Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Larissa, apenas estatística

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NÚMERO-NOTÍCIA

Antonio Fernando Beraldo

"A morte de uma pessoa é uma tragédia; a morte de milhares é apenas estatística."

A frase acima é atribuída a Josef Stalin, embora não se tenha certeza. Seja como for, é uma síntese perfeita do que está acontecendo neste triste país, pelo menos nas capitais. A cada segunda-feira os jornais noticiam as chacinas ocorridas no final de semana, enfileirando monotonamente cifras da violência cotidiana. Mortos com nomes comuns, rostos enfiados em poças de sangue, esta não-gente que vira número, notícia de um dia que no dia seguinte já está velha, apagada, obsoleta. Em 1999, em São Paulo, foram 88 chacinas, com 302 mortos.

Este artigo foi escrito in memoriam Larissa Alves de Souza, 5 anos, morta com um tiro na cabeça, no domingo, 11 de março, durante uma operação do Grupo de Operações Especiais da Polícia Civil, na favela da Rua Alba, Vila Santa Catarina, zona sul de São Paulo.

Pouco depois das 22 horas, Larissa estava na festa de aniversário de uma vizinha quando saiu à rua para chamar uma prima. O tiroteio entre a polícia e supostos traficantes feriu também outro menor, de 13 anos, com estilhaços e o chumbo de uma espingarda de cartuchos, calibre 12. Outro morador, de 16 anos, foi atingido no pé. O corpo de Larissa ficou estendido numa viela, enquanto o tiroteio prosseguia. Às 22h30, Larissa morria nos braços de uma vizinha, que tentava socorrê-la. Os moradores, revoltados, depredaram e incendiaram 6 ônibus, durante o resto da noite.

Naquele mesmo dia, as famílias que se dispuseram a assistir as atrações (?) dominicais do Faustão e do Gugu foram atingidas (o termo é este) com a transmissão ao vivo de mais uma rebelião em mais uma Febem, desta vez em Franco da Rocha. Entremeadas pelo costumeiro apelo ao grotesco e ao sexo de ambos os programas, irrompiam as cenas de brutalidade sobre brutalidade, a violência derramada na infância dos mortos. Duvido que alguém deixe de se angustiar com a cena de dezenas de menores, em cima do telhado, no meio da fumaça dos colchões queimados, esperando (ou desesperando) a iminente invasão da tropa de choque da PM. No alto, os helicópteros ameaçando disparar balas de borracha, ou de verdade. A memória dos massacres recentes reacendida. O desconforto do Faustão era visível, sem saber o que fazer com aquele desastre, ao vivo, e os repórteres de ambas as emissoras se esforçando, entre a falta de notícias, em descrever as cenas. Pelo menos para mim foi muito difícil prestar atenção às palavras ? o impacto das cenas era muito maior.

Chuços e granadas

Nos jornais, nos dias seguintes, ficamos sabendo que esse caos ocorreu por causa de uma tentativa frustrada de resgate, feita por cinco pessoas (três adolescentes), que visavam libertar dois internos (um dos quais tinha assaltado o apartamento da apresentadora de TV Adriane Galisteu, havia dois anos). O seqüestro foi planejado pela amante do sujeito. Ela tem 26 anos, está grávida de oito meses. Na "ação", foi morto o agente de segurança Renato Araújo Feitosa e ficaram feridos 21 internos e 12 funcionários. Houve denúncia de tortura contra os menores, que foi admitida pelo novo responsável pela Febem ? isto não é novidade.

No sábado, dia 10 de março, véspera da rebelião e da morte de Larissa, o jornal O Dia, do Rio, manchetava: "Meninas ganham R$ 100 para a dança do sexo em baile funk". Um segurança de uma das "equipes" de bailes funk denunciava que meninas adolescentes recebiam dinheiro para iniciar a tal "dança das cadeiras"; um médico do Rio denunciava que uma de suas pacientes tinha ficado grávida tendo relações sexuais com vários homens, ao mesmo tempo, durante um baile funk. Ficou-se sabendo, também, o código do comportamento nestes bailes: é "3B?s sem neurose" (os B?s referem-se a algumas partes do corpo feminino). E que o uso de camisinha é considerado ridículo, e fora de moda. Na saída dos bailes, desde há muito, as gangues rivais se enfrentam, e enfrentam também a polícia. Não é difícil ocorrerem mortes nessas brigas e, o que talvez seja pior, lesões e ferimentos que incapacitam para o resto da vida.

No Brasil, atualmente, ocorrem cerca de 5 assassinatos por hora, dos quais 3 são nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Só na cidade de São Paulo são 2 homicídios a cada 3 horas. É a segunda causa mortis na cidade, abaixo apenas das doenças cardiovasculares. Alguns bairros da cidade, como Jardim Ângela, já chegam à taxa de 1 homicídio em cada mil habitantes. No Rio, a situação é parecida: já igualou à que era a cidade mais violenta do mundo, em 1995 ? Johannesburg, na África do Sul. A diferença é que lá, havia uma guerra entre etnias, que recrudesceu depois do fim do apartheid, com grupos armados com coisas que iam desde chuços primitivos até rifles AR-15 e granadas. Daí que não dá para comparar: é o tipo do erro estatístico que os jornais adoram cometer. São duas realidades diferentes, e isso deveria ser dito e enfatizado, o que raramente é feito.

Mantendedores da ordem

A comparação entre Rio e São Paulo gera uma outra "guerrinha" irritante entre as mídias de uma e outra cidade. Cada uma procura demonstrar que a outra, sim, é que é o pior lugar do mundo para viver. Há algum tempo, a colunista Danuza Leão, do Jornal do Brasil, tem pateticamente tentado levantar o astral dos cariocas, chamando atenção para as belezas de um dos lugares mais bonitos do mundo. O contraste entre sua coluna e as páginas do caderno de Cidade (aliás, caderno de polícia) é assustador. No Rio, o tráfico de entorpecentes domina (para usar um verbo muito atual) claramente bairros inteiros, subúrbios inteiros. Na Universidade Gama Filho, em Piedade, quando morre algum figurão do tráfico as aulas são suspensas por ordem dos traficantes. O comércio é forçado a baixar as portas, as pessoas pouco circulam pelas ruas. Há tempos, o diretor da Faculdade de Engenharia resolveu protestar: foi assassinado a tiros, em frente à Universidade. No restaurante da UFRJ os moradores das favelas em volta comem de graça, e ai de quem se indispor contra isso.

Em São Paulo a situação é a mesma, com a mesma truculência da polícia. Segundo pesquisa do governo do estado, publicada nos principais jornais da cidade, os policiais matam mais da metade de suas vítimas (51%) com tiros pelas costas. Não dá mais para chamar o ladrão, agora chama-se o tráfico, que garante o "bem-estar" da comunidade. Um traficante, entrevistado na excelente reportagem da Folha (14/3/01) sobre a morte de Larissa, chegou a declarar que "…tem morador que acorda às 4 da manhã para trabalhar. Nós respeitamos eles. Tanto é que ninguém fica falando alto de noite em dia de semana". Dois ônibus que levaram moradores ao enterro de Larissa foram pagos pelos traficantes, que também distribuem remédios para quem precisa e, por incrível que pareça, mantém a ordem no local.

Pesquisa recente colocou a mídia como uma das causas do aumento da criminalidade. No próximo artigo, veremos o que está por trás destas estatísticas. (continua)

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