MONITOR DA IMPRENSA
THE NEW YORK TIMES
A primavera demorou mas finalmente chegou a Nova York. Depois de meses de dias frios e cinzentos, o sol voltou a brilhar timidamente entre os arranha-céus, enquanto os pássaros se esforçam para serem ouvidos em meio ao barulho do trânsito. Só que além de mudanças climáticas, a nova estação parece também estar afetando a estabilidade emocional da imprensa na cidade ? o que à primeira vista pode ser confundido com um efeito colateral das medicações anti-alérgicas que a população inteira está tomando para combater o alto teor de pólen no ar (uma outra cortesia da primavera).
O primeiro sinal de mudança foi o anúncio de um novo editor no New York Post, o que não se constitui em grande novidade, já que o proprietário do jornal, Rupert Murdoch, costuma mudar de editores quase tanto quanto muda de terno [veja remissão abaixo]. Mas agora foi a vez do bastião jornalístico da cidade ? assim como do país e possivelmente do mundo ? o venerável The New York Times, anunciar um novo executive editor, o equivalente ao cargo de editor-chefe nas redações brasileiras.
O escolhido foi Howell Raines, que ocupa atualmente o cargo de editor das páginas de editoriais e de opinião. Mas apesar da atenção aos méritos do jornal, em contraste ao que ocorreu no New York Post, o processo de seleção do novo editor no New York Times não deixou de ter uma certa dose de suspense que deliciou aos analistas da política interna do jornal, conhecidos nos meios de comunicação como Times kremlinologists. O fato é que as apostas estavam mais fortes para Bill Keller ? considerado por muitos como o herdeiro intelectual do atual editor, Joseph Lelyveld ? e que como managing editor (gerente editorial) já estava na segunda posição da hierarquia da redação.
Dentro de uma lógica puramente jornalística, Keller deveria ter sido a escolha óbvia. Mas lógica e jornalismo são duas palavras com um sério problema de concordância em uma mesma sentença, especialmente quando o nome de um barão de mídia aparece como parte da equação. Com o New York Post, por exemplo, Ruppert Murdoch não hesitou em nomear Col Allan, um compatriota australiano sem a menor experiência na imprensa americana, para garantir a linha editorial populista e conservadora do jornal. E apesar das aparentes diferenças, a decisão final de Arthur Sulzberger Jr., membro da família proprietária do grupo The New York Times Company e atual publisher do jornal, também foi motivada pelo desejo de garantir uma filosofia editorial. No caso, estendendo a linha política liberal pró-democrata que Raines vinha mantendo nas páginas editoriais, acoplada a um maior enfoque nacional em detrimento da cobertura internacional, que apesar de ser um dos aspectos mais tradicionais do jornal, incorre em custo muito maior de produção.
Um fator relevante para a concretização desse quadro é a estreita ligação profissional entre Raines e o próprio Sulzberger, já que na direção da seção editorial e de opinião Raines responde diretamente ao publisher e não ao executive editor ? que, por sua vez, não responde a ninguém, pois tem por princípio liberdade absoluta em decisões jornalísticas. Como em muitos outros jornais, o problema é que existe também no New York Times um confronto entre os interesses comerciais e as aspirações jornalísticas da empresa, especialmente em um período de retração nas receitas publicitárias como ocorre agora. Na visão de Sulzberger, os quase 8 anos de contato direto com Raines poderiam se tornar eventualmente em um passe indireto de acesso ao topo da redação do jornal, amenizando em parte o antagonismo aos cortes orçamentários que já estão acontecendo e que tendem a se acentuar no futuro.
Só que a lógica empresarial da escolha contrasta com a tradição do jornal. Desde o longo reinado de A.M. Rosenthal na chefia da redação, de 1969 a 1986, seguido por Max Frankel (1986 a 1994) e finalmente por Joseph Lelyveld, a partir de 1994, todos os executive editors do jornal tinham em comum o fato de serem judeus e nova-iorquinos, refletindo o grupo social de maior peso entre os leitores. Era justamente em função desta compatibilidade de interesses entre a redação e os leitores que a seção internacional se elevou acima da média dos outros grandes jornais americanos, tendo como ponto de apoio um interesse inerte do público leitor judaico pela política internacional, tanto em função das perseguições aos judeus na Europa como pelo conflito com os países árabes após a criação do estado de Israel.
Em contraste, Howell Raines nasceu e cresceu no sul dos Estados Unidos, na cidade de Birmingham, estado de Alabama, no centro do chamado Bible Belt ? um corredor geográfico no sul do país com forte presença evangélica e predominantemente conservador, nacionalista e republicano. Além disto, ao longo de uma carreira de quase quatro décadas e desde 1978 a serviço do The New York Times, a única experiência internacional de Raines foi um ano como correspondente em Londres, em 1987. Em comparação, ele passou quase 10 anos em Washington, de correspondente na Casa Branca a chefe de sucursal, culminando com o período à frente da seção editorial do jornal, já na sede da empresa, em Nova York.
Mas se uma análise de seu currículo profissional indica uma possível perda de espaço da cobertura internacional no primeiro caderno, é certo que a linha editorial se consolidará em torno do ideal liberal-democrata. O fato é que Raines foge ao estereótipo do sulista americano, e sob sua liderança houve uma transformação radical da seção editorial do jornal ? do centrismo político típico dos democratas-conservadores da era de Ronald Reagan para a esquerda do atual espectro político americano, exemplificada por Al Gore. E neste aspecto, ele está em perfeita sintonia com o público leitor.
Infelizmente, é justamente o sucesso da sua longa gestão perante a formalidade das páginas editoriais que traz à tona seu distanciamento do ritmo frenético de uma redação, pondo em risco a continuidade e dinamismo do jornalismo do New York Times. E decorre deste panorama um certo desencanto da própria redação com a escolha de Raines, já que o seu ex-rival para o posto, Bill Keller, era um editor presente no dia-a-dia da redação. Mas quaisquer que fossem os atributos profissionais de Keller, no final suas chances eram reduzidas devido aos mecanismos internos da empresa, que ditam uma aposentadoria compulsória aos 65 anos. Portanto Keller, com 52 anos de idade, poderia ter uma gestão de até 13 anos, considerada excessiva pelos proprietários do jornal, enquanto que Raines, com 58 anos, terá menos de sete anos de comando.
A peculiaridade da situação é que enquanto a longevidade profissional é uma virtude em qualquer outra empresa, para os proprietários do The New York Times quanto menor a gestão, melhor. É uma forma sutil de evitar a formação de uma nova ditadura editorial no seu pequeno Kremlin em Nova York.
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