Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Keila Jimenez, Marcos Pierry e Gabriela Gemignani

PCC

"Balas perdidas", copyright O Estado de S. Paulo, 25/02/01

"A rebelião que tomou, de uma só tacada, 24 presídios em São Paulo, no domingo, pode entrar para a história da TV como o dia de ouro do ‘jornalismo de auditório’.

A cobertura de notícias ao vivo feita em programas não-jornalísticos, como Domingo Legal (SBT) e Domingão do Faustão (Globo), criou uma fórmula que mistura entretenimento, utilidade pública e, não raro, a mais deslavada apelação. A combinação não provocaria maiores dores de estômago na crítica se, na rebelião de domingo, gente como Gugu Liberato não tivesse dado um show no jornalismo com jota maiúsculo da concorrência.

Gugu entulhou as atrações já previstas em seu show e assumiu o comando da cobertura, com imagens da câmera do helicóptero do SBT. Sorte ou não, foi justamente o SBT que acabou captando as melhores imagens do Carandiru. O programa exibiu ao vivo as cenas em que os detentos são baleados, deixando rastros de sangue entre os pavilhões 4 e 7 da Casa de Dentenção.

Jogo de cintura – ‘A Globo, com toda a infra-estrutura, equipes e opções de links (imagens ao vivo) acabou perdendo as imagens mais importantes da rebelião’, diz Roberto Manzoni, diretor do Domingo Legal.

‘Faltou jogo de cintura para eles na cobertura do Domingão de Faustão.’

Ponto para o Domingo Legal, se entre um e outro furo jornalístico, o programa não temperasse cenas com trilha sonora de terror. Ou agisse como se jogasse para o holofote (quando Gugu se ofereceu para intermediar as negociações). Ou adotasse procedimentos polêmicos, como abrir microfone para um detento sem mostrar contrapontos ao ponto de vista do entrevistado (que é o be-a-bá de um jornalista) e insistir para que Simony, uma dos 5 mil reféns, fosse até o pátio da prisão acenar para o helicóptero (o que, em tese, poderia pôr a cantora em risco).

Iguais – Domingão do Faustão, Cidade Alerta e Fantástico cobriram o incidente com procedimentos similares ao do Domingo Legal. Gugu, no entanto, levou a melhor no domingo. No ar das 15h50 às 20h32, manteve 26 pontos de audiência, ante 21 na Globo. De quebra, reacendeu a discussão sobre a linha que separa sensacionalismo da utilidade pública no calor da transmissão ao vivo. ‘Não vejo sensacionalismo’, defende-se Gugu. ‘Tanto é verdade que o tema virou pauta de todos os programas da semana, dos jornais e rádios.’

Na Globo, o repórter Tonico Ferreira também falou com um detento por celular. A conversa foi ao ar no Fantástico. Para Amauri Soares, diretor de Jornalismo da rede em São Paulo, o expediente é legítimo. ‘Considero relevante o fato de todas as rebeliões terem sido articuladas pelo celular’, afirma. ‘Há um tom de denúncia nisso, da facilidade com que os telefones entram no presídio.’

Outro lado – Tupan Gomes Correia, presidente da Abecom (Associação das Escolas de Comunicação) e especialista em telejornalismo, discorda. Diz que o espaço dado por SBT e Globo, para conversas com detentos via celular, nada acrescentou à cobertura. ‘Dar voz a um detento numa situação dessas sem resposta de uma autoridade é pura irresponsabilidade do apresentador’, diz.

Luiz Gonzaga Mineiro, diretor de Jornalismo da Record, também condena o expediente. ‘Não fizemos e nem faríamos a entrevista – nos ofereceram antes de falarem com o Gugu e disse não’, afirma. ‘Se a pessoa está lá dentro é porque foi condenada e apartada da sociedade. Ou seja, está proibida de falar.’ Apesar disso, Mineiro elogia as imagens do tiroteio feitas pelo SBT.

‘Mostram que houve violência da polícia.’

Gugu garante que o governador em exercício e o secretário de segurança chegaram a ser procurados para falar no ar. ‘Infelizmente, não conseguimos’, lamenta. O apresentador diz que chegou a ter ‘muito medo’ de prejudicar as negociações entre polícia e detentos. ‘Nunca tive intenção de intermediar negociações’, afirma. ‘O fato é que o detento ligou para a produção querendo falar e era uma oportunidade de saber o que ocorria lá dentro, mostrar um outro lado que nunca é mostrado.’

Simony – A pedido de Gugu, Simony saiu no pátio da Detenção e acenou para ele com um pano branco. ‘Não houve propósito informativo nesse apelo do apresentador. É mera espetacularização de um fato grave’, diz Tupan Correia. ‘Ele pôs a vida dessa menina (Simony) em risco, pois não sabia se ela tinha uma faca ou uma arma apontada para a cabeça. A função do jornalismo é informar com responsabilidade. Divulgar um fato sem pensar nas conseqüências é exploração.’ O diretor Manzoni, do Domingo Legal, rebate. ‘Foi o segurança da Simony que, a pedido dela, nos ligou dizendo que a cantora estava dentro do Carandiru’, diz o diretor.

Ética – Para o assessor de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, Carlos Cardoso, o limite entre uma boa cobertura jornalística e o sensacionalismo não foi ultrapassado na transmissão da TV da rebelião. ‘Não houve problema ético, foi uma cobertura legítima’, avalia.

‘As imagens dos disparos registradas pelo Domingo Legal serão decisivas no processo que irá investigar quem efetuou os tiros. Será a prova principal para esclarecer os fatos’, diz. ‘Como o filme da favela naval, que foi a principal prova contra os policiais.’

Já Gugu ter se oferecido como intermediador da questão ou chamado Simony no ar, Cardoso encara como a ‘criação de um fato para prender audiência’. ‘Não podemos avaliar se poderia ter prejudicado ou ajudado as negociações, seria especulação. Ele simplesmente queria aumentar sua audiência. Como com a exibição exaustiva das imagens dos tiros’, diz.

Tupan Correia, da Abecom, discorda. ‘Tentar negociar uma rebelião num programa de shows é glamourizar uma realidade que atinge as pessoas’, diz.

‘Com trilha sonora em cima, então, vira espetáculo, como se a qualquer momento após as imagens dos tiros ele fosse anunciar um produto ou chamar o Tchan ao palco’, continua. ‘A Globo não fez diferente. O Faustão só fez cara de sério. Ele e o Cidade Alerta usaram o fato do mesmo jeito, e pior, sem a qualidade de imagens do SBT.’

Sempre alerta – O diretor da Record refuta que o Cidade Alerta tenha sido apelativo ou dramático, predicativos associados ao programa. Mas reconhece que o programa precisa aparar arestas. Uma delas é o fundo musical aterrorizante (‘Não gosto e não faz parte da notícia’, diz Mineiro), feito por um sonoplasta enquanto José Luiz Datena narra os fatos.

Outra são os créditos que resumem a reportagem o tempo inteiro na tela.

‘Poderiam ser expressões curtas e com menos tempo de exibição.’

Coberturas ao vivo – Para o apresentador do Domingo Legal, coberturas como a de domingo mostram a importância e interferência da TV no andamento de fatos como esse. ‘O fato de um acontecimento estar sendo acompanhado por milhões de pessoas interfere sim. É a opinião pública vendo algo sem interferências de edição ou manipulação de imagens.’

Na opinião de Soares, da Globo, transmissões jornalísticas em programas de entretenimento – no caso, o Domingão do Faustão – são válidas desde que o assunto seja relevante. ‘Faustão parou o que fazia e ancorou o jornalismo, que trabalha 24 horas ao dia. Não houve mistura de conteúdos.’

Para Mineiro, da Record, houve negligência da imprensa televisiva na cobertura do presídio de Franco da Rocha. ‘A população carcerária é menor e houve o mesmo número de mortos do Carandiru’, afirma. ‘Mas a operação jornalística lá seria mais complicada e negligenciaram, houve preguiça e desatenção.’"

"A notícia vira ziriguidum", copyright Correio Braziliense, 25/02/01

"Skindô, skindô, é carnaval, mas não custa achar uma brecha entre o confete e o conflito para pensar um pouco sobre a cobertura do choque político e cultural da acintosa revolta do Primeiro Comando da Capital. A tragédia teve tratamento fútil na tevê – uma espécie de ”guguralização carnavalesca” da notícia. Estamos todos reféns.

Quando a TV mostrou as cenas (Record e SBT, o tempo todo, e Globo, com chamadas periódicas) até parecia jornalismo ao vivo. Mas não era. Imagens cruas e/ou espetaculares, em repetição na busca do melhor ângulo, longe de nos aproximar da questão apenas anulava o fundo da notícia. Foi um massacre audiovisual oportunista. Chegaram ao tédio principalmente por criarem falsas expectativas.

A editora Routledge lançou uma coletânea intitulada Television Common Knowledge, organizada por Jostein Gripsud, da Universidade de Bergen, Noruega, onde vários estudos analisam a televisão; destes, o de John Ellis classifica ”a exaustão não conclusiva da TV”. Há momentos em que ela acentua o caráter da mídia-mediocridade na sua obsessiva busca, pelo ”gosto médio”, da poderosa audiência do senso comum. E, pasmem, isso vale para Tremembé das Antas e para Nova York: as audiências também se globalizam pelo ralo do achatamento cultural. Sede de sangue, fofoca e grotesco compõem as raízes médias do ”interesse convulsivo por entretenimento e a tara compulsiva por catarse”. O crítico de mídia francês Laurence Mont já escreveu sobre isso: ”É pela TV que o descarrego da pessoa média se dá. Massacrada por frustrações e imagens de um sucesso, para ela inatingível, busca na TV algo mais sórdido que a própria vidinha”. Mal comparando o nosso velho guerreiro – sem a teoria da cultura de massa da Universidade Paris VIII, Saint Denis – dizia quando achava que o seu sucesso vinha do deboche: ”As pessoas precisam do ridículo dos outros para esquecer do seu”, disse no extinto jornal Última Hora do Rio.

Na transmissão ao vivo do levante nos presídios, o espectador, sob a dose natural de sadismo que lhe é peculiar, fica ali naquele cerco aguardando o momento cinematográfico da matança para se sentir não o testemunha ”ocular da história” mas para ter a chance de saciar sua frustrada overdose de ficção: ”Eu vi matarem o cara”. Secretamente parece ser essa a intenção das recorrentes e fantasiosas imagens. À espera de um espetáculo. Mostrar ao vivo sem orientar ou tentar ver o que há nos bastidores – mesmo caóticos – é só a busca de mais um show às custas da sordidez de terceiros. Pela deslavada audiência em nome da ”relevância social dos fatos”. O rádio, também veloz para transmissão ao vivo, leva vantagem, pois precisa, obviamente, narrar com informação e depoimentos. A TV se basta. Acha que o mero mostrar já cumpre e denota a notícia. Ainda nesta quarta-feira o programa Cidade Alerta da Record – hábil em tal truque – mostrava um homem sendo içado de uma ponte sobre o Tietê e já caracterizava tal showzinho como ”notícia”, embora o apresentador não soubesse nem em qual área o fato ocorria. O progranma ”vende” a idéia de ”estar atento a tudo o que ocorre na cidade”. Mas não sabe onde, com quem, por que etc.

Visível

Saber-se no alvo e na mira das teles já é um recurso manipulado pelos protagonistas. A tragédia do ônibus invadido, no Rio, – onde o mesmo Cidade Alerta teve papel destacado na transmissão direta – teve o reforço quase decisivo pela transmissão ao vivo que se fazia: policiais, curiosos e bandidos sentiram-se ”espetaculares” por estarem em rede nacional. Todos à beira de um ato magnífico. E ali o heroísmo saiu pela culatra. Morreu a refém. Se o jogo de cena é inevitável, pior para as vítimas. No último domingo, até a visão de escala visual dos detentos foi testada: sabendo da transmissão por helicóptero ”escreveram” mensagens do PCC, aquele patético Paz, Justiça, Liberdade em uma prova de que as palavras perderam mesmo a força e são manipuladas por qualquer um. Aliás, outra lição aprendida na banalidade das propagandas e nos discursos ocos de políticos que falam demais e vivem de menos. A diferença é que na frente da telinha estamos reféns, ou emprestando audiência, ou impotentes.

A súbita elevação do celular – apenas ferramenta – foi outro exagero da cobertura. Lembrar que os presos políticos desde Memória do Cárcere, de Graciliano Ramos, usavam baratas amestradas para trocarem informações. Agora é via satélite. A pergunta maior é investigar como um telefone sem asas chega até os presos. Sem falar nos radiotransmissores encontrados em qualquer banca paraguaia da esquina junto às tevês que cabem no bolso. A miniaturização tecnológica ajuda na fraude até das emissoras: vide o recurso fajuto da ”câmara escondida” que identifica, mas não serve como prova.

Desde a primeira transmissão global, ao vivo, da Lua, em 20 julho de 1969, tínhamos câmeras pesando 180 quilos. A narração patriotada do legendário âncora de TV, Walter Cronkite, só foi possível pelo modelo SEC Vidicom, de apenas três quilos, desenvolvida pelo engenheiro da Nasa, Stan Lebar. Hoje nem tudo que cabe no bolso cabe na cabeça. A crise de conteúdo é mais séria que a tecnologia avançada. Logo depois as transmissões ao vivo de Peter Arnett para a CNN, na Guerra do Golfo, ajudariam nessa escala espetacular do visual amigo da matança asséptica: risquinhos no céu parecem games, mas embaixo corriam sangue, suor e luto. A velocidade de acesso melhora, mas, sem jornalismo real, não há informação mas sensação. Até a Internet, que pode entrar ao vivo – mesmo sob a dificuldade técnica das linhas telefônicas -, pode abrir lynks, abrir interatividade e jogar documentos no ar que podem ser impressos para não ficar só no ”olho da fechadura” onde apenas mostra.

As coberturas continuam tímidas, declaratórias, à espera da versão oficial, sem análise, meramente passivas no descrever, omissas na busca de extensões um pouco mais fundas que o ralo prato parabólico do show da vida. Deixar que os ”jornalistas” Gugus e Faustões tomem a liderança dessas transmissões e abrir mão de uma responsabilidade social. Patéticos os ”diálogos pseudo-moderadores” de Gugu com um rebelde. Louco para ter a notícia heróica, sem riscos, no seu pesadelo refrigerado chamado estúdio. Caímos de novo na overdose do nada. A narcose pelo excesso e redundância voraz de entretenimento. E pensar que a mídia não é só meio, ela também é mediadora. Mediadora de inteligência, educação e cidadania na construção da justiça social. Falando isso em plena esbórnia de Momo? Pois é. A tragédia se mascara mas não some. Escola de samba, ao vivo, por exemplo, não é a mesma coisa do calor da avenida, mas é ótimo. Aí é entretenimento, mesmo. Não confundam. Foi em um fatídico 25 de janeiro de 1984 que o Jornal Nacional da Globo mostrou cenas de uma manifestação pública pelas Diretas, Já, na Praça da Sé, em São Paulo, enquanto o áudio descrevia as cenas ”comemorativas ao aniversário da cidade”. Aí é grave!"

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