RESSACA FRANCESA
Alberto Dines
Até agora não apareceu nenhuma teoria conspiratória para acusar a CIA de responsabilidade vitória parcial da direita na França. Nem foi insinuado que a sonolência da imprensa francesa ante a ascensão do fascista Le Pen foi obra do neoliberalismo globalizante.
Mas a verdade é que a sonolência, desatenção, insensibilidade, prepotência e onisciência dos coleguinhas franceses na semana que antecedeu o primeiro turno das eleições presidenciais não pode passar em brancas nuvens.
Se alguém deve sentar-se no banco dos réus pela incapacidade de enxergar o perigo para a democracia esse alguém não é Lionel Jospin. É a mídia francesa.
Um documentário apresentado na sexta (26/4), pela TV5, emissora estatal francesa, é a prova: por diversas vezes nos 10 dias que antecederam o pleito, o candidato Le Pen, do Front National, dizia aos jornalistas: "Vamos ter surpresas, vou para o segundo turno, desta vez será diferente", etc. etc. Não era blague de candidato esperto que sabe que vai perder. Le Pen o dizia calma, reiterada e seriamente. E os jornalistas fizeram ouvidos moucos e foram cuidar da vida.
A edição de domingo (21/4, dia das eleições) do Le Monde é ainda mais aterradora pela acomodação e auto-suficiência. O importante vespertino, uma das referências mundiais em matéria de jornalismo, sai com uma edição dominical fechada no dia anterior, sábado. Aos domingos, normalmente, é um jornalão denso e desanimado.
Naquele domingo crucial, a manchete da la une (a primeira página) dizia o seguinte: "La France vote, la France intrigue" (A França vota, a França intriga). Óbvio ulutante, bocejante, convite à anestesia.
Subtítulo: "Balanço da campanha e chaves do escrutínio".
Tudo bem: o jornal respeita as regras da isenção e compartilha zelosamente do encerramento da campanha eleitoral. Não quer interferir, no que faz muito bem. Afinal, França não é Brasil e lá os jornais há muito desistiram de intervir no processo político. Reservam-se ao dever de informar.
No dossiê eleitoral do Monde, dividido em oito capítulos, um deles trata das perspectivas dos principais candidatos. O título enfatiza a incertidão dos resultados. No tópico que concerne ao Front National, o repórter admite francamente que o candidato direitista vê-se já no segundo turno no lugar de Jospin, "o que provocará um sismo político de envergadura européia". Jean-Marie Le Pen enganou-se: o sismo foi de envergadura mundial.
Acontece que esta matéria e o alerta nela embutido sairam lá na página 7, porém muito menor do que outra, ao lado, três vezes maior, em cores, mostrando como foi importante nesta campanha a exibição da vida privada dos candidatos. Irrevelante, no melhor estilo da bobajada das "Variedades" inventada pela imprensa paulista nos anos 60.
Perguntará o leitor: a imprensa francesa precisa ser mais militante? Isso não quebraria o princípio da neutralidade? O Observador não está sugerindo uma parcialidade da mídia que, em qualquer circunstância, é condenável?
Não. A mídia transformada em protagonista é um dos maiores perigos para a democracia. O Monde, criado em 1944 (com apoio do Estado francês), é uma instituição nacional. Embora de centro-esquerda deve manter-se acima das paixões e jogadas.
Mas numa eleição que o próprio jornal classifica como "intrigante" e "incerta", quando as sondagens indicam um índice preocupante de absenteísmo e alienação, chamar a atenção para o indeclinável dever de votar é obrigação jornalística, serviço cívico e público ? mesmo que voto não seja obrigatório.
Sobre o assunto, nesta edição decisiva, nenhuma linha. A ressaca do eleitor que deixou de votar foi brutal. O mea culpa da imprensa sequer apareceu.