Argemiro Ferreira, de Nova York
A ficção chegou primeiro, com Truman Show, no qual a vida real do personagem vira espetáculo de TV. Mas o fenômeno representado principalmente pela série Survivor, da rede CBS, que fabrica realidade para vender aos telespectadores, devia ser analisado também a partir dos antecedentes dessa geléia geral de realidade e ficção temperada por uma dose letal de fraude capaz de corromper o jornalismo.
Como Survivor é um sucesso (está sendo festejado como a série de maior audiência do verão em toda a história da TV americana), foi prontamente seguido pelo Big Brother, de menor êxito. Na origem de todos eles – e antes, já na safra mais recente, vieram Who Wants to Be a Millionaire, da ABC, e Who Wants to Marry a Multimillionaire, da Fox – estão os "quiz shows" dos anos 1950, detonados após investigação do Congresso que expôs seu caráter fraudulento e escandalizou o país.
O que teriam eles a ver com jornalismo? Em princípio, pouco ou nada além das críticas e resenhas em seções especializadas ou da cobertura jornalística recebida nos veículos impressos ou programas jornalísticos da TV. Mas na era da globalização e dos impérios de mídia, o jornalismo real fica a reboque do entretenimento graças às regras superiores da sinergia, multiplicadoras do faturamento das corporações.
Versão matinal
A diferença entre Who Wants to Be… e os antigos "quiz shows" – os programas de perguntas e prêmios, também já copiados no Brasil por séries do tipo O Céu é o Limite – é que, desmascarada no passado a pretensão cultural ou intelectual, desapareceram as perguntas supostamente difíceis. A produção já assume a intenção de fabricar personagens com os quais o público se identifica, transformando-os em celebridades.
A linha entre realidade e fraude é de tal forma tênue que a Fox, após uma única apresentação, julgou conveniente acabar com seu Who Wants to Marry…. A candidata casara-se com um suposto multimilionário (há dúvidas até sobre a fortuna), passara a lua-de-mel com ele em cabines separadas durante um cruzeiro pelo Caribe, voltara e anunciara publicamente o início de processo de anulação do casamento.
De novo solteira e agora celebridade, Darva Congers tornou-se personagem quase permanente de programas jornalísticos. Entrevistada crônica, aparece nos tablóides de supermercado e da TV, além de posar nua – em troca de remuneração não revelada – para revista masculina (é a atração do último número da Playboy) e examinar com interesse propostas para publicar livro e trabalhar regularmente na TV.
Tão pressurosa agora em copiar as duvidosas receitas de fora, a Rede Globo não percebe ter sido ela própria, no passado, criadora de originais próximos das versões estrangeiras – coisas como Casamento na TV, no qual as uniões patrocinadas pelo apresentador Raul Longras foram bem mais duradouras do que na experiência malsucedida da Fox; e o Programa Dercy Gonçalves, que promovia caridade e obscurantismo.
É inegável que Longras, Dercy & cia usaram o baixo nível para trazer audiência – da mesma forma como as pessoas comem rato no horário nobre de Survivor, com objetivo idêntico. Não faltava a eles nem mesmo a pitada de humor, às vezes cruel, que também contribui hoje para empurrar índices de audiência. Mas não me lembro de ter visto na época a mesma promiscuidade jornalismo-entretenimento. É este o lado mais nocivo da nova safra, e também uma das razões do sucesso de séries como Survivor, sempre em nome da sinergia corporativa e das regras maiores da audiência.
A CBS, parte do império Viacom (como a ABC é da Disney e a NBC, da General Electric), passou a usar Survivor para o desafio matinal de seu jornalístico Early Show ao dono do
horário, o Today da NBC.
Também mescla de jornalismo e entretenimento, Today apresenta as primeiras notícias do dia e entrevista presidentes e políticos regularmente. Tem sido imbatível há décadas, desde Barbara Walters (cujo jornalismo-entretenimento transferiu-se para a ABC). Mas o Early Show passou a ter mais 364 mil telespectadores em média na manhã seguinte ao Survivor, quando entrevista o candidato perdedor.
A versão matinal da ABC, no mesmo horário, é Good Morning America (onde a Globo foi buscar o título do seu Bom Dia), que faz coisa parecida com resultado semelhante: esse programa tem um aumento médio de 114 mil telespectadores cada vez que entrevista um novo milionário do Who Wants to Be…, no dia seguinte ao sucesso de um de seus candidatos.
Padrões éticos
Modernidade? "Novo" jornalismo compatível com a "nova" economia? Pode ser. Se sinergia e audiência continuarem a determinar o padrão de jornalismo, essa poderá ser a tendência para o futuro – a do jornalismo de entretenimento e celebridades, em sintonia com o resto da programação das redes e com o faturamento em produtos das subsidiárias do império (discos, livros, filmes, brinquedos, etc.)
Embora as referências acima tenham sido apenas aos programas matinais, a promiscuidade já invadiu os diferentes horários de jornalismo, inclusive o ritual meio sagrado do jornal nacional da noite (seis e meia) nas três grandes redes. Tanto que as chamadas revistas-tablóides da TV (Extra, Entertaniment Tonight, Access Hollywood etc.) já estão estrategicamente colocadas junto àqueles jornais "nobres".
É difícil prever até onde o jornalismo continuará a se render a tal promiscuidade. As próprias emissoras de TV, ao menos seus departamentos de relações públicas, evitam hoje caracterizar um programa como "jornalístico". Preferem identificá-lo como "entretenimento" a fim de prevenir cobranças de padrões éticos e profissionais. E os veículos impressos aceitam o jogo, deixando as críticas para seus analistas da área.
Será exagero prever uma geração futura de jornalistas não formados em escolas ou treinados em redações, mas guindados à celebridade nas manchetes de tablóides de escândalos? Monica Lewinsky, cuja única habilidade conhecida nada tem a ver com jornalismo, fez tanto sucesso na entrevista a Barbara Walters que recebeu convite para integrar a equipe do programa The View (convite retirado posteriormente).
Darva Congers, que se casou no palco da Fox e expôs seu talento em cores na última Playboy, espera a estréia em algum programa como comentarista de alguma coisa que não se sabe exatamente o que será. E o neurologista Sean Kenniff, mal foi "desligado" da ilha de Survivor, já arranjou emprego de "corresponde médico" da revista-tablóide Extra, uma das maiores audiências diárias da TV.
Pode parecer absurdo à primeira vista, mas não à luz de critérios como sinergia e audiência – os que fazem a fama, por exemplo, da badalada editora da revista Talk, Tina Brown. Se são esses os critérios do "novo" jornalismo, faz sentido. Afinal, quando a CBS encerrou seu Big Brother e iniciou a cobertura da convenção democrata, sua audiência de 17,1 milhões de telespectadores caiu 70%.
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