folha vs. mst
"Mais um facho de luz nos porões do M$T", copyright Folha de S. Paulo, 4/02/01
"Saiu do forno o segundo lote de relatórios do governo sobre cooperativas ligadas ao M$T e irrigadas com verbas públicas. O material é fresco como pão do dia. No primeiro escalão de Brasília, ninguém o havia lido até sexta-feira.
O documento foi preparado pela SFC (Secretaria Federal de Controle), ligada à pasta da Fazenda. Levantaram-se dados que não engrandecem a imagem pública do M$T: cobrança de pedágio, inadimplência, escriturações duvidosas… A apuração alcançou também três cooperativas não vinculadas ao M$T. Aos achados:
1) em São Mateus (ES), a Cooprava obteve R$ 106 mil do Incra, para repassar a 53 assentados. Cobrou pedágio de 3% a 4% sobre o total;
2) o empréstimo seria aplicado em lavouras de café (R$ 78.037,35), construção de um viveiro de mudas (R$ 3.962,65), aquisição de máquinas para confecção de roupas e reforma de um galpão sob cujo teto elas ficariam (R$ 9 mil) e compra de um sistema de irrigação (R$ 15 mil). A lavoura micou. O viveiro e o galpão estão desativados. As máquinas de costura jamais foram compradas. O equipamento de irrigação sumiu;
3) os auditores pediram à Cooprava que exibisse notas fiscais. Nada feito. Alegou-se que a contabilidade da cooperativa, paralisada há dois anos, jazia num arquivo morto;
4) o Banco do Brasil não analisou o projeto confiado à Cooprava antes de liberar os R$ 106 mil. Manda a regra que o dinheiro seja depositado em conta específica. Mas acabou pingando na conta geral da cooperativa. Não há na agência bancária comprovantes das despesas. Embora tenha constatado irregularidades, o banco deu de ombros;
5) vencido o empréstimo, a Cooprava levou-o no beiço, obteve a rolagem da dívida e, de quebra, arrancou dinheiro novo do Incra. Foram três novos empréstimos: R$ 95.042,75, R$ 28.041,17 e R$ 231.717,82;
6) a Cooperfap, de Jataí (GO), uma das que nada têm a ver com o M$T, foi agraciada com R$ 420 mil para obras e equipamentos. Comprometeu-se a aprontar tudo em seis meses. Lá se vai quase um ano e o projeto está inconcluso. Extrato bancário indica que foram entregues à cooperativa R$ 283.600 (67,5% do total). Somando-se as notas levadas ao arquivo do Banco do Brasil, chega-se a um valor inferior: R$ 252.880,26. O destino da diferença (R$ 30.719,74) é, por ora, ignorado;
7) a Coopersan, da cidade de Goiás (GO), outra desvinculada do M$T, amealhou R$ 630 mil. Em seis meses, faria obras e compraria máquinas. Já se passaram mais de 12 meses. E o projeto segue inacabado. Liberaram-se R$ 386.828 (61,38% do total). Não há na cooperativa uma mísera lista das despesas realizadas. Previa-se a construção de uma central de reprodução de leitões e um abatedouro de aves. Um detalhe desafia os planos: não há na área do assentamento nem luz nem água;
8) a Cooperlebre, de Doverlândia (GO), também sem vínculos com os sem-terra, beliscou R$ 315 mil do Incra. Após mais de um ano, ainda não concluiu obras que se comprometera a fazer em cinco meses. Embora tenha liberado R$ 244.696,48 (77,6% do total), o Banco do Brasil só tem em seus arquivos comprovantes de despesas relativos a R$ 171.566,60. O buraco é de R$ 73.129,88. Generosos, os livros da cooperativa contabilizam saídas de R$ 300.630. Não há, nem no banco nem na cooperativa, inventário das obras realizadas e dos bens adquiridos;
9) a Coopervarive, também da cidade de Goiás (GO), abiscoitou R$ 367.500 para obras e maquinário. O prazo de conclusão do projeto era de cinco meses. São decorridos mais de 11 meses. Liberaram-se R$ 273.225,60 (74,3%). E nada de conclusão. O Banco do Brasil e a cooperativa não possuem relação dos gastos já feitos;
10) a Cocaprol, de Andradina (SP), amealhou R$ 1,260 milhão, para implantar projeto de eletrificação rural. O Itesp (Instituto de Terras de São Paulo) foi contra. O M$T pressionou e levou. Constituída só para pôr a mão na grana, a cooperativa não dispõe de sede própria nem de funcionários. Com prestações vencidas desde 99, o empréstimo está sendo rolado pelo Banco do Brasil. Os auditores da SFC não encontram laudo técnico das obras. Diz-se que, concluída, a rede de eletrificação foi doada à Cesp (Centrais Elétricas de São Paulo). Não há documento oficializando a doação;
11) a Coopervida, do município de Augusto Pestana (RS), mordeu R$ 312.070. Parte do dinheiro serviria para erguer um armazém. Sem pedir autorização, a cooperativa mudou a destinação da verba. Compraram-se cerca de 220 vacas leiteiras. Deu-se o inusitado. Alguns assentados tornaram-se fornecedores de gado da Coopervida. Os auditores pescaram, por exemplo, a nota 033-162252, que formaliza a compra de duas vacas, ao preço de R$ 600. Foi emitida por Márcio Luís Soares Hanauer. Este signatário localizou-o. Além de assentado, Hanauer é diretor financeiro da Coopervida. Ele conta que, antes de receber um pedaço de terra do Incra, já mexia com criação. Era um sem-terra com gado: 28 cabeças. Pôde, segundo disse, vender vacas para a cooperativa, que teria repassado os animais a outros assentados;
12) alcançadas por um surto de febre aftosa, as vacas da Coopervida foram à faca. Todas elas. Hanauer diz que, feito o abate sanitário, o governo gaúcho se comprometeu a financiar a reposição do rebanho;
13) a Coopervida desviou outro naco daquele empréstimo de R$ 312.070 para a a compra de 5.528,4 litros de óleo diesel. Hanauer conta que o óleo foi repassado a uma empreiteira contratada para abrir açudes no assentamento. O nome da firma? ‘Assim, de cabeça, não lembro.’ Em visita ao assentamento, os auditores da SFC vistoriaram obras e máquinas. Mas anotaram: ‘As especificações dos investimentos previstos no projeto técnico não permitem uma identificação exata de todos os itens’.
14) Os filiados à Coopervida repassam parte de seus rendimentos para o M$T. Hanauer diz que a contribuição incide sobre a produção dos assentamentos. ‘Dá quem quer.’
15) Outra organização gaúcha, a Cootap, de Porto Alegre, arrancou do Incra R$ 950.109,01. Não há no Banco do Brasil nem notas nem recibos. A cooperativa limitava-se a enviar ofícios nos quais informava ao banco os dados do suposto fornecedor, o número da nota fiscal e o valor a ser depositado. E o banco pagava, sem confirmar a autenticidade dos dados. O atual presidente da Cootap, Altecir Comozinski, diz: ‘Se o banco não ficou com as notas, o problema não é nosso. Elas estão em nossa contabilidade’;
16) ignorou-se a regra que impõe a abertura de conta específica para cada projeto. Os R$ 950.109,01 foram movimentados na conta normal da Cootap, cujo extrato o banco se negou a fornecer. ‘Nunca nos exigiram isso’, diz Comozinski;
17) em visita a assentamentos tocados pela Cootap, os auditores avistaram obras e máquinas. Anotaram no relatório de inspeção, porém, que o projeto é ‘genérico, sem detalhar marca, modelo e ano’ dos equipamentos. Tampouco especifica ‘o endereço em que seria construída cada obra’, o que impossibilitou a ‘identificação exata de todos os itens’. Ainda segundo os auditores, ‘a cooperativa informou que não tinha condições de apresentar, a curto prazo, relação com a localização dos bens adquiridos’. Comozinski diz: ‘Vieram aqui uns senhores engravatados, não queriam pôr o pé na lama. Tinham pressa. Ficaram uns três dias. Se vierem com tempo, estamos às ordens’;
18) os 22 assentamentos da região de Porto Alegre contribuem para o M$T com 3% de seus rendimentos. Segundo Comozinski, a ‘doação’ não passa pela cooperativa. ‘Há lugar por aí em que a cooperativa e a coordenação do movimento funcionam juntas. Aqui é separado’;
19) sediada no município de Sarandi (RS), a Coanol foi aquinhoada com R$ 1,4 milhão. Construíram-se um escritório, um posto de saúde, uma indústria de beneficiamento de erva-mate e uma unidade de reprodução de suínos. Reformou-se um armazém. Compraram-se animais, dois caminhões e uma caminhonete. Por genérico, o projeto não permite, segundo os auditores, ‘a verificação e a efetiva conformidade’ dos gastos. Como não há na cooperativa um ‘inventário de bens móveis e imóveis’, não foi possível aos auditores da SFC assegurar que as aquisições estivessem em conformidade com o projeto. ‘Não há elementos que possam referenciar a data de incorporação desses bens ao patrimônio da entidade’, anotaram. Vencida em março de 99, a dívida da Coanol foi barrigada. O Banco do Brasil refinanciou-a. ‘Eles (os auditores) ficaram aqui só duas horas’, diz Vilmar Martins da Silva, presidente da Coanol. ‘Pegaram alguns dados, viram os equipamentos e saíram dizendo que estavam satisfeitos. Agora me vêm com essa avaliação…’
20) Silva diz que os associados da Coanol dão suporte financeiro ao M$T. Funcionaria assim: ao vender o resultado de sua lavoura para a cooperativa, os grupos dispostos a contribuir autorizam a entidade a repassar 3% para o movimento. ‘As autorizações são feitas por escrito. Temos tudo arquivado.’
21) A Coopan, de Canoas (RS), obteve R$ 200 mil. Notas fiscais atestam a realização de obras e a compra de equipamentos. Nos arquivos do Banco do Brasil, os documentos estão misturados aos de outros projetos, ‘dificultando a identificação dos comprovantes relativos a cada financiamento’. De novo, o projeto é genérico, o que ‘impede a identificação exata de todos os itens’. O presidente da cooperativa, Emérson Jacomeli, diz: ‘Prestamos contas projeto por projeto. Se o banco misturou, não é problema nosso. Eles (os auditores) queriam mostrar que a gente desvia dinheiro. Não acharam nada e querem pôr chifre em cabeça de cavalo’;
22) segundo Jacomeli, a Coopan contribui com 3,5% para o M$T. ‘Incide sobre a produção.’ No ano passado, foram ‘de R$ 8 mil a R$ 10 mil’. Ele menciona também contribuições não-financeiras. ‘Pode ser feita em alimento. Temos caminhão; o movimento precisa fazer, às vezes, uma viagem, a gente faz a viagem. Precisa de uma tarefa, a gente libera membros da cooperativa para fazer a tarefa.’ O empréstimo da Coopan foi refinanciado pelo Banco do Brasil antes mesmo do vencimento. Alegou-se quebra de safra.
As cooperativas compõem a face visível do esquema de financiamento do M$T. Estão reunidas numa entidade maior, chamada Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil). Decidiu-se fiscalizá-las no ano passado, depois que a Folha revelou que uma delas, a Coagri (PR), retinha, em favor do M$T, parte do dinheiro que o Incra repassava a assentados.
Comparada à primeira fornada de relatórios -aquela que levou à bandeja os números da Cocamp (SP), de José Rainha, e da Coagri, duas usinas de torrefação de dinheiro público-, os novos relatórios decepcionam. São rasos, ligeiros. Vasculharam-se algumas poucas operações de crédito. Desprezaram-se importantes linhas de apuração, insinuadas nos próprios relatórios.
Embora superficiais, os papéis da SFC reforçam a impressão de que é preciso submeter essas entidades a um choque de transparência. Em respeito ao bolso do contribuinte e à emergência do assentado humilde, convém acelerar o processo de abertura dos porões do M$T. Quanto mais rápido for o processo, menor será o mau cheiro."
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