Autores, idéias e tudo o que cabe num livro
Máfia das propinas – Investigando a corrupção em São Paulo – Editora Fundação Perseu Abramo, 232 páginas, R$ 20,00 – (11) 5571-4299 – editora@fpabramo.org.br e editoravendas@fpabramo.org.br
Dezembro de 1998. A TV mostra no horário nobre o chefe da fiscalização da Administração Regional do bairro de Pinheiros – um tipo de subprefeitura da cidade de São Paulo – extorquindo R$ 30 mil de uma pequena empresária para conceder o alvará para sua academia de ginástica. O efeito das imagens foi devastador: iniciou uma onda de indignação na população, que passou a exigir a apuração da denúncia.
Imprensa, polícia e vereadores da oposição começaram um exaustivo trabalho de investigação que durou meses e tornou pública a existência da "máfia das propinas" – um esquema de corrupção incrustado na administração e que promove um sistemático assalto aos cofres públicos da cidade de São Paulo.
A apuração da máfia das propinas serviu para muita coisa. Cassou mandatos, condenou envolvidos, constrangeu pessoas que sempre viveram nos caminhos da mais absoluta impunidade. E, além de tudo isso, propiciou resultados surpreendentes e fundamentais para o futuro da cidade de São Paulo.
Desnudou os esgotos da política paulistana. Começou a fazer as pessoas perceberem que o desvio de dinheiro público afeta, de modo concreto, a sua qualidade de vida. Iniciou um processo de discussão sobre as relações entre a corrupção e a exclusão social. Despertou consciências. Preparou o despertar de outras que estão por vir.
Em Máfia das propinas – Investigando a corrupção em São Paulo, José Eduardo Cardozo – vereador que presidiu a CPI que apurou as denúncias – narra o dia-a-dia das investigações e as batalhas políticas contra o esquema de corrupção que domina a cidade desde 1993 – e quer continuar dominando.
O autor
José Eduardo Cardozo nasceu em São Paulo (SP) em 1959, é casado, professor de direito administrativo e filosofia do direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), do setor de pós-graduação da Unisantos e do curso para ingresso na Magistratura e Ministério Público, coordenado pelo professor Damásio de Jesus. Mestre e doutorando em direito, é advogado e procurador do município de São Paulo desde 1982; foi secretário de Governo do município de São Paulo (1989 a 1992). Exerce mandato de vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em São Paulo desde 1995.
Presidiu, de março a junho de 1999, a CPI da máfia das propinas, que apurou denúncias de irregularidades cometidas por servidores públicos, particulares e agentes políticos em atividades de fiscalização, cessão e licenciamento na cidade de São Paulo. Apesar de ter sua continuidade barrada pelo bloco situacionista, a CPI propôs a cassação de mandatos de três vereadores (dois deles cassados pela Câmara Municipal) e de um deputado estadual (ex-vereador, cassado pela Assembléia Legislativa de São Paulo). É autor do livro Da retroatividade da lei (Editora Revista dos Tribunais).
Dalmo de Abreu Dallari (*)
Este livro é um registro para a história, mas, além disso – e neste momento isto é mais importante ainda –, é um grito de alerta para que o destino de milhões de pessoas que vivem e trabalham na cidade de São Paulo não fique nas mãos de políticos desonestos, que colocam seus interesses pessoais acima do interesse público e da dignidade do povo.
O autor, que é um dos membros mais ativos da Câmara Municipal de São Paulo e um dos mais empenhados no combate à corrupção, colheu enorme soma de informações, precisas e minuciosas, sobre a vasta e extremamente ramificada malha de desonestidade que abrange praticamente a totalidade dos órgãos públicos do município de São Paulo. Este livro contém informações seguras e atualizadas sobre pessoas que, às vezes ostentando prestígio político e social, são na realidade desonestas, sem respeito pela coisa pública e insensíveis ao sofrimento da população mais pobre. Essas pessoas, agindo ostensivamente ou nos subterrâneos da administração pública, roubam o dinheiro do povo e influem poderosamente para que os serviços públicos sejam de má ou péssima qualidade, além do que, com o desvio ilegal e imoral de recursos públicos, contribuem para que a marginalização social seja cada vez mais grave.
Neste livro são apontadas nominalmente, com bastante coragem e espírito público, pessoas que vêm usando os cargos públicos sem nenhuma consideração pelo direito e pela ética, buscando, antes de tudo, prestígio político ou enriquecimento pessoal, ou ambos, à custa dos sacrifícios do povo e freqüentemente usando discurso demagógico e simulando iniciativas sérias, muitas vezes com boa cobertura da imprensa, para criar a ilusão de honestidade e interesse pela causa pública. O autor trata desses assuntos com grande autoridade, tanto autoridade moral que decorre da transparência de seus atos e da coerência e continuidade de suas atitudes, quanto a autoridade que resulta do profundo e seguro conhecimento que tem dos fatos aqui narrados. Atuando permanentemente em comissões de investigação ou fazendo suas próprias averiguações, recebendo informações e documentos de pessoas dispostas a colaborar para o desmantelamento da rede de corrupção que infelicita São Paulo, acompanhando de perto as ações do Ministério Público, José Eduardo Martins Cardozo reuniu uma soma interessante de dados e conseguiu apresentá-los de modo claro e direto, em linguagem facilmente compreensível.
A leitura deste livro será de extrema utilidade para os estudiosos dos costumes políticos e das manipulações jurídicas, mas será também de utilidade imediata e permanente para a formação da cidadania. Aqui se ficará sabendo da participação, em práticas desonestas, de prefeitos e vereadores, funcionários municipais de diferentes setores da administração ou de seus órgãos de controle, servidores do mais alto escalão ou ocupantes de cargos subalternos, assim como de pessoas e empresas que militam em atividades privadas mas com alguma espécie de interferência na aplicação de recursos financeiros do município.
Tudo o que vem aqui exposto será extremamente útil para uma reflexão sobre os modos de penetração da corrupção no setor público e sobre os prejuízos institucionais e materiais que dela decorrem. Ao mesmo tempo, a leitura deste livro chama a atenção paras dificuldades que acompanham o esforço para a implantação da democracia onde há muitas injustiças sociais, pobreza e tradição de autoritarismo, com o povo despreparado para assumir responsabilidades públicas e com elites habituadas a desprezar o direito e a Justiça.
Numa das mais importantes obras dedicadas ao estudo da democracia representativa e seus problemas, publicada no século XIX e intitulada Governo representativo, o filósofo político e economista Stuart Mill diz que a participação dos cidadãos no governo é uma escola de espírito público, mas chama a atenção para o fato de que foi dada aos cidadãos a possibilidade de participar da vida pública escolhendo governantes, sem o cuidado de educar as pessoas para o exercício dessa atividade de escolha. Diz ele que a tarefa de escolher as pessoas mais capazes é das mais difíceis e, no entanto, nenhuma outra tem sido exercida tão precariamente. Isso foi escrito no século XIX e o que se teve depois foi a ampliação do direito de votar, ou seja, a extensão do direito de exercer a função de escolher governantes a camadas mais amplas da população. Mas, ou por interesse de elites privilegiadas e acostumadas a mandar ou por conveniência de dirigentes partidários desonestos, não tem havido o cuidado de chamar a atenção do povo para a importância dessa função pública e para as conseqüências da escolha malfeita. Demagogia e corrupção andam de mãos dadas.
Um dado muito importante, que este livro põe em evidência, é que muitos dos demagogos e corruptos chegaram aos cargos públicos por eleição popular, sendo ainda mais grave o fato de que muitos deles foram reeleitos mesmo depois de se ter conhecimento, por intermédio da imprensa, de que eram apenas isso, demagogos e corruptos. Avaliando o trabalho desenvolvido no município de São Paulo visando o combate à corrupção, o autor reconhece que, pelo grande esforço despendido e pelas provas colhidas, os resultados práticos ficaram muito longe do que se pretendia e do que seria necessário, o que gerou decepção e desânimo em muitos que acreditavam em resultados inéditos.
Nesse ponto a obra de José Eduardo Martins Cardozo tem o valor de denúncia e também de advertência e estímulo, neste momento em que se inicia formalmente a campanha eleitoral nos municípios. O povo tem o direito de escolher prefeitos e vereadores e é indispensável que esse direito seja mantido e respeitado, mas deve ser alertado para que o exerça com responsabilidade e este livro é um alerta. É preciso que se mostre claramente que é um erro grave barganhar ou vender o voto, recebendo promessas de ajuda ou qualquer vantagem pessoal para dar o voto e o apoio a políticos desonestos.
Conclui o autor, com serena e firme convicção, que valeu a pena ter lutado com tanto empenho contra a corrupção nos setores públicos de São Paulo, pois, apesar de terem sido aparentemente pobres os resultados práticos obtidos, esse trabalho contribuiu para o despertar da consciência de muitos cidadãos. Este livro é uma continuação dessa luta e, com toda certeza, será mais uma importante contribuição para a caminhada no sentido da implantação da ética na vida pública e da construção de uma sociedade democrática, fundada na justiça social.
(*) Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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