MÍDIA & RELIGIÃO
Allan Novaes (*)
Na edição do dia 30 de abril, meu artigo intitulado "O escândalo da cruz" foi criticado por Daniel Sottomaior, engenheiro, ateu e integrante da Sociedade da Terra Redonda. "Cristo ainda é manchete", do colega Michelson Borges, também foi alvo das investidas do engenheiro. O artigo de Sottomaior ? "Jornalismo e fundamentalismo" ? acusa-nos, com ênfase em meu texto, de sermos fundamentalistas, dogmáticos, sem pensamento crítico. As acusações afetam a imagem do Centro Universitário Adventista São Paulo (Unasp), onde estudo, e fatalmente criam um estereótipo dos religiosos e dos adventistas.
Não é a primeira vez que Sottomaior se envolve em situações de embate entre a validade do ateísmo e da religião. Comigo não foi diferente. Também fui vítima de sua defesa em prol do ceticismo e do que ele acredita ser o bom jornalismo. O curioso, no entanto, é que a defesa da religiosidade não era em nenhum momento propósito de meu artigo.
Usando a didática para evitar novas (e más) interpretações, eis abaixo os meus quatro objetivos ao redigir esse artigo:
1) Criticar a tendenciosidade e a disposição anti-religiosa de muitos jornalistas ao tratarem de Jesus, pois isso compromete a imparcialidade do profissional e do veículo; 2) Acusar a pretensão de jornalistas de divulgarem teorias científicas como verdades irrefutáveis, quebrando o princípio de fidelidade na transmissão das informações; 3) Incentivar o abandono da tendência de "polemizar", isto é, utilizar o sensacionalismo para falar de Jesus, baseando-se em especulações e teorias excêntricas e não-fundamentadas na comunidade científica; 4) apontar os malefícios da confusão informativa (quanto mais se informa, menos se informa), produzida pelo bombardeio do sensacionalismo e do polemismo em torno da figura de Jesus, ou seja, a insistência em relatar as "novidades" extravagantes sobre Jesus que apenas produzem o escândalo.
Novamente usando a didática, agora é vez de esclarecer quais não são os meus objetivos: 1) Fazer proselitismo religioso; 2) Abandonar a dúvida reflexiva ou o debate de idéias como ferramenta do pensamento crítico; 3) criticar a postura de jornalistas por não serem religiosos.
Feita a devida contextualização de meu artigo, agora &eaceacute; a hora de responder às críticas. Vamos enumerá-las de modo didático e transcrevê-las na ordem em que aparecem no texto de Sottomaior, com exceção das críticas que ele faz aos Adventistas do Sétimo Dia, que deixo para esclarecer ao fim desse artigo de resposta:
1) "Com o 11 de setembro e a última guerra no Iraque, a imprensa tem dado atenção especial ao fundamentalismo dos americanos, de sua mídia e de seu atual presidente. Há consenso sobre a importância decisiva dessa religiosidade nas decisões unilaterais dos EUA. Afinal, não é preciso ouvir ninguém mais se Deus está do seu lado. A história já passou diversas vezes o filme sobre pessoas e nações movidas por sua visão maniqueísta de autoproclamados defensores do bem. A repetida película é sempre cheia de injustiças e crueldades atrozes regadas a muito sangue. E a boas intenções, boníssimas, divinas. (…) Vejamos o que mais nos espera".
A justificativa para que ele critique meu artigo e me acuse de fundamentalista está presente nessas linhas acima. Após ler essas declarações, logo percebi que Sottomaior deixou transparecer sua posição anti-religiosa para criticar minha análise da mídia. Todo esse discurso é apenas um prenúncio da roupagem anti-religiosa e preconceituosa que Sottomaior vestirá. Introduzir sua argumentação associando o que será analisado ? meu artigo ? com relatos famigerados de fundamentalismo é forçoso. A sensação é que meu artigo e minhas idéias resultarão em "injustiças e crueldades atrozes regadas a muito sangue", sob a égide das "boas intenções, boníssimas, divinas". Mencionar crueldade, injustiça e sangue é uma tentativa de comparar minhas idéias com episódios lamentáveis da história humana, como a Inquisição, por exemplo, que aconteceram em instituições religiosas. A tentativa é, portanto, de estereotipar minhas idéias. Mas que culpa tenho se o fundamentalismo da direita cristã estadunidense ou mesmo as perseguições da Igreja Católica medieval prejudicaram muita gente? O que meu artigo tem a ver com isso?
Também concordo com Sottomaior em criticar nações que se proclamam defensoras do bem e promovem guerras em nome de Deus. Mas Sottomaior comete o "pecado" da generalização, pois tenta comparar sutilmente meu texto às atrocidades cometidas por pessoas que invocam a Deus para satisfazerem seus interesses. Esse é o gancho para sua crítica. Continuemos, a despeito do exagero comparativo.
2) "Ambos os adventistas acusaram a mídia de não divulgar livros como The Case for Christ, de Lee Strobel, ex-jornalista investigativo do Chicago Tribune. (…) A obra resume treze entrevistas concedidas ao autor, o que à primeira vista poderia resultar em uma ampla investigação sobre o tema. Mas ambos os adventistas esqueceram de notar, ou de dizer, que todas as treze fontes de Strobel eram apologistas evangélicos. A descrição que Borges faz do livro dá a entender que este mostraria os dois lados da questão, e concluiria pela força dos argumentos cristãos. Mas na verdade a obra de Strobel é puramente apologética. Se é que em algum momento realmente buscou pontos de vista contrários, ele os omitiu completamente. Nenhum dos peritos cujas visões são criticadas foi procurado. (…) O que me chama a atenção é que dois jornalistas tenham escolhido um livro apologético para defender, que tenham reclamado por ele não ter recebido atenção na mídia e ainda que enfatizem que seu autor também é jornalista, apesar de sua “pesquisa” desprezar os preceitos mais básicos da profissão. O que deveria assustar e deixar apreensivo qualquer profissional de imprensa é essa curiosa visão do que seria o bom jornalismo. Parece que boas fontes são aquelas que confirmam o que o jornalista pensa."
A priori, Sottomaior parece estar corretíssimo. Mas, analisando suas afirmações com mais atenção, ver-se-á que a parcialidade que ela tenta atribuir a minha pessoa é o que o motiva a acusar-me. Trocando em miúdos, ele me acusa sutilmente de fazer um mau jornalismo por procurar apenas fontes que confirmem o que penso, mas não aceita as fontes que contradizem o que ele acredita. O engenheiro acha absurdo que Borges e eu peçamos a presença de livros como os de Strobel em reportagens sobre Jesus, por condenar o fato de o jornalista ter entrevistado somente cristãos.
a) Os entrevistados são cristãos, mas nem todos são apologetas. Muitos deles gozam de renome internacional na comunidade acadêmica, seja ela cristã ou não. b) Mesmo o livro de Strobel tendo como o princípio a técnica de investigação jornalística, é preciso entender que ele não é parcial, ou apologeta por entrevistar apenas cristãos. Pergunta-se então: por que Strobel não entrevistou céticos e ateus, mas somente cristãos? Simples. Pelo fato de ele ser um ateu. A intenção dele foi desvendar quem era Jesus para os cristãos e se de fato a Bíblia se compatibilizava com o conhecimento científico. Se houvesse parcialidade, seria devido ao ateísmo de Strobel ? crença a qual aceitava e cujas idéias conhecia bem. Sua pesquisa estava impregnada de métodos céticos. Não seria surpresa, portanto, entrevistar apenas cristãos. c) Mesmo que o livro de Strobel fosse apologeta, ele deveria merecer atenção da imprensa se ela se dispusesse a obedecer ao princípio de ouvir os dois lados.
Sottomaior diz que "quando se quer descobrir a verdade, independentemente da tradição, é necessário ouvir os especialistas. De preferência, aqueles que não tenham compromisso prévio, pessoal, profissional, emocional e financeiro com um dos lados". Ele está mais do que certo. O problema é que não só cristãos correm o risco de ter compromisso prévio, mas céticos também. Afinal de contas, céticos também podem ser fundamentalistas. E meu artigo foi escrito para jornalistas que são céticos fundamentalistas. Para esses eu pedi isenção. A fim de descobrir quem foi Jesus, é preciso ouvir especialistas céticos e cristãos. Strobel deveria entrar na categoria "cristãos", mas não entrou. Dessa maneira, Sottomaior pede isenção, mas se irrita quando se fala em dar espaço a teorias que lhe são contrárias. Que isenção seria essa então? "Faço o que falo, mas não faça o que eu faço", seria uma boa frase para definir a postura do engenheiro, que a essas alturas começa a sinalizar sinais de fundamentalismo que não o religioso.
3) "Novaes (…) afirma que “a mídia deveria preocupar-se em contextualizar sua figura e seus ensinamentos e aplicá-las à realidade do homem moderno”. Ou seja, ele defende sem pudores que a imprensa precisa mesmo é propagar idéias cristãs. "
Não há veracidade nessa informação. Não há uma linha sequer em meu artigo incentivando a imprensa a propagar idéias cristãs. Essa frase que Sottomaior destaca em sua crítica encontra-se nos parágrafos finais de meu artigo, como solução para que os erros cometidos pela imprensa (confusão informativa, parcialidade, anti-religiosidade, proclamação de teorias como verdades, sensacionalismo, exibição das "novidades" de Cristo) ao abordar Jesus sejam evitados ou corrigidos.
Apontei a contextualização da figura de Jesus como uma abordagem mais profunda, mais sociocultural, e não religiosa. A contextualização, como exemplifiquei no texto, refere-se a "fazer o leitor entender como a ideologia cristã permeia todos mecanismos da sociedade ocidental, sua relação com a ciência, com a democracia, com a política" e não à apologia religiosa. Como se não bastasse, meu conceito de contextualização da figura de Jesus e de aplicação de seus ensinamentos à realidade do homem moderno foram exemplificados nas reportagens de Veja e IstoÉ.
Escrevi: "Enquanto a IstoÉ relaciona a personalidade de Jesus a uma análise do poder político, com a estética e a arte e com o boom pentecostal, Veja demora-se nas discussões em torno dos conceitos sobre Jesus nos séculos da era cristã, na infiltração dos princípios do cristianismo no cotidiano das civilizações ocidentais e até orientais e na sobrevivência da fé em uma sociedade cética". Não há nenhuma propagação de fé religiosa da Veja e da IstoÉ em contextualizar e aplicar a ideologia cristã à realidade do homem moderno. Tampouco eu fiz isso. O engenheiro cometeu uma gafe interpretativa: subtendeu que as palavras contextualização e aplicação remetiam a uma idéia de evangelização do cristianismo. Sozinhas, talvez elas possam deixar entender isso, mas como parte de minha linha argumentativa, não. Dica: o segredo é analisar todo o contexto da argumentação.
4) "A religião é intrinsecamente oposta à contestação. Não existe conciliação possível entre opostos: a única saída é a dissidência."
Ledo engano. Aqui já se percebe que o estandarte de imparcialidade e isenção que ele fincou à terra já desistiu de permanecer de pé há muito tempo. Em nenhum momento fiz afirmações em meu artigo com tal teor combativo e preconceituoso. Dizer que a religião é oposta à contestação de suas doutrinas envolvendo um aspecto teológico ou filosófico é correto. Imagine se Sottomaior disser hoje que acredita em Deus, mas que deseja permanecer com o status de membro ativo da Sociedade da Terra Redonda, a ONG ateísta a que pertence? Não vão permitir que ele continue lá. Não irão aceitar a contestação. Isso é normal. Agora, dizer que a religião nega a contestação, sendo essa palavra ligada à idéia de pensamento crítico e debate de idéias, é preconceituoso.
Afirmar que a religião nega a confrontação dos opostos, um fundamento do pensamento crítico, é admitir, por conseguinte, que a religião nega o pensamento crítico, o embate de idéias, a discussão. Essa é uma firmação pesada e altamente preconceituosa. Opor-se à contestação é uma característica que infere negação da racionalidade. E atribuir isso aos religiosos é algo extremamente discriminatório e fundamentalista.
A palavra "religião", que o engenheiro usou, remete a milhares de denominações e crenças. Umas não aceitam a contestação no sentido do pensamento crítico, mas outras sim. Novamente, o membro da Sociedade da Terra Redonda erra por generalizar. É a velha história de colocar tudo no mesmo saco. A essa altura, pode-se perceber que a análise da mídia, que é o objetivo do meu artigo, já se perdeu há muito tempo.
5) "No entanto, não é papel da mídia preservar as vacas sagradas de ninguém. (…) O estudante caracteriza como “truculenta” a abordagem das matérias sobre Jesus, mas acho muito difícil que ele também reclame da forma truculenta com que hoje tratamos as religiosas com as quais ele não simpatiza. (…) Se ficássemos cheios de dedos para não deixar a realidade se intrometer nas crenças de ninguém, seria impossível fazer qualquer tipo de jornalismo. (…) Seria impraticável. Na verdade, como todo religioso, Novaes só se opõe à dessacralização das crenças que lhe são sagradas. Mesmo porque, para ele, todas as demais são falsas."
Sottomaior utiliza minhas menções a respeito do incômodo que as pessoas sentem ao ver suas crenças sendo desafiadas para afirmar que a imprensa não tem o dever de preservar as vacas sagradas de ninguém. Mais. Infere-se que essa minha afirmação é uma máscara para esconder meu medo de que minhas crenças sejam desafiadas. Primeiramente, deixei bem claro no texto que a verdade tem de ser dita. Opus-me apenas à maneira como ela é exposta, porque pode revelar a ideologia do jornalista ? o que é antiético. Aí vai minha declaração ipsis litteris: "O problema, obviamente, não está em dizer a verdade. Este é um dever do jornalista. A questão é como e por que dizê-la."
Nunca defendi que se preservem as vacas sagradas de ninguém. Muitas matérias são truculentas, sim, e isso não me impede de achar que matérias ofensivas a outras crenças que não sejam as minhas sejam truculentas também. Repito (e acho que vou repetir um monte de vezes até terminar esse artigo): minha intenção é criticar a postura antiética da imprensa, e não fazer juízos de religião.
Ficar cheios de dedos no jornalismo realmente é demais. Mas respeitar a crença do leitor sem tratá-lo como tolo e praticar a isenção e imparcialidade, não. Isso é o mínimo que deveria ser feito pelo bom jornalismo. Minha preocupação com os leitores que são afrontados em suas crenças não se refere, no artigo, a sua estrutura mental ou emocional. O que está em jogo é a imagem do jornalista e do veículo, que fica manchada pela tendenciosidade e combatividade. Afinal de contas, estou escrevendo para o Observatório da Imprensa, e não para veículos que discutem o embate religião versus ateísmo (que parece mais o caso do engenheiro). Eis aí minha declaração no artigo: "Frases contundentes que atacam o senso comum e as crenças religiosas revelam mais do que a verdade. Evidenciam um ceticismo amargurado, uma postura rebelde contra crenças e dogmas religiosos, o que compromete a imagem de imparcialidade."
Minha defesa da postura adequada para se dizer a verdade em assuntos polêmicos não reflete minha vontade, como disse Sottomaior, de ir contra a dessacralização das idéias que me são sagradas. Antes, é meu propósito de lutar por uma imprensa mais ética e menos parcial e tendenciosa ? que é a mesma proposta dessa tribuna em forma de sítio.
6) "Não tenho a menor intenção de defender a revista Superinteressante. (…) Concordo, por exemplo, com a afirmação de que a Super dá como certezas o que não passa de especulações. Esse é um mal de que padece todo mau jornalismo, inclusive o científico. No entanto, parece uma acusação do roto contra o esfarrapado, já que a religião se baseia não só em especulações como em afirmações que contrariam frontalmente as evidências. Novamente, fica parecendo que só as especulações dos outros é que não podem ser tomadas como certezas."
Essas são algumas das palavras mais equivocadas de Sottomaior. Como se pode perceber, essa discussão chegou à esfera religiosa única e exclusivamente porque Sottomaior não conseguiu entender os propósitos de meu artigo. O integrante da Sociedade da Terra Redonda não entende o fato de minha análise da cobertura da imprensa sobre Jesus ser apenas um contraponto, não uma defesa da religião. Contraponto é contraponto, defesa religiosa é defesa religiosa. O que critico no artigo é essa disposição antidogmática, anti-religiosa do jornalista, e não a falta de religiosidade na abordagem jornalística.
O mais curioso é que Sottomaior acaba sendo vítima de seu próprio veneno. Ele me acusa de ser fundamentalista e de até acreditar "que todas as outras religiões são falsas", mas ele comete o erro de rotular preconceituosamente a religião, que para ele "se baseia não só em especulações como afirmações que contrariam frontalmente as evidências". Acredito que as evidências que são contrariadas sejam as suas crenças. Crenças de que ele não abre mão e que acredita serem a verdade ? a mesma acusação que me fez. Essa afirmação contundente revela que a preocupação dele não estava em criticar minha análise da mídia tanto quanto atacar o que ele entendia como minhas crenças.
7) "É difícil não se perguntar se essa inversão de valores também não foi fomentada pelo Centro Universitário Adventista onde Novaes estuda. De um jeito ou de outro, o que importa é que estão chegando ao mercado jornalistas que não se dão ao luxo de rejeitar o dogmatismo em suas investigações. Sim, sempre houve maus profissionais em todas as áreas, mas temo que esse caso possa representar não uma exceção, mas uma tendência."
O Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo) é uma entidade mantida pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. Não existem apenas alunos adventistas nela. Quase metade pertence a outras denominações, ou ao grupo dos sem-religião, definição que respeita os métodos do censo. A má interpretação da palavra antidogmatismo fez com que Sottomaior novamente generalizasse. Uma vez que o engenheiro acredita que minhas referências à anti-religiosidade dos jornalistas não são apenas um contraponto, mas uma defesa de crenças, ele especula sobre uma "inversão de valores" na instituição de ensino em que estudo. Ou seja, ele pensa que o Unasp pode ter uma filosofia dogmática e, portanto, para ele, distante do pensamento lógico-racional, uma vez que ele sustenta a absurda idéia de que todos os religiosos rejeitam os fundamentos do pensamento crítico.
O Unasp é uma instituição denominacional e adota uma filosofia educacional baseada em uma cosmovisão bíblico-cristã. Não há, entretanto, uma "inversão de valores". O Unasp continua a seguir a orientação pedagógica e curricular do MEC, com relativa autonomia (autonomia essa que é concedida a qualquer instituição).
E aqui dou minha opinião. Se o quesito imparcialidade em temáticas polêmicas é a questão em jogo, eu não trocaria o Unasp por qualquer universidade, mesmo as mais renomadas. Aqui estudamos os temas sob a ótica secular e também cristã. Por exemplo, enquanto boa parte das universidades apega-se somente ao evolucionismo ao tratar da origem da vida, o Unasp estuda as duas hipóteses: a evolucionista e a criacionista. Universitários que não estudam todas as teorias de um mesmo tema serão fadados à parcialidade, mesmo que se sintam protegidos pelo senso comum ou sintam-se confortados pela sensação de deterem a verdade. Não falo de estar certo ou errado, falo de imparcialidade, de ouvir os dois lados. E de como isso é importante para um jornalista.
8) "Novaes reforça sua cruzada pelo dogmatismo ao acusar a mídia de montar “um verdadeiro mosaico de informações e teorias que antes trazem descrédito a crenças e dogmas religiosos do que estabelecem informações claras ao leitor sobre quem é Jesus” e de “despejar informações incomuns sobre Jesus ao leitor comum”.Caso se estivesse tratando de temas consensuais e simples, uma boa matéria deveria estabelecer informações claras e seguras. Mas não é o caso."
Não faço uma cruzada pelo dogmatismo. Ele justifica essa caracterização de minha pessoa em sua interpretação da palavra antidogmatismo. Obviamente, o jornalista precisa libertar-se de dogmas em busca da verdade. Ele precisa ter mente aberta. Concordo plenamente. Mas minha intenção é combater a disposição antidogmática como reveladora da tendenciosidade e não como negação do pensamento crítico ? que é a inferência de sua crítica.
No meu artigo, a palavra antidogmática e anti-religiosa está ligada, sem exceções, a idéia de disposição preconceituosa e parcial da imprensa, nunca à negação da verdade ou do pensamento crítico ou mesmo de repúdio a todo e qualquer ataque à religião. Essa última interpretação é fruto do estereótipo que o engenheiro cria de minhas idéias e da má-interpretação do meu artigo.
A crítica que faço ao mosaico de informações sobre Jesus, como pôde se apreender claramente no texto, está ligada às idéias de Leão Serva sobre a confusão informativa, e nada têm a ver com dogmas que devam ser defendidos. O segredo é seguir o contexto, e não perder na argumentação. Fácil para o leitor atento e aberto, difícil para o preconceituoso.
Se quanto mais se informa menos se informa, quanto mais informações espetaculares e excêntricas sobre Jesus a imprensa despejar sobre o leitor mais ele terá dificuldades em construir uma imagem de Jesus. A disposição anti-religiosa da imprensa ao noticiar "novidades" extravagantes e efêmeras sobre Cristo pode provocar no leitor o abandono de suas crenças antigas, e não a formação de uma imagem mais veraz sobre Jesus, que é o que as reportagens geralmente propõem.
A confusão informativa pode causar o abandono de dogmas ? essa é mais uma evidência da disposição anti-religiosa da imprensa. Os jornalistas devem escrever não para desbaratar as crenças dos leitores, mas para informá-los da verdade. Se, depois da exposição da verdade, um dogma é deixado pelo leitor, sem problemas. O problema não está em abandonar a crença antiga, mas sim em oferecer algo que não se pode dar. Explico. Se na reportagem promete-se relatar a verdadeira história de Jesus na manchete ou no lead, se a matéria é do tipo "O que é mito e o que é fato na história de Jesus", então que se cumpra o prometido. O que for aquém disso é propaganda enganosa. Nesse sentido, deve-se, sim, estabelecer informações claras e seguras para temas que não são consensuais simplesmente por um único motivo: porque o veículo prometeu. Caso o veículo não prometa, então, aí sim, concordo com Sottomaior. A solução é não prometer.
9) "O que Novaes teme? A promoção de ?uma legítima confusão de informações?, a criação de ?um mosaico de estereótipos indefinidos na mente do leitor?, e que o leitor fique ?cada vez mais confuso em relação à pessoa de Jesus?, sem saber ?quem é Jesus de fato?. (…) A dúvida baseada na aquisição de novas informações é extremamente saudável, porque obriga a reflexão. As certezas só se justificam caso surjam do confronto entre diferentes idéias. Mas não é isso que pensa o dogmático. É óbvio que a preferência do apologista, assim como a do ditador e a do manipulador, é apresentar de uma versão única e simples, que convença todo mundo e que não deixe ninguém com pensamentos ociosos. Dúvida é coisa do demônio ou de subversivos. (…) Segundo o pensamento religioso, só a certeza é um resultado admissível. Mas somente a religião tem certezas ? e sem evidências."
Sottomaior deve ter pulado alguns parágrafos de meu texto na parte intitulada "Prós do escândalo", para dizer que eu não aceito a dúvida. Nessa seção eu disse que mesmo essa abordagem especulativa sobre Jesus tinha lá suas vantagens: "Um dos maiores benefícios do escândalo é que a polêmica e o escândalo estimulam o debate de idéias, a permuta do conhecimento. A imprensa educa, pois incentiva o diálogo e a visão aberta. Como diz Wainberg, Campos e Behs: ?Acorda mentes adormecidas como que narcotizadas pelo que é usual. Afinal, é a diferença que é percebida. É o estranho que faz os olhos verem por vezes o que já estava a nossa disposição mas era desconsiderado.? Isso só pode ser obtido se a dúvida do choque de idéias ocorre."
Mais uma vez, Sottomaior confunde a teoria da confusão informativa, que prega ser a dúvida um produto do acúmulo de informações, com a dúvida ligada ao pensamento crítico. Obviamente, o conflito de idéias e a dúvida reflexiva são saudáveis para a busca e a obtenção da verdade. A intenção, ao longo de todo o artigo, é simplesmente mostrar que o bombardeio de informações está mais confundindo do que esclarecendo, e criando mais perguntas do que respondendo. Dessa forma, a dúvida é nociva, pois não é criada pelo combate de idéias e reflexão, mas pela confusão informativa. Mas o engenheiro não consegue entender isso. Para ele, sou contra o pensamento crítico e a dúvida reflexiva. Ele, lamentavelmente, se condena ao me comparar a um ditador ou manipulador. Sottomaior não se satisfaz em deturpar o propósito de meu artigo. È necessário alfinetar as crenças que são contrárias à dele. Os resultados são lamentáveis e preconceituosas declarações do cético como "(Novaes acredita que a) dúvida é coisa do demônio".
10) "Por fim, não posso deixar de comentar a apologética mais explícita. Para Novaes, os autores dos evangelhos canônicos foram discípulos de Jesus ou testemunhas da época. Essa é a visão tradicional cristã conservadora, mas o jornalista não menciona que todos os evangelhos são originalmente anônimos. Muitos cristãos admitem que Marcos é posterior ao ano 70, e Mateus e Lucas foram escritos depois dos anos 90 e 95, respectivamente. No ano 90, quem tivesse somente 15 anos à época da morte de Jesus já contaria com 72 anos, uma idade extremamente improvável para a época."
A apologética mais explícita a qual Sottomaior se refere não é nada mais, nada menos do que o somatório de um consenso entre muitos especialistas e descobertas mais recentes sobre a pessoa de Jesus. Ele critica as informações que dou sobre os livros canôocirc;nicos, pois está baseado em visão "tradicional anti-religiosa conservadora" ? que é rejeitar a canonicidade dos evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas). Para isso, ele afirma que os evangelhos são anônimos, mas não cita a fonte. Falar é fácil, mas dar referências é que são elas.
Sottomaior declara ainda que "muitos cristãos" admitem que Mateus e Lucas foram escritos depois dos anos 90 d.C. Usar a palavra "muitos" é mais fácil ainda, uma vez que "muitos" cristãos também acreditam no contrário. Mas eu cito uma pequena parcela desses teólogos renomados que acreditam na escrita dos livros bíblicos mencionados antes de 90 d.C. O livro An Exegetical Bibliography of the New Testament ? Luke and Acts, do teólogo G. Wagner; os vários livros de J. H. Cadbury sobre Lucas e Atos, Das Messiasgesheimnis in den Evangelium, de W. Wrede, e o mais recente (da década de 90 para cá): Matthew D?Ancona e E.D. Thiede, no livro Eyewitness to Jesus.
Para esses autores, a datação tardia dos evangelhos sinópticos é incoerente. Uma das teorias que explicariam essa hipótese, por exemplo, é que o evangelho de Lucas teria sido escrito para a defesa de Paulo em Roma. O estilo do livro é bem parecido com os escritos de tribunais romanos da época. Dessa forma, Lucas deveria ter sido escrito antes dos anos 70 ? pois a defesa de Paulo aconteceu nessa época ?, o que impede a feitura do livro por volta do ano 90.
O próprio Emile Puech, que a revista Superinteressante citou como um dos maiores historiadores do cristianismo numa das reportagens analisadas por meu artigo, apresenta estudos que concordam em que os livros mencionados foram escritos por volta ou antes dos anos 70. Uma obra recente que apóia essa defesa e desbarata as colocações de Sottomaior é o livro Um desconhecido Galileu, do doutor em Teologia Rodrigo Silva, citado na matéria "A Ciência encontra a Bíblia", na edição de maio da revista Terra. Pode-se ver, portanto, que a apologética foi clara pelo lado de Sottomaior, cuja visão, repito, é a visão "tradicional anti-religiosa conservadora".
Mais outras afirmações equivocadas relacionadas à teologia foram lançadas pelo engenheiro, mas eu abordarei apenas mais uma, por exigirem muito mais páginas de respostas. Propositadamente, deixei as primeiras críticas de Sottomaior para responder ao fim do texto, por achar que representam o cúmulo da parcialidade, "dogmatismo cético", preconceito e fundamentalismo por parte do engenheiro, e por achar também que foram elas que motivaram suas acusações. Vamos a elas.
11) "Os adventistas são evangélicos que têm como crença central o retorno iminente de Jesus. Geralmente são fundamentalistas ? isto é, crêem na inerrância e literalidade da Bíblia ? e como resultado, são também criacionistas. (…) A Igreja Adventista do Sétimo Dia entende que seu surgimento “no tempo do fim” foi especificamente definido pela profecia bíblica. É de se esperar que eles sejam especialmente sensíveis ao tratamento que Jesus recebe da mídia, e talvez até encaixem sua reclamação em um esquema maior de sinal do fim dos tempos."
Creio que após a má interpretação dos propósitos de meu artigo, o conceito errôneo de Sottomaior sobre os Adventistas do Sétimo Dia foi o que o motivou a escrever a dura palavra ? fundamentalista. Para ele, os adventistas crêem na inerrância e na literalidade da Bíblia, por isso são fundamentalistas. A definição de Sottomaior é digna dos conceitos estereotipados e superficiais de um guia de curiosos sobre religiões, mas está longe se ser veraz e confiável. Novamente, é preciso citar fontes. Vamos a elas.
Falta o status
Segundo o livro de George Knight, uma das maiores autoridades na história do adventismo no mundo, Uma igreja mundial ? Uma breve história dos adventistas do sétimo dia, segundo o livro oficial de doutrinas da Igreja Adventista do Sétimo dia ? Nisto cremos ?, e mesmo conforme a melhor obra sobre a história dos adventistas ? Light Bearers to the Remnant, de Richard W. Scharwz, os adventistas não crêem na inerrância e literalidade da Bíblia. Se toda a Bíblia fosse interpretada literalmente os adventistas teriam que crer na literalidade de animais apocalípticos e simbologias proféticas, o que chega a ser tragicômico. Não me espanta ver que Sottomaior chama os adventistas de fundamentalistas ? até eu chamaria se os conceituasse como o engenheiro o faz. Além disso, ele os define como crendo na inerrância da Bíblia. Mais um erro. Os adventistas crêem na infalibilidade dos escritos na esfera da salvação, mas não inerrante no sentido radical de estar acima de qualquer possibilidade de erros ou dificuldades factuais e gramaticais.
Após toda essa explanação é meu desejo que muitos colegas de profissão, e até Sottomaior, possam conscientizar-se da problemática da anti-religiosidade e do ceticismo dogmático presente nos veículos de comunicação. Assim como expressar a religiosidade nas linhas de uma reportagem é uma transgressão grave da ética jornalística, o contrário também o é. Há de se respeitar ambas as versões de um tema na investigação jornalística. Mais uma vez esclareço: apresentei apenas um contraponto ao analisar a abordagem da mídia sobre Jesus. Em meu artigo não há uma apologia à religião, diferente do texto de Sottomaior, que é um constante chicotear na religião, nas crenças, no Unasp, nos próprios adventistas, em Michelson Borges e obviamente em minha pessoa.
No fim de sua crítica, Sottomaior pede a Zeus que o proteja. Eu peço aos jornalistas mesmo: lutemos em prol da isenção jornalística, por mais que ela pareça utópica. Abandonemos o que chamo de fundamentalismo "redondo" ? a disposição cética radical que interfere na atividade jornalística por estereotipar preconceituosamente os religiosos.
Esse termo ? fundamentalismo "redondo" ? é uma homenagem bem-humorada à Sociedade da Terra Redonda, entidade a qual Daniel Sottomaior pertence, pois por meio de seu representante no OI constatei que minha análise da anti-religiosidade na abordagem da imprensa sobre Jesus tem mais força e coerência do que eu mesmo havia imaginado e, é claro, por ver em Sottomaior o cumprimento exato do meu discurso. Minto. Exato, não. Falta a ele o status de jornalista.
(*) Estudante de Jornalismo da Unasp