FIM DA PICADA
Gilson Caroni Filho (*)
Nos anos 90 ? quando, como em toda realidade hipostasiada, o neoliberalismo se pretendia eterno ?, um obscuro Francis Fukuyama decretava o fim da história. Não cabia mais pensá-la como processo, devir, campo de contradições insolúveis e interesses inconciliáveis. A democracia liberal, sua institucionalidade e o modo de produção capitalista assumiam a dimensão de forças naturais. Sobre esses vetores já não cabiam reflexões totalizadoras, apenas registros, constatações empíricas e petições de obviedades.
Uma década depois da euforia do capital especulativo, da queima mais vultosa de mais-valia em escala planetária, os anjos do apocalipse bateram em retirada. Em seu lugar começa a surgir o que se convencionou chamar "povo de Seattle". Aos poucos, bem lentamente, a teoria crítica volta a formular diagnósticos precisos sobre a dinâmica histórica e,ainda inorgânica, uma militância de novo tipo começa a retomar a história como projeto a ser feito ou refeito, dependendo da angulação política.
É tempo de a coruja hegeliana retomar o lugar dos pardais arrivistas
que se instalaram em galhos acadêmicos e midiáticos.
Refestelados num funcionalismo de conveniência, abdicaram
do pensar crítico a ponto de considerarem as teorias de "alcance
médio" de Robert Merton uma aventura longa e perigosa.
Metafísica distante dos fáceis e rentáveis
"estudos de caso". A que ponto chegamos. A contraface
que se pretendia abrangente resvalou muitas das vezes para o suposto
glamour do conspiracionismo e dos aforismos ininteligíveis
para os não-iniciados em confrarias secretas. À renúncia
de um verdadeiro pensamento constituído de historicidade
sobreveio um estranho movimento migratório de parcela da
intelectualidade. Sem qualquer conflito aparente, aqueles que, por
formação, requeriam um tempo mínimo para a
reflexão conceitual e a construção metodológica
mais sólida, juntavam-se aos que por imperativos do fazer
jornalístico tinham na velocidade temporal o instrumento
mais adequado.
Não pensem que essa travessia se deve a uma visualização do campo midiático ? no sentido aplicado por Bourdieu ? como espaço para ações políticas requeridas pelos novos tempos. Foram, tal como insetos de verão, atraídos pela luz e o calor dos holofotes que os acolhem e exterminam. São os fósseis simbólicos do neoliberalismo. Mas deixemo-los para os paleontólogos do futuro.
Nosso foco central não é, obviamente, uma dicotomia tão falsa como duvidosa: jornalismo e academia como antípodas. Destacamos os métodos e tempos que não se coadunam. Mas desse amálgama podemos extrair algo importante sobre a impotência de o jornalismo político trabalhar com seu objeto. O funcionalismo, presente na maioria das análises dos articulistas de grandes jornais, é uma impossibilidade constitutiva de apreendê-lo como movimento e indeterminação. Mais precisamente, é o enunciado preferido pela ordem dominante, posto que anula qualquer possibilidade de transformação. Esta só é referida como sinalização de uma indesejável regressividade. Nesse momento mata-se qualquer possibilidade de ação revolucionária.
Fim da picada
Os recentes episódios argentinos cabem como luva em nossa exposição. O câmbio sobrevalorizado, o ajuste fiscal solicitado pelos credores e o endividamento público foram valorizados pela mídia e por colaboradores acadêmicos como os elementos centrais da turbulência política. O povo (categoria problemática, concordamos) foi visto como apêndice de uma disfuncionalidade. Invertem-se os papéis, e no economicismo crasso de plantão perde-se de vista o homem e seu fazer como forças-motrizes.
Como fazer jornalismo político sem resgatar a "Pólis" em sua dimensão superestrutural? Como perder de vista a justiça que aristotelicamente não é partilhável, mas participada? Como explicar a imprevisibilidade das forças em jogo, a correlação de classes e grupos num dado momento se as editorias estão pautadas pelo pensamento único? Como antever mudanças no marco institucional se a cartilha normativa ensina como operar ante demandas previstas, e cala sobre a liberdade e indeterminação da práxis humana? Como analisar as sobredeterminações externas se o imperialismo acabou sem que ninguém saiba como? Por determinação acadêmica e posterior decreto editorial. Tanto quanto as classes e as relações de dominação e expropriação que, discretamente, cederam espaço a determinações etéreas. Como pensar em clivagens político-partidárias se a ideologia é artigo acessório?
É hora de repensar procedimentos. Ou a imprensa reaprende a diferenciar condições objetivas e correlacioná-las às transformações possibilitadas pela intersubjetividade dos principais atores ou fundamos uma nova editoria. Nela, intelectuais envelhecidos, jornalistas cooptados e estatísticos furiosos deleitam-se com fofocas e dados da última pesquisa (outra palavrinha problemática) eleitoral decidindo se os candidatos da direita ganham mais porque são bonitinho(a)s ou são bonitinho(a)s porque ganham mais.
E talvez nem estejamos falando de um futuro distante. Cada vez mais o colunismo político de um grande jornal carioca é feito de impressões pessoais, avaliações que, longe de informar, mais parecem uma tentativa de mostrar ao leitor intimidade com as figuras de mais peso no aparato estatal. É um tal de "aquele sorriso do presidente", a "expressão carregada do senador" , "a ruga de preocupação do ministro". Estamos próximos da substituição da análise por uma semiologia de caras e bocas.
Na academia urge retomar o pensamento lógico-dedutivo, a apreensão da história para além de suas configurações aparentes ou, em caso contrário, deixar o véu cair e, no ocaso do ciclo histórico que o gerou, reconhecer que Fukuyama ganhou a aposta. O que seria o fim da história e da picada também.
(*) Professor-titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro