"ESTOU PARA MORRER. PODEM PUBLICAR"
"Covas, o estóico", copyright O Estado de S. Paulo, 17/01/01
"Foi constrangedor ver na semana passada o governador Mário Covas, ao empossar o presidente da Febem, que vai gerir uma das áreas mais delicadas e complexas da gestão do Estado, perder o rumo do discurso, tropeçar nas palavras e se perder no labirinto da semântica. Foi assustador, principalmente depois que se soube anteontem que os lapsos foram provocados pela metástase no cérebro. Um adversário insensível poderia exigir seu impedimento, como um ganancioso que deseje meter a mão na herança gorda de um parente incapaz. Mas nenhuma voz se ergueu para contestá-lo.
A massa, que tantas vezes costuma comportar-se com crueldade, repetindo os polegares abaixados que decretavam a morte dos gladiadores nos circos romanos, chega a ser piegas quando encontra motivo para a piedade coletiva.
De certa forma, isso se repete no caso da grave doença de que é vítima o governador paulista. Só que no caso desse aplauso comovido ao doente, que resolveu expor publicamente as deficiências orgânicas impostas pela moléstia, há também um componente de sabedoria política.
A exposição por Covas de suas debilidades é, antes de tudo, se não inédita, pelo menos singular. A geração anterior à dele no comando dos destinos da República, ainda impregnada da ilusão coletiva de que o político deveria ser visto como uma espécie de super-herói com máculas, mas com direito a várias blindagens, inclusive morais, escondia suas doenças.
Petrônio Portela, o mais incentivado dos políticos civis que serviram à ditadura militar para o projeto da abertura democrática sob controle do topo, praticou suicídio involuntário, ao recusar consultar um médico em pleno infarto. Tancredo Neves, escolhido para realizar o pacto da saída sem dor do regime duro, mas apodrecido, rumo à democracia, também se deixou sacrificar, permitindo que a doença avançasse para que as tropas não saíssem dos quartéis para impedir sua posse.
Nesta nova democracia, inaugurada não pelo herdeiro indireto de Vargas e Juscelino, mas por seu vice, José Sarney, a imagem do político profissional sofreu uma reviravolta. Safadezas antes recônditas, expostas às escâncaras no noticiário, mudaram no Brasil, como já ocorrera no mundo, essa figura do vinho forte para a água suja, invertendo o milagre de Canaã. O gestor público deixou de ser o pastor encarregado de evitar a queda do rebanho abismo abaixo e passou a ser execrado como um canalha sem remissão, alguém incapacitado para o exercício de alguma atividade profissional privada, seja por incompetência, seja por indecência. ‘Todos são farinha do mesmo saco’, proclama o imaginário popular, auxiliado ora pela repetição freqüente dos exemplos que comprovam a regra, ora pela esperteza dos malandros, que fazem questão de se misturar aos honestos para queimá-los. Mas essa imagem também é falsa.
Ao se expor ao risco da reação emocional da população, seja pela galhofa, seja pela comiseração, com idênticos resultados desastrosos para a política e a administração, Mário Covas cumpre a tarefa didática de mostrar que o administrador democrata republicano não é o super-herói sem mácula nem o viciado sem virtudes. É apenas gente.
A blindagem do pai dos pobres do passado dava às elites que tinham acesso ao poder, ou o tomavam de assalto, a vantagem de manter a patuléia a distância, entorpecida com pesadas cargas de ilusão. A calúnia segundo a qual todos os políticos são abomináveis também é conveniente para os que querem continuar chafurdando na impunidade geral reinante, mesmo após a abertura das comportas dos escândalos pela imprensa. Entre um extremo e o outro, a exposição nua e crua do ser humano submisso aos caprichos insondáveis da natureza animal e soberano senhor de seu destino tem um saudável efeito didático: ao cidadão comum, que elege seus governantes por sua decisão pessoal e intransferível, é útil saber que o eleito não passa de seu reflexo, e não um reflexo pelo avesso, como num espelho, mas, sim, direto.
Os políticos são capazes de grandezas e de mesquinharias, como qualquer um de nós: estão submetidos às baixas tentações carnais, da mesma forma como têm acessos de elevações do espírito. O Covas poderoso e turrão é apenas um animal falível, cuja vida depende de um sopro – o quase nada, que é tudo.
Neste instante, sua debilidade é sua grandeza, pois, ao exibi-la, desta forma quase indecente como o faz, ele não deixa de estar chamando cada cidadão à responsabilidade da qual tem sido cômodo fugir. Por que os políticos seriam super-heróis, se são eleitos por nós, que não carregamos medalhas no peito? Por que só são eles os canalhas, e nós os santos, se são feitos do mesmo estofo que nós e – pior – se somos nós que os fazemos? Só em nos fazer perceber isso, Covas, o estóico, está cumprindo um memorável papel histórico. (José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde)"
"Covas demonstra cansaço e desabafa", copyright O Estado de S. Paulo, 17/01/01
"Os últimos dias têm sido especialmente difíceis para o governador Mário Covas. Diante das notícias do agravamento do seu estado de saúde, ele vem demonstrando coragem para enfrentar as adversidades. Têm-se tornado mais freqüentes, porém, demonstrações de fragilidade, como ocorreu ontem no Palácio dos Bandeirantes. Incomodado com o número muito superior de jornalistas ao que normalmente o acompanha, Covas irritou-se com o assédio.
‘Estou para morrer. Pode publicar no jornal’, reagiu. Embora pareça contraditório, o governador, segundo assessores, estava irritado com ele mesmo, por não controlar os efeitos da doença em seu corpo. Sua reação ao assédio da imprensa veio ao deixar a sala, na qual participou da reunião do Programa Estadual de Desestatização (PED). Um batalhão de jornalistas o aguardava do lado de fora.
O governador tentou deixar o local caminhando com o auxílio de assessores e utilizando uma bengala. Novamente não lhe faltou coragem, mas sim força nas pernas. Foi obrigado a voltar para a cadeira de rodas, que o conduziu para a reunião, onde discutiu a privatização da Cesp-Paraná. Era a segunda vez, no mesmo dia, que aparecia diante de fotógrafos e cinegrafistas sem conseguir caminhar.
O incômodo que lhe causou a utilização da cadeira de rodas, chegou a ser verbalizado pelo governador, quando deixou por alguns instantes a reunião do PED para atender o secretário de Recursos Hídricos, Mendes Thame, e o procurador-geral de Justiça, José Geraldo Brito Filomeno. ‘Agora vocês mostrem que estou sendo carregado e estou acabado’, disse em tom irônico.
Foi o primeiro contato de Covas com a imprensa, depois que seus médicos anuciaram a descoberta de um novo foco de câncer, localizado na meninge.
Forças – Mesmo antes de saber do resultado dos exames feitos na última sexta-feira, Covas já havia adotado o trabalho como forma de buscar forças para enfrentar a doença, como afirmam seus assessores que, sem sucesso, tentaram frear sua agenda de compromissos.
Até mesmo sua filha Renata, identificada no Palácio dos Bandeirantes como ‘a única pessoa que segura Covas’ foi convocada. Resultado: acompanhou o governador no último sábado a São José dos Campos, para a inauguração de uma obra viária, mesmo sabendo que o pai estava contrariando as ordens médicas de permanecer em repouso.
O governador não vai repousar. Sua assessoria divulgou no final da tarde de ontem sua agenda para os próximos dias, carregada de compormissos. Hoje, pela manhã, participa no Palácio dos Bandeirantes da posse do secretário da Fazenda, Fernando Dall’Acqua. Amanhã entrega 81 unidades habitacionais em Itapecirica da Serra, na Grande São Paulo. Em seguida, vai a Pirapora do Bom Jesus, na Região de Sorocaba, para entregar 11 quilômetros de pavimentação da rodovia que liga a cidade à Rodovia SP-380.
Na sexta-feira, o governador estará em São Vicente, na Baixada Santista, para a entrega de mais 72 unidades habitacionais. No sábado, em Suzano, na Grande São Paulo, Covas entregará quatro quilômetros de obras na SP-66.
Ainda volta à capital para inaugurar, na zona Leste, o programa Qualis.
Os secretários André Franco Montoro Filho (Economia e Plenaejamento) e Mauro Arce (Energia), que participaram da reunião do PED, afirmaram que o governador estava bem. Ambos não escondiam a irritação com as declarações de um advogado, feitas a uma emissora de rádio, nas quais defendia que a Assembléia Legislativa deveria interditar o governador, por causa da doença.
‘O governador está em pleno exercício do poder, com total discernimento’, reagiu Montoro Filho. ‘O problema da locomoção não o impede de continuar governando’. Tanto os secretários quanto o vice- governador Geraldo Alckimin descartaram qualquer possibilidade de o governador se afastar do cargo."
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