Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo e pensamento político

HIPÓLITO E SEU TEMPO

João Pedro Rosa Ferreira (*)

“Nenhum benefício (nem talvez a vida) compensa a liberdade.” Correio Braziliense, jun. 1809, p. 639.

“Em ser feliz é que consiste a verdadeira liberdade.” Correio Braziliense, dez. 1822, p. 589.

Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça foi um homem de pensamento e acção. Defensor dos ideais de liberdade e progresso que o levaram a aderir à Maçonaria durante uma viagem a Filadélfia, nos Estados Unidos, e a acamaradar com Francisco de Miranda e Simon Bolívar, em Londres, foi vítima do despotismo e sofreu o cárcere às mãos da Inquisição, em Lisboa, durante três anos, de 1802 a 1805.

O duque de Sussex, Augusto Frederico, filho do rei Jorge III de Inglaterra, que muito provavelmente o auxiliou na fuga da prisão do Santo Ofício, tornou-se seu protector durante o exílio em Londres, que se prolongou por dezoito anos, até à morte de Hipólito da Costa, a 11 de setembro de 1823. Neste contexto, é natural que o redactor do Correio Braziliense tenha adoptado os valores do sistema constitucional inglês e o seu liberalismo tenha a marca da moderação, do gradualismo, como método preferencial de evolução política.

Ao longo dos seus 175 números, publicados ininterruptamente entre junho de 1808 e dezembro de 1822, o periódico revela-se um órgão de difusão de uma ideologia ? o liberalismo, tributário do iluminismo setecentista e corporizado no modelo parlamentar assente na separação e equilíbrio dos poderes e fundado no consentimento dos governados. Tal ideologia de emancipação fundamenta e vindica os interesses imediatos de um grupo social, a burguesia comercial, que o redactor classifica como “a classe de cidadãos mais úteis ao governo e mais interessantes ao Estado do Brasil nas circunstâncias actuais” [CB, abr. 1811: 435].

Ao mesmo tempo, em muitas edições do Correio é
patente uma sensibilidade para com a situação das “classes inferiores”
e a tónica colocada na possibilidade de “melhoramento” do seu estado,
designadamente através da generalização do ensino, na linha
do optimismo herdado das Luzes. Testemunham essa sensibilidade os repetidos
anúncios a obras de pendor filantrópico publicados na secção
Literatura e Ciências e o acompanhamento da polémica sobre as Poor
Laws
no Parlamento e na imprensa britânicos. Exemplo dessa preocupação
é a profunda “Análise do folheto intitulado A New View of Society,
ou Ensaio sobre o princípio da formação do carácter
humano e da aplicação do princípio à prática,
por um dos juízes de paz de S. M. no condado de Lanark, Londres, 1813″
[CB, mar. 1813: 295-99; abr. 1813: 426-30]. [Outro exemplo é o
entusiástico acolhimento, nas páginas do Correio, do sistema
de educação elementar de Lancaster e Bell, explicado minuciosamente
em sucessivos artigos, de abril a outubro de 1816 [cf. CB (95): 346-50;
(96): 460-67; (97): 591-98; (98): 58-62; (99): 205-09; (100): 317-21; (101):
468-72].] Trata-se da célebre obra de Robert Owen, que Hipólito
integra na corrente filantropista, elogiando a sua proposta de reforma social
através da reforma da educação. O interesse por este problema
vinha de longe: enquanto membro da Junta da Impressão Régia, em
1801, traduzira o filantropo e reformador Rumford. [Ensayos politicos, economicos
e philosophicos por Benjamin, conde de Rumford… traduzido do vulgar por Hippolyto
José da Costa Pereira
(2 tomos. Lisboa: Regia Oficina Tipográfica,
1801-02).]

Acção

O leitor de hoje não poderá perder de vista a dimensão fundamentalmente prática da doutrina veiculada pelo Correio, expressa por Hipólito da Costa na introdução ao primeiro número do periódico:

O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar em benefício da mesma os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte, ou a educação lhe prestou. O indivíduo que abrange o bem geral de uma sociedade vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha tiram das trevas, ou da ilusão, aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. [CB, jun. 1808 (1): 3]

O que se pretendia era orientar de um modo inequívoco a acção transformadora de um real bloqueado ? o absolutismo monárquico opressor da sociedade luso-brasileira nas duas primeiras décadas do século XIX ? convertendo-o, pelo menos, num quotidiano suportável. O raciocínio subjacente era, neste aspecto, evidentemente tributário da corrente utilitarista. Não foi fácil a tarefa do doutrinador. Por um lado, era confrontado com o conservadorismo instalado dos “egoístas defensores do despotismo”. Por outro lado, opunha-se-lhe o radicalismo apressadamente bebido em abstracções visionárias de um ordenamento absolutamente racional do real. Hipólito da Costa procurou transmitir aos seus leitores a ideia de que esta última pretensão era inexequível, dada a manifesta impossibilidade de o império exclusivo da razão se afirmar perante as paixões que, humanamente, a submergem. Contemporâneo da Revolução Francesa, Hipólito fora testemunha de como o “democratismo” conduzira ao Terror jacobino e à tirania napoleónica, cujo perigo se manteve, durante os primeiros oito anos de publicação do Correio, uma ameaça real.

O que estava ao alcance dos homens concretos era, nas próprias palavras do Braziliense, um “meio termo”, o “justo equilíbrio” entre as atitudes extremas, a contra-revolucionária e a radical. Procurava-se atingir o acessível: “Quando se trata do melhoramento de um governo, não é a sua bondade absoluta que se deve tomar em consideração; mas sim a sua bondade relativa, ou por outros termos, o grau de felicidade que a mudança pode trazer consigo” [CB, out. 1812 (53): 675].

Porém, na questão fundamental, não havia dúvidas nem hesitações. Em fevereiro de 1822, Hipólito da Costa reage à acusação de “corcunda” (apodo com que, em tom pejorativo, os liberais designavam os partidários do sistema absolutista) lançada contra o Correio, devido a críticas feitas ao novo governo: “Não suponham que nós, notando defeitos no actual sistema, queremos, nem directa nem indirectamente, aprovar o sistema passado: esse era tão mau, que nada de mal que aconteça agora é capaz de o igualar […] é claro que um sistema de governo constitucional, ainda que mau, é preferível a um sistema despótico aonde não há outra regra senão na vontade sempre variável do déspota ou déspotas que governam” [CB, fev. 1822 (165): 172-73].

É evidente, nas páginas do Correio, alguma perturbação provocada pelo esforço de matizar o optimismo absolutizante das Luzes com as cores, menos chocantes, do empirismo, este mais exigente no que respeita à fidelidade que os retratos traçam do modelo:

É verdade que os homens de poucos ou nenhuns conhecimentos seguem a rotina de seus costumes: desta gente se compõe a maioridade em todas as nações. É também verdade que os homens iluminados acham muitas vezes que lhes é necessário seguir a corrente dos costumes da nação aonde vivem, quer os aprovem, quer não. É igualmente certo que muitos legisladores iluminados têm feito leis, não em conformidade de suas ideias justas e aperfeiçoadas, mas em contemplação dos costumes dos povos para quem legislaram, e esta condescendência, quando bem regulada, tem merecido a aprovação dos sábios, pela óbvia razão de que nenhuma legislação, por mais perfeita que seja, pode existir, se estiver em directa oposição aos costumes dos povos a que é destinada. Ao diante desenvolveremos mais estas noções, mas estas condescendências dos homens sábios com os costumes da maioridade da nação não provam que se siga o hábito a despeito da razão: os rotineiros não são homens iluminados, seguem o costume porque mais não entendem, e os sábios conformam-se como costume, porque se não podem opor à multidão. [CB, jun. 1819 (133): pp. 620-21]

Está aqui presente a lição de Hume, embora o nome do filósofo não seja citado, o que se repete, aliás, na recensão às Prelecções filosóficas sobre a teoria do discurso e da linguagem, a estética e diceósina e a cosmologia, de Silvestre Pinheiro Ferreira, onde Hipólito menciona Descartes, Locke e Condillac e faz referências à “combinação de ideias”, sem citar o teorizador do conceito [CB, out. 1814 (77)].

No pensamento político de Hipólito da Costa, a noção de harmonia social funciona como pedra angular. A Constituição será o garante de que os diversos factores concorrentes para essa harmonia poderão evoluir, livres dos constrangimentos de uma velha ordem antinatural, mas também sem as imposições de uma novíssima ordem que, por renegar toda a experiência historicamente acumulada, se torna objectivamente anti-social.

Aqui temos, pois, como se combina a liberdade prática do indivíduo com a obediência às leis, e este acordo tão desejado, esta harmonia social garantida pela Constituição inglesa não foi o efeito de uma só lei minutada teoricamente no gabinete de um político: foi sim o resultado de muitas leis sucessivas que a experiência sugeriu pouco a pouco, e que um direito consuetudinário consolidou no espírito dos povos e arreigou na nação ao ponto de fazer já parte do carácter nacional. [CB, dez. 1822 (175): 606]

Nesta perspectiva, urgia estabelecer o sistema político por forma a respeitar a representatividade dos factores daquela harmonia ? fossem eles da ordem dos interesses e prestígio dos corpos sociais, fossem da ordem das ideias que atravessavam transversalmente esses corpos. E, sobretudo, impunha-se não agir para com eles de modo a constituí-los em factores de desarmonia. O Correio manifesta repetidamente apreço pelo modelo parlamentar de representação, que permite a solução pacífica das conflitualidades naturalmente resultantes de interesses divergentes ou mesmo antagónicos. A composição do corpo legislativo francês em 1819, eleito na vigência da Carta constitucional de Luís XVIII, serve de pretexto a mais um discurso de pedagogia liberal ? que, não fora a base censitária do colégio eleitoral, poderíamos sem esforço qualificar de democrática:

Lamentam alguns que nas Câmaras existam pessoas destes extremos opostos partidos, mas a essa mesma circunstância atribuímos nós os melhoramentos que se têm feito na legislação da França. As mais extravagantes opiniões, quando sustentadas por muitos indivíduos da nação, têm o direito de serem representadas e discutidas na legislatura. Se as opiniões extravagantes não acham este meio legal de se explicarem, procuram fazê-lo por outro modo, solapando o governo. Essas opiniões encontradas em público, refutadas de maneira legal, cessam de ser perigosas: todo o seu mal consiste em não serem conhecidas e rebatidas. [CB, jul. 1819 (134): 100]

A especificidade da sociedade luso-brasileira, a sua estrutura socio-económica e o peso de toda a sorte de condicionalismos materiais e mentais determinaram a proposta constitucional do Correio Braziliense. O mesmo não se pode dizer das propostas ideologicamente extremadas que caracterizaram os debates nas Cortes vintistas de Lisboa, nomeadamente a que mereceu a aprovação da maioria dos deputados em 1822. Qualquer proposta de reforma, para aspirar à exequibilidade, não podia ignorar o ónus dos grupos sociais privilegiados, designadamente a nobreza. A opinião de Hipólito da Costa sobre a “aristocracia rançosa” não podia ser mais negativa [CB, set. 1820 (148): 342]. Tratava-se, para ele, de uma “oligarquia degenerada” [CB, mar. 1809 (10): 263], desprestigiada ao longo dos séculos por manifestações de egoísmo, corrupção e ignorância, coroadas pela baixeza final da traição de Baiona, quando uma delegação de Grandes do Reino fora pedir a Napoleão que nomeasse um rei para Portugal.

Não obstante, havia que dar-lhe uma representação condigna no sistema constitucional, congraçando-a na grande família nacional. As observações expendidas acerca da Constituição espanhola de Cádis, restaurada em 1820 após a revolução liderada pelo general Rafael de Riego e que marcou o início do Triénio Liberal, valiam como um aviso para a iminente abertura da questão em Portugal: “Esta nobreza desprezada, e ao mesmo tempo conservada pela Constituição, é um cancro que lhe fica encravado e que lhe roerá as entranhas. Outra coisa seria se essa nobreza fosse constituída em uma Casa de Pares nas Cortes, como o é no Parlamento de Inglaterra ou nas Câmaras em França” [CB, abr. 1820 (143): 448].

O debate em torno do unicameralismo ou bicameralismo como modelos parlamentares mais adequados à representação nacional foi um dos temas candentes nas reuniões do Palácio das Necessidades, sede das Cortes constituintes, em Lisboa. Sabe-se que alguns dos expoentes mais lúcidos do sector gradualista do vintismo tinham plena consciência da necessidade de obter um compromisso ? e de que a inclusão de uma segunda câmara naquela que ainda poderia ser a Constituição do Reino Unido de Portugal e do Brasil poderia corporizá-lo. [Cf. Graça e José Sebastião da Silva Dias, Os primórdios da Maçonaria em Portugal (Lisboa: INIC, 1980), vol. 1, t. 2, pp. 760-61.] A actuação quotidiana dos constituintes estava, porém, sujeita a pressões dificilmente suportáveis e, por mais de uma vez, a manobra táctica se revelou imperiosa para assegurar a sobrevivência política imediata. [O testemunho do deputado Xavier de Araújo é elucidativo do que se passava na capital portuguesa durante o escaldante período vintista: “[…] voltando agora a Fernandes Tomás; ele era do voto de se decretarem duas câmaras, e disse a José Joaquim de Moura, deputado como ele, e apologista apaixonado das doutrinas francesas de 1789: ? Moura, a questão é séria, e devemos meditar nela; nós somos reconhecidos pelas potências da Europa logo que decretemos as duas câmaras, e então parece-me que as votemos. ? Moura exclamou ? Tu não sabes o que por aí vai por essa cidade; no dia em que votarmos as duas câmaras somos precipitados da janela abaixo do palácio das Cortes e perdemos toda a nossa popularidade ? Isto é o que mais feria a Moura, muito ávido de aplausos populares” (Xavier de Araújo, Revelações e memórias para a história da Revolução de 24 de Agosto de 1820 e de 15 de setembro do mesmo ano [Lisboa: 1846], pp. 81-82).]

Livre dos constrangimentos dos demagogos de Lisboa, como livre estivera da mordaça absolutista antes do 24 de agosto de 1820, Hipólito da Costa apresenta, em setembro de 1822 ? antes, pois, de lhe chegar a notícia da declaração da independência, com que encerrará o jornal em dezembro daquele ano ?, o seu próprio “Projecto de Constituição Política do Brasil” [CB, set. 1822 (172): 375-84]. [Reproduzido na íntegra em João Pedro Rosa Ferreira, O jornalismo na emigração. Ideologia e política no Correio Braziliense, 1808-1822 (Lisboa: INIC, 1992), pp. 191-200.] Fá-lo com o intuito declarado de não deixar “alucinar ou perverter” os brasileiros ? ou, na sua nomenclatura, brasilienses, os naturais do Brasil (distinguindo-os dos “brasilianos”, os nativos, e dos “brasileiros”, os originários de Portugal) ? pela “monstruosa Constituição de Portugal”.

Estamos, obviamente, numa fase avançada da ruptura de Hipólito com o rumo tomado pelo processo português. Sabendo tratar-se de uma questão polémica, procura fundamentar exaustivamente a sua proposta:

[…] nos princípios gerais que neste esboço de Constituição se propõem, só há um que possa admitir dúvida […] Falamos da introdução de duas Câmaras no Poder Legislativo, princípio que se rejeitou em Portugal por quererem ali imitar o exemplo de Espanha […] Nenhum desses Tomás, Mouras, Borges Carneiro, etc. de Lisboa, pretenderá ser maior advogado da liberdade do que um abade du Praedt, um Lanjuinais, um Adams, um Washington, um Franklin; no entanto, todos estes grandes homens têm advogado a instituição de duas Câmaras, com mais ou menos modificações […] Dirão agora que todos esses heróis eram emissários da Santa Aliança? [CB, set. 1822 (172): 373-74]

Elemento determinante para a exequibilidade do sistema, tanto a nível interno como externo, emergia dos projectos constitucionais em confronto, cercada de ambiguidades, a figura do rei. Mesmo os mais radicais cedo se aperceberam de que a revolução deveu a sobrevivência à declaração explícita de fidelidade à dinastia de Bragança, feita logo nas primeiras proclamações da Junta do Porto, em 24 de agosto de 1820.

Com excepção da Espanha do Triénio Liberal, o novo regime não logrou obter o reconhecimento oficial das principais potências. Não obstante, o respeito, mesmo que meramente formal, pelas prerrogativas do monarca valeu ao Estado português a observância do artigo do Tratado de Amizade e Aliança de 1810 pelo qual a Inglaterra garantia a sua integridade contra os inimigos externos. A isso se terá ficado a dever o facto de a contra-revolução ter triunfado, sim, mas às mãos de nacionais ? e não, como em Espanha, dos “filhos de São Luís”, braço armado da reaccionária Santa Aliança.

O Correio procurou, desde o espoletar do processo, chamar à razão os exaltados e acalmar a inviável efervescência republicana: “Será moda falar dos reis com menos respeito, mas essa moda tem custado caro a muitas nações” [CB, abr. 1821 (155): 484]. Reforça a mesma ideia depois do regresso de d. João VI do Rio de Janeiro, em 1821. Congratula-se com as demonstrações da adesão voluntária do rei à nova situação, nomeadamente ao jurar as Bases da Constituição (aprovadas em março de 1821), com o que desautorizava as manobras dos contra-revolucionários e garantia o regime no concerto das nações [CB, jul. 1821 (158): 64-67].

Mas o idílio constitucional não seria prolongado. O Braziliense denuncia nos seus últimos números o estado de coacção do rei, que apresenta como uma personagem sem vontade livre, sob o domínio das Cortes. O esvaziamento das competências do soberano ? visível na consagração constitucional do veto meramente suspensivo ? é, para Hipólito da Costa, não só condenável do ponto de vista político mas também uma incoerência em termos lógicos, na perspectiva do sistema adoptado. Este valia sobretudo por uma funcionalidade, pela sua dimensão útil. Se se retirava ao sistema monárquico-representativo a componente monárquica, embora mantendo formalmente o rei, este ficava sem qualquer capacidade de intervenção eficaz e o sistema entrava em desequilíbrio: “Se a sanção do rei é mera formalidade, fica inútil, e tudo quanto é formalidade inútil na Constituição é pernicioso […] não é este o meio de conservar a forma monárquico-democrática […] Em uma palavra, quando as Cortes puderem fazer tudo, a forma de governo é puramente democrático-representativa, e então o rei será um elemento desnecessário na Constituição” [CB, dez. 1821 (163): 529].

O “Projecto de Constituição Política do Brasil” apresentado por Hipólito da Costa prevê um papel activo para o rei. Além de depositário principal do poder Executivo (artigos 53 a 61), participa com um peso determinante no Legislativo: “O poder Legislativo dependerá de três autoridades: 1. O rei; 2. O Conselho de Estado; 3. Os representantes” (artigo 4). Cabe-lhe também nomear os primeiros membros do Conselho de Estado, designação proposta para a Câmara alta do Parlamento (artigo 11) [à semelhança do Senado dos Estados Unidos, o projecto de Hipólito da Costa prevê que o Conselho de Estado seja composto “do dobro dos membros, quantas forem as províncias” (artigo 10); o nome atribuído à Câmara baixa é igualmente revelador do modelo que o inspirou: Casa dos Representantes], e ainda sancionar ou rejeitar as leis ? que, para lhe serem apresentadas, carecem da aprovação sucessiva dos representantes e do Conselho de Estado (artigos 25 a 33). Em caso de rejeição, “a matéria se não tornará a propor na mesma sessão” (artigo 35). Está longe o republicanismo envergonhado da Constituição portuguesa de 23 de setembro de 1822, que interpretava o silêncio do rei como sanção (artigo 114), e a conseguia automaticamente em caso de segunda aprovação na Câmara única das Cortes (artigo 110). É ainda prerrogativa real a comutação ou perdão das penas, excepção feita aos processos levantados aos ministros, que respondem perante o Conselho de Estado, mediante acusação dos deputados eleitos da Câmara baixa (artigos 60 e 61).

Fica patente neste projecto o acolhimento dado por Hipólito da Costa ao conceito de poder real, teorizado por Benjamin Constant ? e que viria ter consagração explícita na Constituição do Império do Brasil de 1824 e na Carta constitucional portuguesa de 1826, com o nome de poder Moderador. [“On s?étonnera que je distingue le pouvoir royal du pouvoir éxécutif. Cette distinction, toujours méconnue, est très importante: elle est, peut-être, la clef de toute organisation politique“, Benjamin Constant, Cours de politique constitutionnelle (Bruxelas: 1837), p. 1. Sobre a influência de Constant no projecto de Hipólito e nos textos constitucionais brasileiro e português, ver Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o Correio Brasiliense (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957), vol. 2, pp. 565-80.]

O pensamento político de Hipólito da Costa, tal como vai sendo enunciado ao longo dos anos de publicação do Correio Braziliense, aponta para um conjunto de princípios gerais que, de acordo com a filosofia subjacente, visam “cumprir” o objectivo que os homens se propuseram ao organizarem-se em sociedade. O que lhe importa é ver garantida, em primeiro lugar, a liberdade individual, “porque nenhum benefício (nem talvez a vida) compensa a liberdade” [CB, jun. 1808 (13): 639]. Ela é o “primeiro bem”, mas para a poder gozar, há que firmar “a segurança pessoal dos indivíduos […] o primeiro dever do governo, o fim primário de sua instituição” [CB, abr. 1813 (59): 533-34].

Pelas páginas do Correio perpassa uma tal autenticidade na defesa destes valores, que não será demasiado sublinhar a dimensão ética da reforma preconizada por Hipólito. Uma manifestação desta constância nos princípios é a associação da ideia de virtude cívica à virtude moral ? e de ambas a uma postura crítica face ao poder: “O melhor dos soberanos, se tem a infelicidade de governar uma nação de aduladores, não poderá fazer florentes os seus Estados, nem conferir aos súbditos aquela liberdade racionável, que todos os homens têm direito a exercitar, mas que a sábia Providência não deixa gozar senão às nações que praticam as virtudes cívicas, as quais exornam o cidadão, assim como as virtudes morais condecoram o pai de famílias” [CB, mar. 1810 (22): 314].

O mesmo cuidado com a justificação perante a “própria consciência” é evidenciado em abril de 1822, quando apresenta os últimos argumentos em prol da união do Brasil a Portugal: “Se o Brasil obrar de outra maneira [i.e., declarar já a independência], não será justificável, nem aos olhos das outras nações, nem aos da posteridade e, o que mais é, não se justificarão [sic] em sua própria consciência pelos princípios da justiça, o que é consideração da mais transcendente importância para a felicidade nacional, assim como o é para a individual” [CB, abr. 1822 (167): 442] ? em breve tais argumentos seriam superados pelas circunstâncias. [Sobre o conceito de liberdade ética e o seu papel na praxis liberal, ver Ernst Bloch, Droit naturel et dignité humaine (Paris: Payot, 1976), pp. 158-74; e também Jurgen Habermas, La reconstrucción del materialismo dialéctico (Madrid: Taurus, 1983), pp. 28-29.]

A escravatura fora abolida no Reino de Portugal durante o consulado do marquês de Pombal, por alvará de 2 de abril de 1761 ? medida humanista tomada, curiosamente, no mesmo ano em que foi executada em auto-da-fé a última vítima mortal da Inquisição, o jesuíta padre Malagrida, por ter atribuido o terramoto de 1755 a castigo divino. Também sob Pombal foram declarados inteiramente livres os nativos do Brasil e concedidos aos naturais da Índia direitos iguais aos portugueses da Metrópole (em 15 de janeiro de 1774, precisamente um mês e dez dias antes do nascimento de Hipólito da Costa). No entanto, o tráfico e a escravatura mantiveram-se nos domínios portugueses.

O Correio Braziliense não tem a mais pequena dúvida sobre esta questão. A escravatura é um mal, condenável a todos os títulos. Di-lo e repete-o em sucessivos números do jornal. Mas, consciente da importância do trabalho escravo na economia brasileira, Hipólito aborda o problema com pinças. De início, e a exemplo dos founding fathers da democracia norte-americana, condescende em guardar o problema na gaveta ? veja-se a “Análise do folheto sobre o comércio franco do Brasil”, em julho de 1809: “[…] o autor faz voltar os olhos para o comércio da África; seria melhor não falar nisto […] seguindo o conselho, guardo também nisto o silêncio. Se o governo do Brasil remediar este mal, os filantropos lhe perdoarão todos os mais” [CB, jul. 1809 (14): 52]. O governo, a começar pelo regente d. João, concordava ? o “mal” é condenado de forma explícita no artigo 10 do Tratado de Paz e Amizade com a Inglaterra, assinado a 19 de fevereiro de 1810: “S. A. R., o príncipe regente de Portugal, estando plenamente convencido da injustiça e má política do comércio de escravos […] tem resolvido de cooperar com Sua Majestade britânica na causa da humanidade e da justiça, adoptando os mais eficazes meios para conseguir em toda a extensão dos seus domínios uma gradual abolição do comércio de escravos”. A abolição terá de ser gradual, o assunto é tratado com cautela, visto ser “um ponto sumamente delicado e de grande dificuldade. Estas considerações nos obrigaram sempre, desde que conduzimos este nosso jornal, a não tocarmos na questão da escravatura […] um mal para o indivíduo que a sofre e para o Estado aonde ela se admite; porém este mal não foi introduzido pelo governo actual, e a tentativa de o cortar pelas raízes imediatamente produziria sem dúvida outros males talvez de maiores consequências” [CB, abr. 1814 (71): 607-08].

Prudência e gradualismo não significam pusilanimidade nem hesitação. Em dezembro de 1815, Hipólito da Costa considera chegado o momento de enfrentar o mal “cara a cara”:

[…] estamos persuadidos, com Montesquieu, que a escravidão não pode ser útil nem ao escravo, nem ao senhor […] o nosso periódico está cheio de clamores contra tudo quanto é autoridade arbitrária; temos mil vezes arguido que os povos do Brasil têm direito a gozar daquela liberdade racionável que consiste em não estar sujeito senão às leis, e não ao arbítrio dos que governam; etc. Ora como pode um senhor no Brasil gozar destes benefícios, quando tem debaixo de seu poder um escravo, para quem olha quase com a mesma consideração como para o seu cão ou o seu cavalo? Como é possível que o homem branco profira os seus desejos de gozar de liberdade, tendo ao pé de si o negro escravo em todo o rigor da palavra? Conhecemos bem que nos estamos explicando em linguagem um pouco forte, mas é chegado o tempo em que é preciso encontrar o mal cara a cara, e tanto o governo com o povo do Brasil devem olhar para a questão no seu verdadeiro ponto de vista. [CB, dez. 1815 (91): 738-39]

No momento de apresentar o seu “testamento político”, já depois de anunciada a independência do Brasil, Hipólito considera importante dedicar um artigo ao problema da escravatura no novo país. Em novembro de 1822, na penúltima edição do Correio, deixa exposto com clareza o seu pensamento sobre o assunto, deixando um sentido apelo à abolição da escravatura, mesmo que isso implique um empobrecimento dos cidadãos. O artigo, intitulado “Escravatura no Brasil”, merecer uma transcrição extensa:

É ideia contraditória querer uma nação ser livre e, se o consegue ser, blasonar em toda a parte e em todos os tempos de sua liberdade, e manter em si a escravatura, isto é, o idêntico costume oposto à liberdade. Seria a desesperada medida de um louco destruir de uma vez a escravatura, quando ela, além de constituir parte da propriedade do país, está também ligada ao actual sistema da sociedade, tal qual se acha constituída. Mas, se a sua abolição repentina seria um absurdo rematado, a sua perpetuação num sistema de liberdade constitucional é um contradição de tal importância que uma coisa ou outra devem acabar. Os brasilienses, portanto, devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão-de ser um povo livre, ou hão-de resolver-se a não ter consigo a escravatura […] Negamos redondamente, e o provaremos quando for conveniente, que o Brasil deixe de ser igualmente rico quando não tiver escravatura, mas raciocinando mesmo nesta hipótese, que não admitimos, perguntamos: que preferem os brasilienses, ser pobres, mas serem homens livres, com um governo constitucional; ou serem ricos e submissos a governos arbitrários, sem outra constituição política que a que lhes prescrever o despotismo? […] A maior parte de nossos sentimentos e de nossas acções depende dos acidentes de nossa educação, e um homem educado com escravos não pode deixar de olhar para o despotismo como uma ordem de coisas natural […] quem se habitua a olhar para o seu inferior como escravo, acostuma-se também a ter um superior que o trate como escravo. [CB, nov. 1822 (174): 574-76]

Fiel à declaração de princípios enunciada no primeiro número do jornal ? e honrada ao longo dos catorze anos seguintes ? o redactor do Correio concita os escritores do seu país para colaborarem na campanha abolicionista:

[…] chamamos em auxílio da boa razão a pena dos escritores do Brasil, porque não basta que o governo obre segundo o que é conforme aos interesses da nação, é ademais necessário que o povo esteja persuadido que isso assim é realmente, para isto é que se requerem os serviços daqueles homens que se acham em situação de dirigir a opinião pública; e os que nisso se empregarem farão assim um relevante e essencial serviço a sua pátria. [CB, nov. 1822 (174): 577]

É o “paradigma Hipólito” em acção. [Ver Alberto Dines, “O paradigma Hipólito”, Jornal do Brasil, 16/06/2001.]

A liberdade de imprensa e a luta contra a censura são temas de primeiríssima ordem no Correio Braziliense. Desde os números mais recuados que o jornal denuncia claramente a censura, a Inquisição e as perseguições aos homens de letras como causas directas da decadência do país. “Aquele freio de que se não possa publicar obra alguma em matéria nenhuma sem que seja aprovada por uns poucos de homens em quem o governo de Portugal lhe aprouve, por uma ficção de direito, depositar todos os conhecimentos humanos, é um absurdo, só por si capaz de aniquilar inteiramente o génio da nação em tudo o que é produção literária” [CB, out. 1808 (5): 383].

Pioneiro da comunicação das ideias liberais aos seus leitores de Portugal e do Brasil, zurzindo o atraso económico e a opressão absolutista, é natural que o Correio fosse alvo de todo o tipo de ataques com o objectivo de silenciá-lo. A mordaça do poder manifestou-se de várias formas. Desde as manobras intimidatórias ? como o processo judicial por libelo movido contra Hipólito da Costa pelo embaixador de Portugal em Londres, o conde de Funchal, d. Domingos de Sousa Coutinho [ver Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957), p. 29.], ou as diligências efectuadas pelo conde de Palmela e pelo secretário da embaixada Rafael da Cruz Guerreiro para impedir o envio de exemplares do jornal para o Brasil [CB, out. 1820 (149): 480-81; e nov. 1820 (150): 556-57] ? à publicação de obras destinadas a desacreditá-lo [Frei Joaquim de Santo Agostinho Brito França Galvão, Reflexões feitas em abono da verdade sobre o Correio Braziliense (Lisboa: Impressão Régia, 1809-10); Idem, Apologia do periódico que tem por título Reflexões sobre o Correio Braziliense caluniosamente atacado pelo redactor do mesmo Correio (Lisboa: 1810); José Joaquim de Almeida & Araújo Correia de Lacerda, Exame dos artigos históricos e políticos que se contem na collecção periodica Intitulada Correio Braziliense (Lisboa: Impressão Régia, 1810); frei Mateus da Assunção Brandão, Reflexões sobre a conspiração descuberta [sic], e castigada em Lisboa no ano de 1817 (Lisboa: Impressão Régia, 1818), p. 41; e o mais truculento de todos os detractores, o padre José Agostinho de Macedo, Carta de hum pai para seu filho, estudante na Universidade de Coimbra, sobre o espírito do Investigador Portuguez em Inglaterra (Lisboa: Impressão Régia, 1812), pp. 12-13; Idem, O Espectador Portuguez (Lisboa: 1816-18), desde o suplemento ao n? 26, intitulado “Hipólito ou o Correio Braziliense”, até ao fim da publicação; Idem, Os burros (Paris: Officina Typographica de Casimir, 1835), pp. 250 e 278-79; e, em colaboração com Joaquim José Pedro Lopes, Gazeta Universal (Lisboa: 1822), nomeadamente o n? 64, de 21/3/1822.], passando por medidas administrativas e legais puramente censórias, destinadas a cercear a sua circulação. Estas começaram logo em 1809, com as primeiras apreensões ordenadas pelo governador do Pará, José Narciso Magalhães, e pelo do Rio Grande do Sul, em 1810 e 1811, continuaram com a proibição pela Mesa do Desembargo do Paço da entrada e publicação do periódico “e de todos os escritos de seu furioso e malvado autor”, e culminaram com a renovada proibição, em 17 de junho de 1817, desta vez com honras de uma portaria dos governadores do Reino ? que, ao ser transcrita no Correio, uma oportuna gralha transforma em “porcaria”… [CB, jul. 1817 (110): 3-4]

Era convicção do redactor que a liberdade de imprensa devia ser irrestrita, sujeita apenas à lei geral no tocante a eventuais abusos que caíssem sob a alçada do foro cível ou criminal. Entendia-a como condição sine qua non de toda a liberdade cívica e política e para o explicitar publicou textos de importância histórica para o jornalismo. É o caso da “Memoria sobre la libertad politica de la imprenta”, do cónego José Izidoro Morales, obra típica do período gaditano [“Tal e tão poderoso é o escudo que a liberdade da imprensa põe aos atentados do poder, o que constitui inviolável a segurança pessoal quando a imprensa está só debaixo do poder da lei” (CB, fev. 1810 (21): 183] e, sobretudo, da basilar “Areopagitica ? Fala a favor da liberdade de imprensa dirigida ao Parlamento de Inglaterra”, traduzida de Milton pelo próprio Hipólito, o inspirado panfleto da época da Guerra Civil inglesa [CB, maio 1810 (24)].

Para o Correio, a liberdade de imprensa, além de uma questão de princípio, de uma ética de alcance cívico e político, tem igualmente uma dimensão útil, de valor económico muito sensível. E para um liberal, familiarizado com as ideias de Hume e de Adam Smith, esse papel não podia deixar de ser evidenciado. É o que faz Hipólito da Costa, ao debruçar-se sobre o relacionamento comercial entre Portugal e o Brasil, em março de 1812, quando afirma que “é preciso facilitar-lhe [ao povo] a leitura das gazetas e jornais em que leiam as notícias políticas e mercantis” [CB, mar. 1812 (46): 289].

Firme na defesa do princípio da liberdade de imprensa, o Correio insurgir-se-á contra a lei de imprensa votada pelas Cortes de Lisboa em 1821. Denuncia-a pelo seu carácter restritivo, fruto dos “prejuízos nacionais” e do temor infundido pelos “partidistas do despotismo” contra a “letra redonda”. Optimista quanto ao futuro da liberdade, o redactor oferece o exemplo da sua própria experiência para opinar que todas as tentativas contrárias às luzes da imprensa estão votadas ao fracasso e conclui com um autêntico ponto de honra, ao pedir a liberdade de expressão até para os inimigos dessa liberdade: “Até haverá mesmo alguém (posto que raro será) que em sua consciência julgue o sistema antigo preferível ao presente; e se um tal é português, nem lhe deve tirar o direito de dizer o que entende nos objectos públicos; e mui mal seguro estaria o governo constitucional se o grasnar de tais rãs pudesse produzir em abalá-lo o mesmo efeito que outros escritos obtiveram em expor em suas próprias e verdadeiras cores os abusos do governo passado” [CB, set. 1821 (160): 245].

Hipólito da Costa procuraria ainda consagrar a liberdade de imprensa na lei fundamental do seu país recém-independente. No artigo 46 do já referido “Projecto de Constituição Política do Brasil” pode ler-se: “Que não se impeça a faculdade de pensar ou de publicar os pensamentos por palavra ou por escrito, salvas as calúnias”.

Para conquistar a liberdade, Hipólito aponta um caminho: o “justo equilíbrio”, incessantemente procurado pelo “partido médio”, chave do funcionamento do sistema político. A expressão “justo meio” é utilizada pela primeira vez, nesta acepção, em julho de 1810, [“O incalculável benefício que a nação inglesa pode agora fazer aos portugueses é mostrar-lhe o justo meio entre o despotismo e a anarquia, que é o que constitui a liberdade civil” [CB, jul. 1810 (26): 75] mas o conceito será progressivamente desenvolvido até à sua sistematização em termos de acção concertada. Logo após serem aprovadas as Bases da Constituição, o Correio prevê a breve trecho a criação de três partidos em Portugal. O partido realista, composto pelos que querem “aumentar e fortificar o poder do rei”; o partido democrático, de pessoas que julgam útil “coarctar sempre o poder real e aumentar o poder da representação popular”; e o partido médio, “o mais útil, porém o que tem menos influência […] nada é mais comum do que ver este partido médio acusado pelo democrático de favorecer o despotismo, e ao mesmo tempo acusado pelo realista de favorecer a democracia, ou mesmo a anarquia […] enquanto o partido médio é assaz poderoso para decidir com o seu número a maioridade, encostando-se, já a um, já a outro dos partidos extremos, a Constituição se preserva” [CB, jun. 1821 (157): 672-73]. [Sobre os conceitos de “justo equilíbrio” e “justo meio”, ver René Rémond, Les droites en France (Paris: Aubier, 1982), pp. 84-89; Melvin J. Lasky, Utopia and Revolution (Londres: MacMillan, 1977), pp. 600-02; e Georges Gusdorf, La conscience revolutionnaire (Paris: Payot, 1978).]

A enumeração das vantagens do “partido médio” e dos perigos que convergem contra o sistema do “justo equilíbrio” revela uma aguda sensibilidade para a difícil questão do compromisso histórico. É na procura deste que consiste o “Projecto de Constituição Política do Brasil”, apresentado pelo Correio. A sua justificação constitui um autêntico manifesto em defesa de uma regime político no qual forças sociais com interesses divergentes ou mesmo antagónicos se possam sentir representadas, mediante um compromisso/consenso cuidadosamente construído.

A consciência da fragilidade dos consensos obtidos pontualmente e do labor necessário à sua constante renovação, de que depende a permanência do regime constitucional, faz aflorar, no pensamento político de Hipólito da Costa, uma vaga noção de estrutura. Terá que haver, para o funcionamento do sistema, uma correlação e interdependência do todo auto-regulado e das partes solidárias que o compõem: “[…] é essencial que se considere o nexo que propusemos entre os diferentes ramos de administração pública, de eleições e de justiça, para que se não altere alguma parte que, parecendo de pouca consequência, possa contudo destruir a unidade do sistema” [CB, nov. 1822 (174): 568].

A dimensão eminentemente prática do pensamento político de Hipólito da Costa patenteia-se, como vimos, na exigência da positividade e na restrição do âmbito da Constituição. Não o preocupam definições dogmáticas, que em mais de uma ocasião rejeita enfaticamente. [Por exemplo, quando aponta a Constituição dos EUA de 1789 como modelo a imitar pelo Brasil, ao insistir em que a forma de governo (Monarquia ou República) é um factor secundário relativamente ao sistema de administração. Cf. CB, out. 1815 (89): 550; set. 1817 (112): 285; jan. 1820 (140): 86.] Em contrapartida, põe todo o cuidado na funcionalidade do sistema: deve existir um instrumento simples, coerente, e tanto quanto possível insusceptível de dúvidas, que constitua um quadro mínimo, de tipo estatutário, deixando o máximo de margem para a participação activa do cidadão na vida política. [“A Constituição deve unicamente conter as regras gerais por que se devem fazer as leis e os limites de poder naqueles que as devem executar. Tudo o mais é objecto de leis regulamentares que a experiência e as circunstâncias do tempo devem ir sugerindo pouco a pouco; do contrário é legislar em teoria, sem poder alcançar o que se precisará na prática” ?CB, ago. 1822 (171): 295].

Àquele não interessa definir teoricamente em quem reside a soberania, ou qual a sua fonte, mas sim saber, de forma clara, as regras do jogo da busca da felicidade. Importa-lhe sobretudo ver garantida a liberdade de aquisição e usufruto da propriedade, e essa garantia só pode ser dada pela segurança de uma igualdade jurídica. É ela que permite ao cidadão afirmar, pela exibição dos frutos da sua actividade produtiva, a sua plena liberdade na desigualdade social. [Ver Georges Gusdorf, L?Avènement des sciences humaines au Siècle des Lumières (Paris: Payot, 1973), pp. 558-64; Idem, La conscience revolutionnaire, pp. 215-60; e André Vachet, L?Idéologie libérale (Paris: Anthropos, s.d.), pp. 193-249 e 305-43.]

Da leitura do Correio resulta claro que um tal modelo de sociedade exige um instrumento jurídico ? precisamente a Constituição ? que garanta o cidadão/proprietário contra a situação de indefinição legal que torna possível o juízo arbitrário do detentor do poder. Aqui se manifesta, mais uma vez, a opção política de Hipólito da Costa, cujo reformismo acaba por ser forçado a tornar-se revolucionário. Demarca-se explicitamente dos doutrinadores contra-revolucionários ao exigir um texto constitucional escrito, não programático em si mesmo, mas encerrando sem qualquer ambiguidade um programa social muito concreto.

Em que consiste esse programa, do qual a proposta constitucional do Braziliense constitui a vertente política? A nosso ver, num gradualismo lúcido, patente na evolução do próprio conceito de Constituição. Mantendo o pano de fundo epistemológico e ideológico da tradição do direito natural, aceita a ideia contratualista [ver Ernst Cassirer, La philosophie des Lumières (Paris: Fayard, 1970), pp. 239-73.], mas acolhe igualmente a crítica utilitarista fundada no empirismo [ver A. Vachet, op. cit., pp. 421-71; Barry Stroud, Hume (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1981), pp. 171-218; e Ross Harrison, Bentham (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983), pp. 77-194.], acabando por posicionar-se próximo dos ideólogos franceses e prenunciar, sobretudo no que toca ao pensamento social, a corrente do liberalismo radical britânico. [Ver notas 2 e 3 e a tradução quase integral, no Correio, dos Princípios de economia política aplicados à legislação do comércio, de Sismondi, a partir de abril de 1816 (n? 95).]

O Correio Braziliense parte de um tradicionalismo constitucional, mesmo que conscientemente forçado ? veja-se a série de artigos intitulada “Paralelo da Constituição portuguesa com a inglesa”, publicada entre agosto de 1809 e maio de 1810 ? e termina apresentando para o Brasil um projecto indubitavelmente tributário do modelo inglês, mas tendo como referente preferencial o exemplo norte-americano. Não houve um salto: a evolução deveu-se ao facto de terem sido reunidas, finalmente, as condições políticas para afirmar sem ambiguidades o que antes escamoteara com invocações tácticas, mas que progressivamente viera clarificando. Em agosto de 1819, Hipólito como que sintetiza a posição gradualista: ter em conta os obstáculos de preconceitos seculares e procurar contorná-los com o fito de conseguir as reformas desejadas é o objectivo do “legislador bem intencionado”. O “entusiasta” (revolucionário) e o “malvado” (absolutista) convergem ao fortificar os preconceitos que se opõem aos melhoramentos conducentes à felicidade. “Quanto a nós, estamos persuadidos que quanto mais graduais forem as reformas, consultando sempre o génio do tempo, as circunstâncias e o carácter dos povos, tanto mais é de esperar que as reformas produzam um bem permanente” [CB, ago. 1819 (135): 168].

A lucidez e o pragmatismo de que as suas intervenções e propostas dão constantemente prova colocam o Braziliense no campo do gradualismo [ver J. S. da Silva Dias, “O Vintismo: realidades e estrangulamentos políticos”, Análise Social, Lisboa, 2? série, vol. 16, 61/62 (1980), p. 275], eventualmente na sua direita (só concebe a democracia e o republicanismo como factores de anarquia e parteiros de novos despotismos, embora ressalve que isso se deve ao estado de degradação dos costumes em Portugal e no Brasil).

Hipólito da Costa não se limita à retórica dos regeneradores de 1820 nem declama o Choix des rapports, a bíblia dos vintistas. [Choix des rapports. Opinions et discours prononces a la tribune nationale depuis 1789 jusqu?à ce jour (Paris: Alexis Eymery, 1818).] Tem planos concretos para realizar a reforma radical que de há muito considerava indispensável para a felicidade da nação. Planos para a reforma da administração do Brasil, cuja unidade procurou defender a todo o custo; a reforma do comércio entre Portugal, o Brasil e as colónias, e entre o conjunto da Monarquia luso-brasileira e os países estrangeiros, incluindo um projecto de pauta alfandegária. Projectos para o fomento da agricultura e o lançamento da indústria, para o desmantelamento dos monopólios e a sua substituição pela livre empresa; a libertação da propriedade agrária e o fim dos constrangimentos corporativos nas actividades industriais, o apelo à dinamização do associativismo rural e comercial; e também para a expansão do ensino elementar, condição básica para o progresso. O Correio apresentou uma cuidadosa e pormenorizada plataforma de acção, unindo indissociavelmente as tarefas da regeneração política com a reforma das estruturas mais profundas da sociedade.

O problema que se colocava, na nova conjuntura pós-1820, era o da concretização desta prática ? porque, ao contrário da maior parte dos seus contemporâneos ? de uma verdadeira prática se tratava, fruto de uma reflexão teórica amadurecida. O redactor do jornal tinha plena consciência da reduzidíssima base social de apoio do campo constitucional, ainda para mais constantemente restringida pela cegueira dos radicais, alimento do proselitismo dos contra-revolucionários. Havia que buscar compromissos, sobretudo não alienar os moderados ? e os interesses sociais por eles representados ? do campo do novo regime. Era preciso ganhar tempo.

A derrapagem do Vintismo, pelas pressões quotidianas da convergência radical-reaccionária, a conjuntura internacional e, principalmente, a questão do Brasil, levaram o Correio à oposição, primeiro, e ao alheamento do processo português, depois, com a separação do novo Império.

Desde o início da sua publicação ? e, sobretudo, desde a assinatura dos tratados luso-britânicos de fevereiro de 1810 ? o jornal mostrou-se favorável à união entre o Brasil e Portugal. No entanto, já em junho de 1809 chama a atenção para as razões de queixa do Brasil contra Portugal. E no número seguinte acusa o despotismo colonial de ser um obstáculo ao desenvolvimento económico brasileiro e de contribuir para a ruína de Portugal. No número de abril de 1810 defende o lugar do Brasil no âmbito de um Império português em que todos os domínios gozem da mesma distinção, na unidade da administração e das leis. A primeira manifestação de cariz autonomista, porém, surge na edição de novembro de 1810, quando afirma que a residência da Corte no Rio de Janeiro não teve como consequência a ascensão de qualquer natural do Brasil a um alto posto do governo, reservado em exclusivo aos “europeus”, “estrangeiros”. E, na mesma ocasião, não deixa de chamar a atenção para “as circunstâncias actuais entre a Espanha e as suas colónias”. Em junho de 1811 assinala a morte de um mártir da liberdade brasileiro: o antigo procurador das Câmaras de Minas Gerais José Joaquim Vieira do Couto, “defensor dos seus naturais”, que fora preso em Lisboa pela Inquisição e deportado para a ilha Terceira, nos Açores, por ocasião da vaga repressiva que ficou conhecida como a Setembrizada de 1810.

A elevação do Brasil à categoria de Reino, com a mudança de designação da Monarquia luso-americana para Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 16 de dezembro de 1815 é saudada no número de fevereiro de 1816. Mas a situação vai degradar-se. Na secção Miscelânea da edição de abril de 1817 publica uma carta em que são notórios os sinais de insatisfação e efervescência em Pernambuco perante actos de corrupção e abusos do general da capitania. No mês seguinte, o Correio traz já a notícia da fracassada insurreição pernambucana, cujas causas não atribui a “obra de intrigantes” mas sim ao descontentamento “generalíssimo” da “grande nação” ? o Brasil ? contra a administração militar e as instituições coloniais. A solução para estes males não é a repressão, mas a reforma. Curiosamente, nos números imediatos, Hipólito vai recuar, demarcando-se da “rebelião”, que nada “nem os abusos” justifica [CB, jun. 1817]; e, além de ter sido mal preparada e mal dirigida, “as reformas nunca se devem procurar por meios injustos” [CB, jul. 1817]. A condenação da revolta de Pernambuco esteve na origem de uma prolongada polémica entre o Braziliense e o Correo del Orinoco, órgão dos insurgentes venezuelanos que, até então, tinham contado Hipólito da Costa entre os seus apoiantes. Mas o número de 13 de fevereiro de 1818 inclui uma violentíssima diatribe contra o redactor, acusado de “contradizer os seus princípios” e de “deixar cair sobre os seus escritos um borrão quase indelével”, para que o monarca do Brasil “levantasse a proibição imposta ao seu periódico de ser introduzido e lido em Portugal”. [Correo del Orinoco (ed. fac-similar. Caracas: Corporación Venezolana de Guayana, 1968), n? 18 (13/2/1818), p. 1.] A controvérsia mantém-se acesa até setembro de 1819 [CB, set. 1819 (136): 275-77].

Já depois da Revolução de 24 de agosto de 1820 o Correio pronuncia-se repetidamente contra a separação do Brasil, que considera a cabeça do Reino Unido. No entanto, já no número de setembro daquele ano sublinha que a manutenção do Reino Unido é de interesse para Portugal, mas apenas de decoro para o Brasil. E logo a partir de outubro denuncia o início de uma campanha “anti-brasílica” em Portugal com o objectivo de criar divisões entre ambos e fomentar uma união luso-espanhola. A adopção pelo novo poder instalado em Lisboa da Constituição de Cádis, a título provisório, na sequência do golpe da Martinhada, em novembro de 1820, é interpretada por Hipólito da Costa como “um passo decisivo para a separação de Portugal do Brasil”.

Não tardaram outros passos, cada vez mais apressados, no caminho do divórcio luso-brasileiro. O radicalismo das Cortes vintistas ameaça fazer regressar o Brasil ao estado de colónia, denuncia o Correio na sua edição de março de 1821. Dois meses depois ainda sustenta que manter a união é “prolongar vantagens mútuas”. Contudo, em janeiro de 1822, Hipólito declara a sua oposição às medidas tomadas pelas Cortes relativamente ao Brasil. Em artigos publicados na secção Miscelânea desse mês fala contra a visão colonial que na Europa se tem das “nações ricas e poderosas da América” e volta a enumerar as razões de queixa do Brasil pelo desprezo a que foi votado pelos governos absolutistas e pelo novo governo das Cortes.

O processo sofre nova aceleração. No número de março de 1822, o Correio avança com uma proposta moderada para uma solução autonómica no Brasil, conservando-se a união dinástica: um governo central sob a autoridade do príncipe real d. Pedro. Perante a erupção de revoltas em algumas províncias e a ameaça de secessões que pudessem desmembrar o grande país, Hipólito elege como tarefa essencial garantir a integridade do território brasileiro. Ainda assim, a unidade não deve ser imposta por coacção mas pela persuasão do interesse mútuo, como sublinha na edição de abril de 1822. Por essa altura já o publicista concluíra que o processo estava suficientemente amadurecido para a proclamação da independência. Considera legítima a recusa do Brasil em obedecer às Cortes, classifica como algo de “pernicioso” a permanência dos deputados brasileiros ? cuja “energia” enaltece ? em Lisboa e declara, sobre a posição do Brasil, que “se não lhe faz conta comprar a união, passará sem ela” [CB, jun. 1822].

O compromisso por que tanto se batera o Correio viria a ter por núcleo a Carta constitucional outorgada em 1826 por d. Pedro IV, o mesmo soberano que lançara o grito da independência do Brasil. Os princípios da Carta não diferem dos do seu “Projecto de Constituição”, com a significativa excepção da base eleitoral: Hipólito da Costa pretendera alargar o consenso nacional a camadas muito mais amplas da sociedade ? daí o não ter previsto o regime censitário, obstáculo à participação política de todos os cidadãos. A Portugal, o compromisso histórico custaria ainda o preço do terror contra-revolucionário e da guerra civil.

Hipólito não assistiria a este desfecho. Encerrado o Correio, após a proclamação da independência brasileira, o publicista foi nomeado sucessivamente encarregado de negócios interino, cônsul-geral em Londres (a 20 de setembro de 1823) e conselheiro honorário da Legação do Império do Brasil junto do embaixador Caldeira Brant, a 22 do mesmo mês. Não desempenharia, contudo, os últimos cargos: morrera a 11 de setembro de 1823. O seu nome consta da primeira lista de agraciados com o grau de Oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro, instituída a 1o. de dezembro de 1822 por d. Pedro I do Brasil. Além desse, fez jus a outro título, que cala mais fundo no coração dos amantes da liberdade de imprensa: patriarca dos jornalistas brasileiros. [Manuel Cícero Peregrino da Silva, “Conferência sobre o patriarcha dos jornalistas brasileiros, Hyppolito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça 1774-1823”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 94, vol. 148 (1923), p. 785.]

(*) Jornalista, é director-adjunto do semanário Focus, de Lisboal mestre em história cultural e política pela Universidade Nova de Lisboa, investigador do Centro de História da Cultura daquela universidade e autor de O jornalismo na emigração. Ideologia e política no Correio Braziliense, 1808-1822 (Lisboa: INIC, 1992)