Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Paulo Lanyi

KFOURI, LULA E COLLOR

“A imprudência de Juca Kfouri”, copyright Comunique-se, 1/09/02

“O artigo de Juca Kfouri que critica a jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, e referenda a versão de que o jornalista Ronald Carvalho foi o único responsável pela edição torta do debate entre Lula e Collor, em 89, no Jornal Nacional, me remete a um manifesto do intelectual francês Émile Zola, publicado em janeiro de 1898 no jornal L?Aurore.

Zola, eminente escritor naturalista, redigiu uma carta intitulada ?Eu acuso?, uma crítica formidável contra o establishment, um libelo contra a prisão do capitão do exército Alfred Dreyfus, sobre quem recaía a pecha de traidor da Pátria – em favor dos alemães – e que anos mais tarde foi inocentado e condecorado com a Legião de Honra. Zola acusava o governo francês de racista: Dreyfus, de origem judia, fora condenado a passar seus dias de ?traidor? na antiga e, digamos, nada hospitaleira colônia penal encravada na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa.

Mas o que uma coisa pode ter a ver com a outra? – você, caro leitor, deve estar se perguntando. À primeira vista, nada. Um olhar paciente, no entanto, pode ajudar a entender por que um jornalista da estatura de Juca Kfouri tenha aceitado tão passivamente a versão de Ronald Carvalho – que assume sozinho a edição ?antidemocrática? do debate Lula-Collor.

Alguns colegas acusam Kfouri de beneficiar amigos poderosos, por isentar peremptoriamente a participação de Alberico Souza Cruz, Armando Nogueira e Alice-Maria no episódio – todos eles, superiores hierárquicos de Ronald Carvalho. Lembre-se que, desde então, Alberico tem sido exaustivamente citado como co-responsável por essa edição – bem como Ronald Carvalho, que teria recebido ordens do primeiro para dar uma ?corzinha? à edição.

Kfouri diz não ter dúvida: a versão de Carvalho basta. Eu, Mônica Bergamo e o resto do mundo não temos dúvida: não basta. No entanto, acusar Juca Kfouri de querer ajudar amiguinhos, como alguns têm sugerido, é infame, para quem conhece a vida e o caráter desse grande jornalista.

Sou tentado a trilhar outro caminho – o de que Kfouri fez de si próprio um Zola; e de Alberico, o seu Dreyfus particular. Sim, particular, esse é o termo. Pois Kfouri está isolado em sua convicção – ouvir uma só versão – de um envolvido até o baço – e dá-la como verdadeira não pode ser nada mais do que isso. Jornalismo, como o Juca sabe fazer melhor do que eu e muita gente, certamente, desta vez, não é.

Na França do finzinho do século retrasado, a atmosfera era típica dos períodos de crise institucional. O ?Caso Dreyfus? arrebatou os intelectuais de orientação liberal contra o veredicto condenatório do tribunal militar e contra todos os defensores da farsa: a direita, o exército e a igreja católica. Antes mesmo de Zola, outros críticos já se haviam manifestado, como o romancista Anatole France e o poeta e ensaísta Charles Péguy, na grande denúncia contra a opressão do estado, colorida pela mentira de cunho racista.

Uma outra época, um outro povo, um fato divorciado daquele que fomos obrigados a testemunhar, sentadinhos no sofá da sala.

Mas a essência do artigo de Juca, publicado na revista Carta Capital e reproduzido pelo site Observatório da Imprensa, me faz crer que o articulista, em sua permanente busca pela verdade, deslizou, atrapalhado pela presunção de querer ser mais realista do que o rei.

Sem delongas, classifica de ?inverdade? uma nota publicada na coluna de Mônica Bergamo na Folha, que, entre outras coisas, diz que ?[Alberico] … é competente mas não consegue se livrar do fantasma de ter sido o responsável direto, em 89, da famosa edição do debate entre Lula e Collor na TV Globo?.

Ora, se é verdade ou não, é difícil saber, pois essa conclusão também se baseia em versões. De várias outras pessoas – envolvidas ou não no episódio. Em todo caso, o ?veredicto? é alicerçado em investigações jornalísticas que se fizeram às minúcias por aí. Agora, ?difícil saber? é uma coisa; ?verdade? e ?inverdade? são engarrafadas em outras vertentes, as que levam a uma conclusão insofismável.

E essa água o Juca não pode nos enfiar goela abaixo. Ele pergunta a todos nós, no Observatório da Imprensa: ?Por que Ronald Carvalho assume sozinho a edição de uma matéria que todos repudiam, quando poderia alegar a odiosa postura da obediência devida??

Bem, essa pergunta quem deve responder é o jornalista Juca Kfouri, não o leitor. Isso não é um jogo de tabuleiro, como ?Detetive? e afins. Em segundo lugar, é preciso refletir: quantos ao longo dos séculos não abriram mão de muito mais para, enfim, entrar na História pela porta dos fundos? A psicologia, a psiquiatria, a sociologia, a própria antropologia pode nos ajudar a entender comportamentos como esse.

Não sei se é o caso do Ronald Carvalho e sua edição futebolística: ?Pensei assim – diz ele a Kfouri em Carta Capital – vou editar como se fosse um jogo de futebol. Se foi 5 a 1 para o Collor, mostrarei os cinco gols dele e o gol do Lula?. É caso de lembrar que, assim como no futebol, as eleições democráticas também têm suas regras. E juiz ladrão não vale, como bem sabe o Juca Kfouri, em sua larga experiência no combate às mutretas do futebol brasileiro.

A você, Juca, cabe a entrada na história pela porta da frente. Sua coragem nas batalhas pelo exercício da Cidadania há muito o credencia aos louros. Mas para ser, ainda que involuntariamente, o nosso Émile Zola, é preciso mais. Assim, do jeito que está, dá a impressão de que você pegou o Dreyfus errado.”

 

DIREITOS AUTORAIS

“Direitos de imagem não pagos”, copyright O Estado de S. Paulo, 1/09/02

“Durante quase 25 anos, eles tornaram as noites de domingo de várias gerações mais alegres. Hoje, as famílias dos trapalhões Zacarias e Mussum sofrem dificuldades financeiras e brigam na Justiça pelo direito do artista de TV de dispor sobre a utilização, distribuição e a reprodução de sua obra: os direitos autorais.

Está na lei que regulamenta a profissão: ?autores, intérpretes e diretores são considerados titulares das obras que criam e das quais participam?. Só um autor de novela pode autorizar a reprodução, tradução, adaptação e criação de produtos baseados em suas tramas. Os atores, por exemplo, também têm de autorizar e recebem porcentuais sobre reexibições, criação de produtos e vendas para o exterior dos programas nos quais atuaram. Parece tudo muito lindo, mas, na prática, não funciona. Não são poucos os casos de artistas que lutam nos tribunais por seus royalties.

O mais novo personagem dessa triste novela é o humorista Antônio Carlos Bernardes, o Mussum, integrante dos Trapalhões, que morreu em 1994. Uma das viúvas do comediante, a costureira Maíra Santana, está entrando com um processo na Justiça para receber os direitos conexos dos DVDs dos filmes dos Trapalhões, entre outros produtos. Maíra, que tem um filho de Mussum, Antônio, de 9 anos, diz que não consegue saber ao certo quantos produtos o grupo tem no mercado atualmente, mas sabe que tem muito a receber. A processada é a empresa do humorista Renato Aragão, a R.A. Produções.

?A Globo diz que repassou esses direitos para o Renato Aragão, e eles me dizem que estão repassando para a M.C., uma antiga empresa de Mussum que está falida há 5 anos. Alguém está mentindo?, afirma ela. ?Enquanto cada um diz uma coisa, meu filho, que é herdeiro desses direitos, fica aqui, doente, e sem ver a cara do que é fruto do trabalho do pai dele.?

Em um comunicado oficial, Renato Aragão declara que sua empresa nunca deixou de cumprir com suas obrigações contratuais com Mussum, na forma determinada pela Justiça, em benefício de seus herdeiros.

Com a família do trapalhão Mauro Gonçalves, o Zacarias, que morreu em 1990, a confusão é diferente: é diretamente com a Globo. Em um processo movido em 1998, os familiares do humorista reividincam uma indenização e o pagamento dos direitos autorais do artista pelas retransmissões do programa Os Trapalhões, entre 1989 e 1998. Segundo o processo, no caso de reapresentação do programa, está claro no contrato que o artista teria de receber da Globo 10% do que lhe foi pago pelo mesmo tempo de trabalho.

No último cálculo, o montante solicitado pela família à Globo chegava a R$ 120 milhões. ?Está na lei, o artista deve receber, a cada reutilização, um porcentual incidente sobre a soma das importâncias recebidas por ele durante a realização do programa, até 15 dias após o início da reexibição da obra ?, fala o advogado especialista em direitos autorais Eduardo Pimenta. ?O que acontece é que os artistas não conseguem ter controle das novelas e programas que são vendidos para o exterior, reprisados, e dos produtos oriundos dos mesmos?, continua. ?Nos EUA, uma atriz como a Lucélia Santos, protagonista de Escrava Isaura (novela vendida para o mundo todo), seria milionária só com os direitos conexos. Aqui, ela não sabe o quanto deveria ter recebido e quais são seus reais direitos.?

Procurada, a Globo, por meio de sua Assessoria de Imprensa, avisa que não fala sobre o assunto. Diz que preza muito o compromisso assumido com seus funcionários no ato do contrato e que, em nome desta relação de respeito de mais de 30 anos, não revela detalhes desses acordos com os artistas.

Fora do ar – As punições são raras, mas existem.

Em 1998, a reprise da novela Pantanal ( da extinta TV Manchete) ficou fora do ar por cinco dias, pelo não-pagamento dos direitos autorais do elenco. Na época, atores como Marcos Winter e Cristiana Oliveira mobilizaram-se e, junto com o Sindicato dos Artistas do Rio, moveram uma ação contra a Manchete. ?Chegamos a propor, no sindicato, a criação de um conselho e um estatuto para fiscalizar melhor as emissoras quanto ao pagamento dos direitos autorais, mas não foi adiante?, conta Eduardo Pimenta, envolvido no processo de Pantanal.

Contra a Record, por exemplo, o advogado cuida de uma ação movida pela atriz Sandra Barsotti, pelo não-pagamento dos direitos autorais de algumas novelas – das quais ela participou – que têm trechos reprisados no programa religioso Fala que Eu te Escuto.

?Se olharmos detalhadamente, encontraremos violação de direitos autorais em todas as emissoras, em umas mais, em outras menos, mas nossos artistas acabam sofrendo de todos os lados com a escravidão e o roubo da propriedade intelectual?, conclui o advogado.

Castelo de cartas – O ator Cássio Scapin, que fez o Nino do Castelo Rá-Tim-Bum, também teve problemas do tipo. Conta que chegou a mover uma ação em 1998 contra a Cultura para ter uma prestação de contas do que estava sendo vendido com a marca do programa, e com sua imagem também.

Acabou entrando num acordo para não levar a briga adiante, mas não se conforma com a falta de clareza nessas relações. ?A Cultura acabou terceirizando a venda da marca do Castelo e nós atores ficamos sem poder contabilizar o que nos é de direito. Achava estranho que, em uma época que tinha 69 produtos da marca no mercado, depositavam de vez em nunca em minha conta uns R$ 100?, fala Scapin. ?Como estava lidando com uma fundação sem fins lucrativos, não me preveni em contrato. Hoje, tenho uma advogada de olho em tudo, pareço um louco com cláulas contratuais, mas descobri que as pessoas se aproveitam de nossa desproteção.?

O chefe do Departamento Jurídico da Cultura, Renato Barbieri, diz que a emissora sempre agiu com transparência com seus artistas e que todas as contas foram apresentadas e acertadas com Cássio Scapin. ?As pessoas, às vezes, ficam esperando mais desses valores de direitos autorais?, diz o advogado.

Vítimas ocultas – Segundo a secretária-geral do Sindicato dos Artistas do Rio, Betty Pinho, não são só atores e autores que reclamam do não-pagamento de direitos autorais. Dubladores, em geral, lutam para receber os direitos conexos, direitos por terem dado um ?acréscimo intelecual? à obra, que acaba ganhando uma nova voz com o trabalho deles. Há casos como o da família do dublador Marcelo Gastaldi (morto em 1995), que fez a voz dos personagens mexicanos Chaves e Chapolim, e que, em situação financeira difícil, não consegue receber um tostão pela reapresentação do programa.

?Por lei, eles têm os mesmos direitos dos intérpretes pela reprise, mas, se um ator famoso não consegue receber, imagine um dublador, um rosto desconhecido.?”