VEJA & MST
Deonísio da Silva (*)
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ocupa possessões territoriais que juntas equivalem à Dinamarca. E seu formidável aparelhamento tem merecido de nossa imprensa matérias que se destacaram ao longo dos últimos lustros pela alta densidade de informações, pelo ineditismo de revelações e pelo indispensável quadro de referências fornecido a quem quis e quer debruçar-se sobre a questão da terra no Brasil.
Tão candentes e tão polêmicos têm sido os pontos de vista sobre os sem-terra que a literatura brasileira vem espelhando seus temas e problemas em romances, de que é exemplo Ana Sem Terra, do escritor gaúcho Alcy Cheuiche, já em oitava edição no Brasil (Porto Alegre, Editora Sulina) e traduzido para o alemão, o espanhol e o francês.
Cheuiche segue a boa tradição das letras do Brasil meridional, sempre atentas à realidade social que tem impregnado diversos escritores de valor. Esses trilham caminhos novos, fazem seu próprio périplo, mas não esquecem da lição dos mestres, nem fazem de conta que antes e depois deles terá havido ou haverá apenas o dilúvio. Além de Cheuiche, naquele terrum o romance vem tendo um fulgurante desempenho, bastando que se ateste que até a televisão, que não é a primeira a ocupar-se de nossos autores, já transpôs em minisséries diversas obras ? como é o caso de A Casa das Sete Mulheres, de Letícia Wierzchowski, que teve suas tramas adaptadas para a TV Globo por Maria Adelaide Amaral e Walther Negrão. O tema: a Guerra dos Farrapos. E não faz muitos anos a mesma TV Globo adaptou Incidente em Antares, de Erico Verissimo. E o cinema lançou um novo olhar sobre romances de Luiz Antonio de Assis Brasil, Josué Guimarães e José Clemente Pozenato. Deste último, aliás, foi transposto para o cinema O Quatrilho, que chegou à finalíssima do Oscar de melhor filme estrangeiro.
Estilo e intenções
José Rainha, capa de Veja desta semana (edição 1.807, 16/6/03), já é personagem de romance. O olhar neutro é impossível, mas os ficcionistas que dele se ocuparam vêm tendo uma atitude bem diferente da de alguns jornalistas que o entrevistam e buscam. A discrepância essencial reside no seguinte mirante: os escritores não se apóiam nos ombros do gigante para execrá-lo, incriminá-lo ou denunciá-lo como beato ou bandido, ingênuo ou sagaz. Buscam entendê-lo, pois o MST é um fenômeno que chama a atenção de qualquer intelectual, do Brasil ou do exterior, que preze conhecer o Brasil. Os feitos do MST têm sido notícias em todo o mundo.
É uma indispensável paixão do conhecimento que faz falta à matéria de Veja. A capa anuncia o espírito que vai pairar sobre todo o texto (págs. 72-80). A foto de José Rainha, com o boné vermelho onde está estampado o símbolo do MST, vem acompanhada do seguinte texto posto na capa, sob a chamada "A esquerda delirante":
"Para salvar os miseráveis dos desconfortos do capitalismo, o líder sem-terra José Rainha ameaça criar no interior de São Paulo um acampamento gigantesco como o de Canudos, instalado há um século por Antônio Conselheiro no sertão da Bahia…"
Onde está o resto da matéria? Aqui vão algumas indicações. Você passa por sólidos anúncios de dois bancos e uma montadora de automóvel e chega à página 8 da revista com tiragem anunciada de 1.226.475 exemplares. Veja é a maior revista brasileira e consolidou um formidável desempenho entre assinantes e na venda em bancas. Ponto para ela e parabéns pela competência.
Como o Brasil tem, não apenas uma economia complexa, mas uma sociedade vasta e de interesses conflitantes, naturalmente, ao contrário do que disse a capa, de modo desjeitoso e com outro espírito, o capitalismo que se consolidou no Brasil de forma avassaladora nas últimas décadas não traz apenas desconfortos, não, senhores. Vem trazendo pobreza, miséria, violência. Na cidade e no campo. E no campo surgiu o mais organizado dos contragolpes. Se está certo ou errado, a História dirá.
Euclides da Cunha foi a Canudos cheio de preconceitos contra o líder e os liderados de Antônio Conselheiro. Mas, fiel aos fatos, legou-nos um dos melhores documentos da vida brasileira, um livro de leitura indispensável como é Os Sertões. O engenheiro Euclides da Cunha cobriu Canudos para o jornal O Estado de S.Paulo. Sabia escrever. Não porque soubesse utilizar tão arrevesada sintaxe e tantos vocábulos que cem anos depois permanecem com seus significados e sua beleza desconhecidos dos jornalistas que escreveram sobre o MST para comparar a Canudos às lutas travadas no Pontal do Paranapanema (SP). Ele sabia escrever porque tinha a paixão do conhecimento, uma paixão de tanta força que o obrigava a rever e contrariar os conceitos que levou consigo.
A reportagem de agora, que mereceu chamada de capa na Veja, ao contrário, é de autoria de quem, ou não sabe escrever, ou não sabe pensar, pois a outra hipótese ? a de macular seus textos, pondo a imprensa a serviço de tanta brutalidade, abdicando da crítica ? não seria de bom-tom ao autor destas linhas, que não conhece os repórteres que assinam a matéria a ponto de discernir se o que apresentaram é apenas um escorregão ou se trata de marca de estilo e de intenções.
Ficção à realidade
Sigamos a revista, sem desprezar o olhar semiótico, não o de quem fecha um olho, mas o de quem precisa abrir muito mais os dois que tem. Carlos Drummond de Andrade lamentou em poema célebre ter "apenas duas mãos e o sentimento do mundo". Três outras fotos legendadas estão ao lado do índice. Na primeira (José Rainha), "José Rainha, o Antônio Conselheiro de Paranapanema"; na segunda (flagrante de manifestação de milhares em Brasília), "Funcionários protestam contra a reforma da Previdência"; na terceira (José Serra), "Um rolo de 32 milhões de reais na campanha de José Serra".
Na página seguinte, a Carta ao Leitor não diz uma única linha sobre a matéria de capa. Mostra foto do escritor Diogo Mainardi, colunista de Veja, informando que suas colunas batem recordes de cartas e que "não seria má idéia" ele seguir o conselho do "grande amigo, o escritor americano Gore Vidal, que certa vez o aconselhou a concorrer à Presidência do Brasil".
Nada contra Diogo Mainardi, um intelectual inconformado com certas mesmices brasileiras, que tem amor à polêmica e gosta de escrever o que pensa, em saudável indignação. Pensa e faz pensar. Certamente equivoca-se com freqüência, agrada e desagrada, desconcerta e consola sua multidão de leitores, que Veja informa cativos, dado o número de cartas. Seus romances não obtêm o desempenho de suas colunas, é claro, e ele várias vezes já fez ironia contra si mesmo, abordando tais sutis complexidades.
Mas prestemos atenção a certas ausências. Veja ocupou-se também dos escritores que escreveram sobre os sem-terra, sobre José Rainha, sobre João Pedro Stédile, fazendo-os personagens de seus livros? Veja ocupa-se de escritores e de livros que seguem os passos de Euclides e Erico?
São ausências como essas que fazem entender melhor a revista e seu projeto. A página de livros é para outros fenômenos editoriais, como o brasileiro Paulo Coelho e a escocesa J. K. Rowling, autora de Harry Potter. Neste particular, seja justo, porém, reconhecer que Marcelo Marthe faz uma bela resenha do escritor americano Dennis Lehane, que diz: "Já falaram que em meus livros há mais violência numa única página do que ocorre durante um ano inteiro em Boston. É que preciso acrescentar um pouco de ficção à realidade, se quiser sobreviver do meu ofício".
Fio da meada
O teor da matéria de capa leva-nos a pensar que se ignorância semelhante afetasse os mesmos jornalistas que foram cobrir revoluções e movimentos que marcaram a história do Brasil e do mundo, redução semelhante à aplicada agora resultaria num Lênin sonhador inconseqüente, num Fidel Castro e Che Guevara delirantes, num Antônio Conselheiro beato e bobo, em padres jesuítas inconsiderados. O grande equívoco do primeiro teria sido imaginar que pudesse vencer o atraso rural da Rússia. Dos dois seguintes, a idéia desatinada de derrubar um dos maiores corruptos de todos os tempos, sem prestar muita atenção aos que os EUA achavam do passo seguinte, rumo à aliança com a antiga URSS; de Antônio Conselheiro, de imaginar que pudesse organizar a plebe. E, enfim, os padres jesuítas na famosa República Guarani, seriam classificados sumariamente como os maiores ingênuos de todos os tempos, ao conceberem e organizarem cerca de 300.000 índios numa das mais belas utopias de todos os tempos, cujos restos arquitetônicos e artísticos estão inseridos na paisagem dos mesmos municípios onde surgiu o MST.
Atenção, jornalistas! Escrever não é atividade que dispensa a leitura. Tal atitude evitaria trechos como o seguinte:
"Como trabalham em prol de multidões de pobres, os líderes desses movimentos parecem acreditar que estão acima da lei".
Não é verdade. José Rainha cumpriu pena de prisão, recorreu a advogados e teve entre as suas testemunhas a figura respeitável do então governador do Ceará Tasso Jereissati. Os acusadores do líder do MST atribuíam-lhe um crime que ele teria cometido a quilômetros de onde estava no exato momento: no gabinete de Tasso.
Por isso, a lei, sempre invocada por todos, não está infensa ao contexto. Sua aplicação depende dos favorecidos pelos gestos. Os juros também estão acima da lei, pois não? E respeitar direitos legais ? aliás, adquiridos e garantidos durante séculos ? teria impedido a Abolição e a República.
Em resumo, Veja ficou devendo aos leitores outra matéria sobre os temas e problemas do MST, que poderia espelhar-se na precisão com que na de agora foi informada a conversão de José Rainha:
"Foi lá [em Linhares, ES] que, no dia 17 de fevereiro de 1978, [Rainha] teve o encontro que, segundo ele, mudou sua vida. Frei Betto, o dominicano amigo do presidente Lula, foi ao Espírito Santo organizar um núcleo da Comunidade Eclesial de Base, trincheira de parte de esquerda durante o regime militar".
Está esquentando, mas ainda não foi desta vez que encontraram o fio da meada entre MST, messianismo social e religião católica no Brasil.
(*) Escritor, professor, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú