Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornalista sem diploma é um fato

DIPLOMA EM XEQUE

Cláudio Buongermino (*)

Já escrevi vários artigos aqui no Observatório da Imprensa argumentando contra a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Sempre fui muito sarcástico, porque estava na defensiva (minha, não do diploma) e não via muita chance de que um dia o quadro mudasse em favor do livre acesso à profissão.

Agora, graças à decisão judicial suspendendo a obrigatoriedade, a coisa mudou de figura e o debate, de nível. Sei que a liminar vai cair, mas depois vai levantar – e vai cair e levantar, cair e levantar, até chegar a uma instância definitiva. Neste ponto, como bem observou Mino Carta, o debate sobre a questão terá de ser muito mais sério, independentemente do resultado final.

E o debate, infelizmente, não tem sido muito substantivo. Alberto Dines que me perdoe, mas eu não entendi o que ele quis dizer com seu artigo publicado na edição de 7/11 do OI. Li e reli, e não percebi qual a posição dele. E também fica difícil descobrir algo de útil num debate enviesado pelo (esperável) corporativismo pró-diploma de professores de Jornalismo, estudantes de Jornalismo e mesmo de jornalistas que se sentem ameaçados pelo fantasma do desemprego. E muito menos em artigos que arrolam extensa bibliografia para discutir um assunto tão prático, tão mundano.

Uma coisa importante não está sendo dita, ou está sendo dita de modo muito oblíquo: a presença de jornalistas de fato que atuam mesmo sem diploma (em oposição aos jornalistas por direito, que têm o diploma) já é uma realidade incontornável, pelo menos nas redações paulistas.

Formados e incapazes

Puxo pela memória e lembro de 16 colegas que conheci pessoalmente e que são formados por outros cursos que não o de Jornalismo. Todos atuam ou atuaram em grandes redações (muitas vezes em cargos importantes – um deles foi até secretário de redação).

Quais suas formações? Três em ciências sociais; três em editoração; dois em publicidade; e, com um caso cada, cinema, relações públicas, artes plásticas, história, letras, economia, direito e engenharia. Portanto, 14 são da área de humanas; destes, nada menos que oito são de comunicação e artes (ou seja, conviveram de perto com cursos e estudantes de Jornalismo). O economista trabalha atualmente na editoria de economia de um grande jornal, o que não soa exatamente como um absurdo. Só o engenheiro parece meio deslocado ? mas posso garantir que ele é um dos repórteres mais éticos e meticulosos que já conheci.

Não vou discutir o porquê de essas pessoas terem abraçado o jornalismo, mesmo oriundas de outros cursos. Há razões várias para isso, todas elas dignas e muito longe das teorias conspiratórias formuladas por alguns paranóicos ("é tudo pau-mandado de patrão", por exemplo). Nenhuma dessas pessoas é "curiosa", diletante ou está fazendo bico.

Agora, pergunto: o que os pró-diploma sugerem fazer com esses colegas? Uma inquisição dentro das redações? Multá-los? Processá-los por exercício ilegal da profissão? Quem sabe colocá-los na cadeia?

Está para chegar o dia em que algum colega que realmente entende de jornalismo, que realmente sabe do que se trata essa profissão, que realmente ama o que faz, vai ter a desfaçatez de apontar o dedo para o não-diplomado que trabalha a seu lado, que rala tanto quanto ele, que luta para fazer um jornal decente tanto quanto ele, e dizer: "Você não é digno de exercer essa profissão." Porque quem está dentro de uma redação e não é mau caráter sabe das coisas. E quem apontar ou já apontou o dedo assim não é decente.

A discussão sobre as especificidades técnicas do jornalismo e a inacessibilidade destas a quem não fez o curso próprio é tão tola que não deveria ultrapassar o nível do balcão do boteco. Eu mesmo lido com jornalistas formados há anos que não sabem nem assinar o nome, escrevem casa com "z" e não conseguem produzir 10 linhas sobre uma chacina sem trocar os pés pelas mãos e obrigar o fechador a reescrever tudo e perguntar várias vezes quem matou e quem morreu. Perdi a conta das ocasiões em que tive de localizar repórteres em casa, a meia hora do fechamento ou no meio do pescoção, para que explicassem, por telefone, que diabos quiseram dizer com aquele texto sem pé nem cabeça e mal apurado que deixaram para o editor transformar em algo inteligível.

Pelo bem da profissão

Por outro lado, ouvi o engenheiro citado acima reclamar, ao longo de semanas, de uma matéria "venal, antiética e corrupta" feita por um colega (diplomadíssimo) para puxar o saco de determinado político. O meu colega engenheiro-jornalista não faz esse tipo de coisa e se horroriza quando alguém faz. Talvez por isso ele nunca tenha sido promovido.

Há também um certo cinismo nisso tudo. Jornalistas formados em jornalismo assinam reportagens, artigos e colunas sobre política, ciências, informática, cinema, às vezes até medicina. A maior parte deles conhece esses assuntos apenas tangencialmente, e em muitos casos trata-se de puro chute, puro palpite. Então, cabe a pergunta: jornalista se meter a falar de medicina pode, mas um médico querer ser repórter não pode?

A juíza que concedeu a liminar contra o diploma diz que assim está defendendo a liberdade de expressão. É uma pena que o tenha feito, porque a questão simplesmente não é essa – esse argumento não interessa aos não-formados que desejam trabalhar ou que já trabalham com jornalismo.

A questão, na verdade, é garantir o livre acesso dos interessados a uma profissão que depende fundamentalmente de força de vontade, talento, criatividade, ética, inteligência e boa formação cultural, não necessariamente nesta ordem. Essa garantia deve ser dada para o bem da profissão e da sociedade em nome da qual ela é exercida, e não em função da liberdade de expressão, até porque quem trabalha em jornal está sempre exercitando a liberdade de expressão do jornal, pessoa jurídica, e não de si mesmo, pessoa física. Vale lembrar que num país civilizado nem estaríamos discutindo isso – liberdade de expressão é dogma, não há necessidade de defendê-la.

Dois últimos aspectos:

1) Acabar com a obrigatoriedade do diploma significa acabar também com boa parte das faculdades picaretas que vêm inundando o mercado com pós-adolescentes incultos, analfabetos políticos – pura massa de manobra – e, pior, iludidos pela perspectiva de uma profissão "cheia de aventuras", coisa que sabemos não ser bem assim. É justamente por causa dessas faculdades que há excesso de mão-de-obra no mercado. Se isso é verdade (e quem dirá que não é, sendo essa uma questão puramente matemática?), e se essas faculdades só existem porque o diploma é obrigatório, então a culpa pelo desemprego é do diploma obrigatório? Parece a conclusão óbvia.

2) Não há tantos não-diplomados querendo trabalhar em jornal quanto pensam os paranóicos de plantão. Citei 16 lá em cima, mas são 16 entre (é um chute, mas é por aí) uns 200 jornalistas com quem já trabalhei. Menos de 10%, portanto. Aliás, todos eles poderiam estar ganhando muito mais em suas profissões de formação. O fato é que, para desejar trabalhar numa profissão cujo atual piso salarial em São Paulo não chega a R$ 1.500 (pouco mais do que ganha uma faxineira, se ela trabalhar aos sábados também) tem de ser ou muito trouxa ou amar muito o que escolheu fazer. E essa liberdade de amar o que se faz deve ser defendida a todo custo.

(*) Jornalista não-formado