OUTRA GLOBALIZAÇÃO
Apontamentos sobre como cobrir uma outra globalização que está sendo feita pelos "de baixo"
Carlos Tautz (*)
Parece esdrúxulo o uso da expressão "jornalismo estratégico" em uma época em que o jornalismo que não se admite elemento da política contenta-se em ser uma versão hedonista e financeirizada do mundo e se caracteriza por superficialidade, fragmentação, descontextualização, desequilíbrio e despolitização. Então, para os que (ainda) se espantam, aqui vai um recado. A imprensa e o jornalismo, o seu instrumento de maior credibilidade, não vêem que desde há alguns anos a história está sendo reescrita e reelaborada por movimentos sociais de todos os cantos do mundo e razoavelmente por fora da superestrutura que define os rumos do planeta. Estes movimentos exercitam a teoria e a práxis da crítica ao modelo neoliberal e trocam experiências das facilidades proporcionadas pelas tecnologias da informação, sem que controles definitivos tenham-lhes sido impostos.
Jornalismo estratégico é a forma que considero mais adequada de cobrir essa outra globalização, que levou cidadãos comuns, movimentos sociais, ambientalistas e sindicais a questionar a supremacia da economia corporativa e financeira sobre a vida, a cultura e a política. Os frutos mais visíveis dessa contestação de alcance global foram os protestos contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle (EUA, 1999), contra o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington (EUA) e Praga (Eslováquia) e em Bangcoc (Tailândia) em 2000 e contra o G-7 mais a Rússia em Gênova (Itália, em 2001). O falecido professor Milton Santos, um dos maiores intelectuais brasileiros, em memorável entrevista à Caros Amigos, chamou essa rede contestatória de "globalização produzida pelos de baixo".
Nas lutas de classe
Pois o jornalismo que preconizo para esse tempo exige uma atitude mental vigorosa do jornalista, como vistas a se libertar dos esquematismos e dos dogmatismos a que esse profissional se amoldou em anos de convívio com a assim chamada imprensa grande. De tal forma que ele consiga perceber o processo e o contexto em que se realizam essas manifestações contra a mudança de paradigmas éticos e civilizatórios do Ocidente.
A teia de contestações ganha mais corpo na rejeição ao patenteamento das tecnologias de clonagem e de transgenia, à inédita perspectiva histórica de extinção provocada de espécies – inclusive a humana ? e ao avultamento de operações financeiras internacionais que há muito se descolaram da produção real de bens e serviços, mas que são tão finamente operadas que podem levar à bancarrota economias nacionais inteiras. Enfim, o que está na ordem do dia desses movimentos contestatórios, que se ancoram teoricamente na crítica ambientalista nascida no início dos anos 1970, é a rejeição a um mundo de produção de símbolos uniformizadores de consciências.
Explico o horizonte aproximado de cinco anos. Em fins de 1996, organizações não-governamentais e movimentos sociais descobriram que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, sediada em Paris) discutia secretamente um Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). Uma vez assinado pelos 36 membros da Organização, o acordo desregulamentaria a atuação das multinacionais, ao se sobrepor às legislações nacionais. Cairiam as proteções ao ambiente, à saúde, aos direitos trabalhistas e à ordem econômica. Primeiro, os países da OCDE assinariam o acordo e depois utilizariam seu peso esmagador no comércio internacional para exigir a adesão de outras nações.
Descobertas as negociações secretas, as ONGs se organizaram e exigiram uma audiência pública na OCDE, que só concedeu um encontro na sede da entidade e sem cobertura da imprensa. Apenas um jornalista conseguiu se infiltrar no amplo salão de reuniões e pôde perceber que o acordo começava a ir por água abaixo.
De volta ao Brasil, o autor deste presente texto publicou na edição de janeiro de 1998 da revista Caros Amigos a primeira denúncia do AMI na imprensa nacional e mostrou que uma divisão interna na OCDE, liderada pela França, que não concordava em escancarar seu mercado cultural, estava sendo explorada e potencializada pelas ONGs, o que levaria o acordo ao fracasso. A reunião de Paris gerou todas as manifestações que se seguiram a Seattle e que não dão sinais de fadiga.
Esses fatos exemplificam o que vem a ser essa outra globalização e o instrumental necessário para sua cobertura, o que chamo de jornalismo estratégico. É chamado jornalismo porque se trata de uma forma de olhar e de ver os fatos topicamente, mas que aceita ser complexa a realidade. É chamado estratégico porque se assume enquanto um plano de ações concatenadas para contar de forma objetiva como se dão as relações em um mundo parcialmente conectado pelas facilidades da comunicação, dos transportes e do comércio. É também estratégico porque aceita a idéia de que o jornalismo é mais um espaço-tempo em que se manifestam as lutas de classe e que seu exercício se insere num lado dessa luta.
Coragem e disposição
O jornalismo estratégico sobre o qual divago tem algumas características. Não se utiliza daqueles velhos pré-conceitos de "neutralidade jornalística" nem da insuficiente noção despolitizada de notícia. Não concebe o fait divers (ou fato diverso do "normal") como regra, mas aceita a idéia de processo histórico contínuo e eventualmente cíclico. Carece de aprofundado embasamento teórico, histórico e político para ser praticado. Toma posição, mas busca o equilíbrio e a visão crítica, e não se submete a ser um mero informe sobre as frivolidades das cortes. Não aceita rebaixar os critérios editoriais e reportar o problema das mudanças climáticas globais da mesma forma que reportaria um mero acidente de trânsito sem vítimas na esquina. É irremediavelmente ético, na medida em que se propõe a colocar o direito à vida acima dos interesses da economia. É compromissado com a explicação, antes até do que com a informação.
Todas essas são propostas de difícil implementação, em um mundo cerceado pelos limites do que se convencionou chamar de "economicamente viável". Mas há exemplos em toda parte de como é possível praticar um jornalismo do "não", enquanto a maioria se acomoda no "yes". E aqui cabe ressaltar periódicos brasileiros como Cadernos do Terceiro Mundo, Caros Amigos, Carta Capital e Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro. Outros meios estão a aparecer, e o próximo é o histórico Pasquim, que renascerá em 21 de novembro. Há, também, a maravilhosa possibilidade de espargir informação pela internet que, entretanto, tem lá seus limites. Precisamos lembrar que dois terços dos 6 bilhões de habitantes da Terra nunca fizeram uma chamada telefônica e que só uma parcela diminuta do terço restante acessa um computador ou acumula renda suficiente para adquirir um.
Mas, saídas há. E elas estão sendo encontradas pela genialidade humana que, como a história, é impossível de ter fim. Bastam coragem e disposição de encontrá-las.
(*) Repórter da revista Brasil Energia e assessor de imprensa das ONGs da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos; email <carlostautz@uol.com.br>