos.
Uma das mais sinistras refere-se à destruição
do encouraçado norte-americano Maine na baía
de Havana, em 1898, e que serviu de pretexto para a declaração
de guerra dos Estados Unidos à Espanha e a anexação
de Cuba, Porto Rico, Filipinas e a ilha de Guam. Na noite do dia
15 de fevereiro de 1898, por volta das 21h40, o Maine sofreu
uma violenta explosão. O navio afundou na enseada de Havana
e 260 homens morreram. Imediatamente, a imprensa popular acusou
os espanhóis de terem colocado uma mina sob o casco do navio
e denunciou sua barbárie, seus "campos de morte"
e mesmo a prática da antropofagia…
Dois donos de jornais iriam rivalizar na busca do sensacional:
Joseph Pulitzer, do World, e, principalmente, William Randolph
Hearst, do New York Journal. Essa campanha contou com o apoio
interessado de empresários americanos que tinham investido
muito dinheiro em Cuba e sonhavam em expulsar a Espanha. Mas o público
não se mostrava interessado. Aliás, nem os jornalistas.
Em março de 1898, Fraderick Remington, caricaturista do New
York Journal, escreveu de Havana a seu patrão: "Aqui
não há guerra, peço para voltar". Em resposta,
Hearst enviou-lhe um telegrama: "Fique aí. Forneça
os desenhos que eu forneço a guerra". E então
ocorreu a explosão do Maine. Hearst desfechou uma
violenta campanha, como se pode ver no filme Citizen Kane,
de Orson Welles (1941).
Durante várias semanas, dia após dia, ele dedicou
várias páginas de seus jornais ao caso do Maine,
exigindo vingança e repetindo infatigavelmente: "Remember
the Maine! In hell with Spain!" (Lembrem-se do Maine!
A Espanha que vá para o inferno!"). Todos os outros
jornais foram atrás. A circulação do New
York Journal começou por passar de 30 mil para 400 mil
exemplares e, em seguida, passou a superar constantemente 1 milhão
de exemplares! A opinião pública estava exaltada.
O clima tornou-se alucinante. Pressionado por todos os lados, o
presidente William McKinley declarou guerra à Espanha em
25 de abril de 1898. Treze anos depois, em 1911, uma comissão
que investigava a destruição do Maine concluiria
que ocorrera uma explosão acidental na sala de máquinas…
[http://www.herodote.net/
histoire02151.htm]
Em 1960, em plena guerra fria, a Central Intelligence Agency (CIA)
divulgou para alguns jornalistas "documentos confidenciais"
que demonstravam que os soviéticos estavam a ponto de vencer
a corrida armamentista. De imediato, os grandes meios de comunicação
começaram a pressionar os candidatos à presidência,
exigindo, em coro, um aumento substancial nas verbas para a defesa.
Encurralado, John F. Kennedy prometeu aplicar bilhões de
dólares no desenvolvimento do programa de construção
de mísseis balísticos de cruzeiro (missile gap).
O que era o desejo não só da CIA, mas de todo o complexo
militar-industrial. Já eleito e com o programa aprovado,
Kennedy descobriria que a superioridade dos Estados Unidos sobre
a União Soviética era esmagadora…
Em 1964, dois destróieres declararam ter sido atacados,
no Golfo de Tonquim, por torpedos norte-vietnamitas. Imediatamente,
a televisão e a imprensa fizeram disso um caso nacional,
berrando contra a humilhação e exigindo represálias.
Usando esses ataques como pretexto, o presidente Lyndon B. Johnson
ordenou bombardeios de represálias contra o Vietnã
do Norte. Exigiu, junto ao Congresso, uma resolução
que lhe permitiria, na seqüência, envolver o exército
americano. Foi assim que começou a guerra do Vietnã,
que só iria terminar ? com uma derrota ? em 1975. Mais tarde
se saberia, da própria boca do pessoal dos dois destróieres,
que o ataque do Golfo de Tonquim fora pura invenção…
O mesmo roteiro deu-se com o presidente Ronald Reagan. Em 1985,
ele decretou, de repente, o estado de "urgência nacional"
devido à "ameaça nicaragüense" que
representavam os sandinistas no poder, em Manágua ? que,
no entanto, haviam sido eleitos democraticamente, em novembro de
1984, e respeitavam as liberdades políticas, assim como a
liberdade de expressão. "A Nicarágua", afirmou
Reagan, "fica a dois dias, viajando de carro, de Harlingen,
Texas. Estamos em perigo!" O então secretário
de Estado, George Schultz, afirmaria perante o Congresso: "A
Nicarágua é um câncer que se insinua sobre nosso
território, adota as doutrinas de Mein Kampf e ameaça
controlar todo o hemisfério…"[ver "Entretien
avec Noam Chomsky", Télérama, 7/5/03].
Essas mentiras iriam justificar a ajuda maciça aos mercenários
anti-sandinistas, os contra, e desembocariam no escândalo
do Irãgate.
Manipulações grosseiras
Não caberia um relato prolixo sobre as mentiras da guerra
do Golfo de 1991, amplamente analisadas [ver, de Ignacio Ramonet,
La Tyrannie de la communication, Ed. Gallimard, col. "Folio
actuel" n? 92, Paris, 2001] e retidas na memória como
paradigmas da empulhação nos tempos modernos. Informações
repetidas à exaustão ? tais como "o Iraque, quarto
maior exército do mundo", "o saque das incubadoras
na maternidade do Kuait", "a linha defensiva inexpugnável",
"os bombardeios cirúrgicos", "a eficácia
dos mísseis Patriot" etc. ? se revelaram totalmente
falsas.
Desde a vitória controvertida de Bush na eleição
presidencial de novembro de 2000, a manipulação da
opinião pública tornou-se uma das principais preocupações
do novo governo. Após os atentados de 11 de setembro de 2001,
isso se transformou numa autêntica obsessão. Michael
K. Deaver, amigo de Donald Rumsfeld e especialista em psy-war,
a "guerra psicológica", resume o novo objetivo
da seguinte maneira: "Atualmente, a estratégia militar
deve ser pensada em função da cobertura da televisão,
[pois] se a opinião pública estiver do seu
lado, ninguém lhe resistirá; sem ela, o poder fica
impotente",
Desde o início da guerra contra o Afeganistão e em
coordenação com o governo britânico, foram criados
? em Islamabad, Londres e Washington ? Centros de Informações
sobre a Coalizão. Verdadeiras agências de propaganda,
esses centros foram concebidos por Karen Hughes, assessora de comunicação
de Bush, e principalmente por Alistair Campbell, o todo-poderoso
guru de Anthony Blair para tudo o que diga respeito à imagem
política. Um porta-voz da Casa Branca explicou as funções
desses centros da seguinte forma: "Os canais de noticiário
contínuo divulgam informações 24 horas por
dia; pois bem, os centros irão fornecer informações
a esses canais 24 horas por dia, durante todos os dias" [The
Washington Post, 1?/11/01].
Em 20/2/02, o New York Times revelou o mais fabuloso projeto
de manipulação dos espíritos. Para conduzir
a "guerra da informação", o Pentágono
? obedecendo às instruções dadas por Donald
Rumsfeld e pelo subsecretário da Defesa Douglas Feith ? criou
sigilosamente, colocando à sua frente o general da aeronáutica
Simon Worden, uma misteriosa Agência de Influência Estratégica
(Office of Strategic Influence, OSI) cuja missão era divulgar
falsas informações em nome de servir à causa
dos Estados Unidos. A OSI teria autorização para praticar
a desinformação, em especial junto aos meios de comunicação
estrangeiros. O jornal de Nova York especificava que a OSI tinha
assinado um contrato de 100 mil dólares por mês com
uma agência de assessoria de imprensa, a Rendon Group, que
já fora empregada em 1990 na preparação da
guerra do Golfo, e que fora a artífice da falsa declaração
da "enfermeira" kuaitiana que afirmou ter visto soldados
iraquianos saqueando a maternidade do hospital do Kuait e "arrancar
bebês das incubadoras, matando-os sem piedade e jogando-os
no ch&atilatilde;o". [Essa falsa enfermeira era a filha do embaixador
do Kuait em Washington e seu falso depoimento foi criado e redigido,
para o Rendon Group, por Michael K. Deaver, ex-assessor de imprensa
do presidente Ronald Reagan.] Esse depoimento foi um fator decisivo
para que os membros do Congresso votassem em favor da guerra…
Oficialmente dissolvida após as revelações
publicadas pela imprensa, a OSI continua em atividade, com certeza.
Como explicar de outra maneira algumas das mais grosseiras manipulações
feitas durante a recente invasão do Iraque? Em especial,
a enorme mentira envolvendo a espetacular libertação
da jovem soldado Jessica Lynch.
"Pior que Watergate"
Ninguém se esqueceu de como a grande imprensa americana
divulgou, no início de abril de 2003, uma impressionante
profusão de detalhes de sua história. Jessica Lynch
fazia parte de um grupo de dez soldados capturados pelas tropas
iraquianas. Ferida numa emboscada no dia 23 de março, ela
teria resistido até o fim, atirando em seus atacantes até
gastar toda a munição. Finalmente, teria sido apunhalada,
amarrada e levada para um hospital em território inimigo,
em Nassiriya. Ali, ela teria sido espancada e maltratada por um
oficial iraquiano. Uma semana depois, um destacamento de forças
especiais americanas transportadas por helicóptero teria
conseguido libertá-la durante uma operação-relâmpago,
precedida de um tiroteio e de explosões. Apesar da resistência
da guarda iraquiana, os comandos teriam conseguido penetrar no hospital,
de onde teriam levado Jessica, de helicóptero, para o Kuait.
Naquela mesma noite, falando da Casa Branca, o presidente Bush
anunciou à nação a libertação
de Jessica Lynch. Oito dias depois, o Pentágono distribuiria
aos meios de comunicação um vídeo que teria
sido gravado durante a proeza com cenas dignas dos melhores filmes
de guerra.
Mas o conflito do Iraque terminou no dia 9 de abril e alguns jornalistas
? em especial os do Los Angeles Times, do Toronto Star,
do El País e da emissora BBC World ? se dirigiram
a Nassiriya para confirmar a versão do Pentágono sobre
a libertação de Jessica. Ficariam estupefatos. De
acordo com a investigação que fizeram junto a médicos
iraquianos que haviam tratado da moça ? o que foi confirmado
pelos médicos americanos que a observaram após sua
libertação ?, os ferimentos de Jessica (uma perna
e um braço fraturados e um tornozelo deslocado) não
haviam resultado de tiros de armas de fogo; haviam sido provocados
simplesmente pelo acidente com o caminhão em que ela se encontrava.
Também não havia sido maltratada. Pelo contrário,
os médicos tinham feito o possível para cuidar bem
dela: "Ela tinha perdido muito sangue", contou o doutor
Saad Abdul Razak, "e nós tivemos que fazer uma transfusão.
Felizmente, alguns parentes meus têm o mesmo tipo sangüíneo
dela: ?O? positivo. E conseguimos o sangue em quantidade suficiente.
Quando ela chegou aqui, seu pulso estava a 140. Acredito que tenhamos
salvado sua vida" [El País, 7/5/03].
Correndo riscos incalculáveis, aqueles médicos tentaram
entrar em contato com o exército americano para devolver
Jessica. Dois dias antes da intervenção dos comandos
especiais, chegaram a levar sua paciente numa ambulância até
um local próximo às linhas americanas. Mas os soldados
abriram fogo e quase matavam sua própria heroína.
Na alvorada do dia 2 de abril, a chegada dos comandos especiais
com seu impressionante arsenal de armas sofisticadas surpreendeu
o pessoal do hospital. Havia dois dias que os médicos tinham
avisado as tropas americanas que o exército iraquiano deixara
a cidade e que Jessica os esperava.
O doutor Anmar Uday contou o episódio a John Kampfner, da
BBC: "Foi como num filme de Hollywood. Não havia soldado
iraquiano algum, mas as forças especiais americanas disparavam
suas armas. Atiravam para todos os lados e ouviam-se explosões.
E gritavam: ?Go! Go! Go!? O ataque ao hospital foi uma espécie
de show, ou um filme de ação com Sylvester Stallone"
[http://news.bbc.co.uk/2/hi/programmes/
correspondent/3028585.stm].
As cenas foram gravadas, com uma câmera que filma no escuro,
por um ex-assistente de Ridley Scott que trabalhou com ele no filme
La chute du Faucon noir (2001). Segundo Robert Scheer, do
Los Angeles Times, em seguida as imagens foram enviadas,
para serem editadas, ao comando central do exército americano,
no Catar. Após passarem pelo controle do Pentágono,
foram divulgadas para o mundo inteiro [Los Angeles Times,
20/5/03; consultar também: http://www.robertscheer.com/].
A história da libertação de Jessica Lynch
constará dos anais da propaganda de guerra. Nos Estados Unidos,
provavelmente será considerado o momento mais heróico
do conflito. Mesmo que se comprove que se tratou de uma invenção
tão falsa quanto a das "armas de destruição
em massa" que teria Saddam Hussein ou a dos vínculos
entre o antigo regime iraquiano e a al-Qaeda.
Embriagados pelo poder, Bush e seu séqüito enganaram
os cidadãos americanos e a opinião pública
mundial. Suas mentiras constituem, segundo o professor Paul Krugman,
"o pior escândalo da história política
dos Estados Unidos, pior que o de Watergate, pior que o do Irãgate"
[The New York Times, 4/6/03].
(*) Diretor-presidente de Le Monde Diplomatique.