ENTREVISTA / EDUARDO MARTINS
"?A exigência do diploma limita a descoberta dos bons textos?", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 31/7/02
"A vida de Eduardo Martins não se define em uma simples oração. É composta de dois períodos principais: ?A.M.? e ?D.M.?, antes e depois do Manual, como ele costuma dizer. A primeira fase começa em 1956. Ele tem 17 anos e ingressa no Estado para cuidar da seção de palavras cruzadas. Início emblemático. Lá se vão quarenta e seis anos. De palavras e de Estadão.
Cláudio Abramo, Nilo Scalzo, Clóvis Rossi, Miguel Jorge, Augusto Nunes… Teve vários e bons chefes de redação. Na verdade, um punhado de gente, comparado às centenas e centenas de colegas que Eduardo, desde os primeiros tempos, se habituou a orientar.
Já dizia o Ari Schneider na revista Jornal dos Jornais, em um artigo de junho de 2000: ?Aos 23 anos era o segundo homem na hierarquia da redação, abaixo apenas de Nilo Scalzo, que sucedeu a Cláudio Abramo na função. Com uma vantagem especial, apontada por vários colegas que trabalharam com ele – Eduardo sempre soube dar instruções claras e precisas sobre o que esperava da matéria?. O artigo abria a entrevista com o ?Homem do Manual?. O subtítulo: ?Autor do Manual de Redação e Estilo (…) diz que ?um bom texto garante um bom emprego?.?
Grandes tempos aqueles, digo eu… Primeiro porque o meio está tão enxuto (sim, trata-se de um eufemismo) que se bobear Camões vai trabalhar em lava-rápido. Segundo porque tenho lido muita bobagem, e isso me leva a pensar que hoje é preciso bem menos do que um texto razoável para ostentar um crachá. Paradoxo…
Em frente. Eduardo costurou suas palavras como redator, repórter, chefe de reportagem e editor de quase todas as seções do jornal. Entre elas, a de Política, nos ?anos de chumbo? da ditadura militar. Incluam-se aí aqueles dias de recheio com textos culinários para tapar o buraco cavado pelos censores. Camões não usava crachá, mas virou colega de redação. Contra a censura, trechos de ?Os Lusíadas?. Tudo bem, o português era mesmo dado a aventuras…
Eduardo, pelo visto, identifica-se com a permanência. Estável, persistente. Contudo, os anos de dedicação ao jornal e ao aperfeiçoamento de seus pares o empurrariam, ironicamente, para fora de casa. Veio, pois, o Manual de Redação e Estilo. Eduardo conversara algumas vezes com Miguel Jorge sobre a importância de uniformizar o texto do jornal. Um belo dia veio a ?encomenda?, a pedido de Miguel Jorge e Júlio César Mesquita, diretor da unidade de negócios Estado. 1990. O ?D.M.? do Eduardo foi avassalador.
O ?Estadão? ficou pequeno. Transbordou e deixou-se conduzir pela experiência de um de seus colaboradores mais tenazes, avançando por mil e um regatos. Por cinqüenta semanas o Manual figurou na lista dos livros mais vendidos da revista Veja. Em doze anos, foram três edições e 800 mil exemplares. O jornal bancou metade desse número para distribuir aos assinantes. A edição da Moderna ganhou as livrarias de todo o País. Hoje o livro é adotado até mesmo nas escolas, sob a ressalva do autor: ?O Manual não substitui a gramática?.
Em 99, Eduardo lançou ?Com Todas as Letras – O Português Simplificado?, publicado pelo jornal (para distribuir aos assinantes) e pela editora Moderna. A obra reúne e adapta textos da coluna ?De Palavra em Palavra?, do suplemento infantil ?Estadinho?. Mostra os principais erros de Português e ensina como evitá-los, além de oferecer noções de ?escrita simples, fluente e elegante?. Num total de cinco semanas, o título integrou a lista dos mais vendidos da Veja. Só no primeiro ano foram 25 mil exemplares. ?De Palavra em Palavra? é também o nome de um programa de Eduardo na rádio Eldorado AM, de São Paulo. No ano passado, foi premiado com o Troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), no quesito Cultura. O programa está suspenso por falta de patrocínio. Pois é… O Big Brother, não.
Hoje Eduardo Martins é gerente do Centro de Documentação e Informação do Grupo Estado. Entre outros projetos ele pretende digitalizar todos os exemplares do Estadão desde a fundação do jornal, em janeiro de 1875. Um trabalho já iniciado pelo setor, mas ainda distante da conclusão.
A seguir, trechos de duas horas de conversa com um dos jornalistas mais consultados pelas principais redações do País.
José Paulo Lanyi – Como o jornalista em geral está escrevendo?
Eduardo Martins – Se eu fosse comparar com os jornalistas que estão na faixa dos cinqüenta anos ou um pouco mais, eu diria que esse pessoal mais velho está escrevendo com mais criatividade. Às vezes eu acho muito mais criatividade num texto desses jornalistas mais antigos do que das pessoas que estão começando, quando na verdade o oposto é que deveria acontecer.
Os mais antigos já desenvolveram um estilo próprio e são pessoas que entraram nos jornais na época em que não era obrigatório ter o diploma de jornalista. A carreira dessas pessoas era basicamente feita de leitura. Você procurava um jornal porque tinha lido muito, achava que sabia escrever… Então, você procurava o jornal e fazia um determinado teste. A pessoa ou te colocava na redação durante uma semana, um mês, você escrevia algumas notícias, ia fazer uma reportagem, escrevia e, digamos, os macetes da profissão, as normas jornalísticas você ia aprendendo ali, à medida que isso ia sendo necessário.
Você tinha vários tipos de texto dentro de um próprio jornal. Não é que o jornalista hoje em dia esteja escrevendo mal. O jornalismo hoje em dia tem alguns vícios e alguns deles me incomodam. Um desses vícios é a limitação excessiva do vocabulário. Ninguém quer que você vá usar palavras rebuscadas, que as pessoas não identificam. Mas acontece que a simplificação às vezes é feita por atacado. Ocorreu uma escolha de determinadas palavras, substantivos ou verbos, que são usadas com vários sentidos. É o que em gramática se chamaria de ?palavra-ônibus?. Existem palavras específicas para situações específicas. Como as pessoas estão lendo menos, perdem às vezes a noção dessas palavras específicas que definem determinadas situações.
Por exemplo: o verbo implantar está sendo usado tanto para criar como para adotar. Você deveria dizer: ?eu vou adotar novas normas na minha empresa?. Mas muitos usam ?eu vou implantar novas normas…?. Quando implantar tem um sentido específico; você põe em prática alguma coisa que já estava em estudos ou estava em andamento. No entanto, o espectro do ?implantar? se ampliou brutalmente. Outro verbo recente, que eu chamo de o indigitado ?disponibilizar?, esse por influência da Internet: você não lê nada que não seja ?disponibilizado?.
Ocorreu também com ?patamar?. De repente desapareceram as palavras nível, taxa, desapareceu tudo. ?Os patamares dos juros…? Não são os ?patamares?, são as taxas de juros que estão elevadas. Outro dia eu peguei um texto da Internet: ?Feriados alavancam vendas?. Deveria ser apenas ?Feriados aumentam vendas?. Por que não ?aumentam??
JPL – Mas como é que esses jornalistas aumentariam as coisas se não existisse a alavanca? Me diga…
EM – Pois é… E as palavras que vão adquirindo um sentido diferente? Elas passam a ser verdadeiros curingas… Uma delas é ?reverter?. Reverter é o quê? Voltar à situação inicial, por isso você tem um carro com capota reversível, você tira e depois põe a capota na situação inicial. Hoje o reverter é usado para modificar, para tudo que você queira. Um time que está perdendo não quer reverter o resultado, e sim inverter o resultado, porque reverter seria voltar ao começo do jogo, e isso é impossível.
JPL – Existe um ?contágio? nisso…
EM – Esse é o grande problema. Às vezes essas coisas começam em determinadas colunas assinadas. Claro, um cara que escreva uma coluna assinada e queira ter um estilo próprio tem todo o direito de ter. Mas transpor aquilo para o noticiário… Aí a coisa já fica mais complicada.
JPL – Você disse que, anos atrás, antes da exigência do diploma, as pessoas que procuravam o jornalismo eram mais bem formadas. A obrigatoriedade do diploma pode ser prejudicial ao meio?
EM – O que é ruim na questão do diploma é que ela limita o seu universo de escolha. Um exemplo bastante expressivo: o doutor Dráuzio Varella. Escreveu um livro muito bem escrito, o Estação Carandiru, escreveu um outro sobre o Brás, um livro também interessante… Tem escrito artigos na Folha nos quais você não pega um tipo de problema. Ele tem noção de terminologia, da construção de frases.
Antes você poderia chegar à faculdade de Direito do Largo São Francisco e contratar uma pessoa de lá para trabalhar no jornal. Eu trabalhei aqui com o Vladimir Herzog, ele era formado em Filosofia, trabalhei com o Luiz Weiss, que hoje é articulista do jornal e era formado em Ciências Sociais, trabalhei com pessoas que vieram do Largo São Francisco, outras formadas em História… Na verdade, essas faculdades mais ligadas às Ciências Sociais ou às humanidades eram o grande celeiro do jornal.
JPL – As faculdades de Jornalismo têm falhado?
EM – Eu acho que elas têm falhado. As faculdades de Jornalismo deveriam ter Língua Portuguesa e Estilo ou até duas cadeiras, uma de Língua Portuguesa e outra de Estilo, do primeiro ao quarto ano. Os alunos que entram lá deveriam reaprender o uso da crase, o uso da concordância… O reaprender aí é até elogioso, porque muitas vezes eles não aprenderam, não por problema deles, mas por causa das escolas. Às vezes a escola não dá o programa completo. Hoje em dia, por exemplo, o principal erro que eu encontro no jornal é o de concordância. Há dez anos, era o de crase, hoje a concordância passou o erro de crase.
JPL – Qual é o balanço que você faz desses 12 anos do Manual de Redação?
EM – Uma coisa que gratifica muito a gente, tanto a mim como a empresa, é o uso do Manual não apenas por jornalistas. O uso do Manual por pessoas especializadas talvez chegue a 20%. Os outros 80% são pessoas que escrevem, traduzem, que fazem relatórios para empresas, advogados, médicos, administradores, um pessoal que encontrou no Manual do Estado uma forma simples de esclarecer as dúvidas mais comuns que têm.
JPL – No início havia alguma resistência dos jornalistas por terem de seguir o manual?
EM – Essa resistência ainda existe, ela também existe na Folha e em todo lugar, porque o jornalista parte do princípio de que estão colocando nele uma camisa-de-força. Acho que é uma idéia errada, porque não há nada que seja proibido de fazer, de escrever de uma maneira elegante, correta usando o manual tanto do Estado como o da Folha.
JPL – O problema não é a auto-suficiência do jornalista? Ele não se sente muito orgulhoso?
EM – Eu acho que é menos a auto-suficiência, porque se fosse o pessoal que não é obrigado a usar, como o do Jornal da Tarde, também não consultaria. Acho que é um pouco mais essa resistência de quem diz: ?Bom, é pra usar? Então eu não vou usar?.
JPL – É a rebeldia natural do jornalista…
EM – A rebeldia natural… Agora, essa resistência acho que deve existir no New York Times, na Associated Press, que também tem um belo manual de redação, o Washington Post tem manual de redação…. A pessoa vai se sentir tolhida mesmo que concorde com 98% do manual.
JPL – Quem são os melhores textos do jornalismo brasileiro?
EM – Não preciso nem pensar muito. Gosto muito do texto do Luis Fernando Veríssimo, do Clóvis Rossi, que foi meu colega aqui no jornal, do Elio Gaspari. E há outros, como o do Augusto Nunes, José Maria Mayrink, Geraldo Mayrink, Mino Carta, Luiz Weiss, Fernando Portela, Ricardo Kotscho, Dora Kramer, Lourival Sant?Anna… Eu sei que há pelo menos uns vinte nomes a acrescentar.
JPL – Então, em matéria de texto o jornalismo brasileiro ainda está muito bem…
EM – A maioria dos grandes textos é de pessoas que estão na faixa dos 50, e eles não foram repostos à altura. Da geração seguinte, admiro textos como o do Luciano Suassuna."