Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lúcido, válido e inserido no contexto

O PASQUIM

Gilson Caroni Filho (*)

Quando se trata de pensar uma perspectiva alternativa ao pensamento único, dois personagens devem ser evitados. Embora opostos, acabam por se complementar na melancólica falta de vontade política. O primeiro é o nostálgico dos anos 70. Decerto foi um período rico e contraditório. Sob a mais cruenta ditadura que tivemos, sonhou as mais generosas utopias. Fazia parte de um coletivo muitas vezes tão intenso quanto imaginário. Duro foi depois, com a redemocratização negociada. Descobriu-se só. O povo idealizado não existia. A sua disponibilidade para uma ação transformadora era fantasia iluminista. Restou-lhes a lombada empoeirada de Eros e civilização e as densas páginas de Pour Marx. Para ele, o que veio depois nem merece o registro de "história". De ar taciturno, continua não indo à praia e sorri sarcástico quando lhe apresentam novas propostas. Sabe-se um tolo deprimido, mas apresenta-se como sagaz iluminado.

O segundo tipo é o "novidadeiro". O adorador de experimentalismos. O leitor apressado de autores que representam uma suposta corrente pós-moderna. Gosta da inteligibilidade porque nela e por ela se sente protegido de sua fragilidade teórica. Desqualifica o interlocutor que desconhece as estratégias conspiratórias em andamento e os malabarismos manipulatórios delas decorrentes. É um dos poucos "herdeiros" da Teoria Crítica na qual muito se aprofundou em leituras de prefácio e comentários de terceiros. Sabe-se um farsante, mas encena uma versão pós-moderna de dialético esclarecido.

O que guardam em comum os dois tipos? A inabalável convicção de que não há saída para o atual quadro político. Encontram-se no niilismo, dormitam juntos na inação. Consideram ingênua qualquer tentativa de oxigenação, ainda mais quando tal empreendimento se dá no campo jornalístico. Para eles, o relançamento de O Pasquim tem um inconfundível sentido de farsa e inconseqüência. O nostálgico afirma que o momento histórico desse tipo de publicação já passou. Que seu papel foi cumprido em época de supressão de direitos civis e censura à imprensa. Sua contribuição para inovações de linguagem já foi assimilada pelos jornalões e mesmo a crítica destes, hoje, é realizada internamente, nas próprias redações.

Edição emblemática

Questiona-se sobre o que Verissimo e Fritz Utzeri podem escrever nesse jornal que não lhes seja permitido no Globo e no Jornal do Brasil, respectivamente, veículos aos quais estão ligados como colunistas. O que há de alternativo na repetição de um discurso? Outra coisa que aviva sua indignação é a falta de senso de realidade dos mentores do novo Pasquim. Será que não perceberam, indaga, que inexiste uma parcela expressiva da juventude a demandar outro tipo de relato que seja radicalmente distinto do fornecido diariamente pelo jornalismo impresso e televisivo? E que o amoralismo contemporâneo agrega como valor mercadológico qualquer tentativa de humor cáustico?

Em suma, Leila Diniz morreu. Não só a mulher como o projeto erótico-afetivo que personificava. Depois dela foram-se Henfil, Tarso de Castro e Paulo Francis. Millôr não está na presente versão e Ipanema, tal como o sonho de John Lennon, acabou. Ainda sobraram apitos. Mas não há notícias de índios que os desejem. Nesse cenário, como tornar o Pasquim um investimento com retorno mínimo? O nostálgico é um realista de mercado. O "novidadeiro" não perdoará a "inocência" do projeto. Será que ainda acreditam, pergunta zombeteiro, que há espaço crítico numa sociedade espetacular? Não vêem que tudo foi aparelhado pelo capital e sua transpolítica que inviabiliza qualquer território como campo de resistência? A possibilidade de um novo contrato social é zero, dada a total capilaridade do poder capitalista e, portanto, se muito há a denunciar pouco, mas muito pouco mesmo, pode ser feito. A iniciativa da turma do Ziraldo é pura entropia, dirá ele. O "novidadeiro" é prisioneiro de um conformismo travestido de criticidade radical.

Ora, desde o editorial da primeira edição, escrito por Luís Fernando Verissimo, é explicitado o propósito do jornal. Não se trata de reviver velhos tempos, mas pensar os novos e, na medida do possível, neles intervir. Ao contrário do que ocorre na mídia empresarial, os textos não são vendidos como produtos de um cardápio com amplo espectro ideológico, que tem na diversidade a legitimação para os seus reais interesses [sobre essa estratégia publicamos, na edição n? 162 deste Observatório, o artigo "O falso pluralismo" ? veja remissão abaixo]. O Pasquim apresenta uma clara linha de alternativa ao pensamento hegemônico, e os artigos expressam um posicionamento político organicamente articulado. O novo não está no conteúdo dos textos, mas no espaço em que são publicados. Repetindo McLuhan, o meio é a mensagem, e isso faz toda a diferença. Deixam a condição de utensílios anedóticos da grande imprensa para se tornarem eixo central de uma proposta democrática.

Esperamos seis edições para publicar este artigo. Não queríamos errar por açodamento. Mas, que nos perdoe o Ivan Lessa, a última edição foi emblemática. Vejamos as principais questões que ela traz. A banalização do sexo, em belo artigo de Ana Bruno e na antecipação de trechos de uma entrevista de Leonardo Boff que será publicada na sétima edição. Qualquer ação política que ignore tal ponto estará passando ao largo da mercantilização da sexualidade e seu esvaziamento erótico-afetivo. Todo o investimento do capitalismo contemporâneo reside na extinção do corpo que comunica. Não cremos que a juventude seja refratária a discutir os marcos narcísicos que a impedem de sonhar um projeto coletivo. Basta que o convite seja bem formulado e, nesse sentido, o jornal logra pleno êxito.

Orfandade geral

A tibieza do governo ante os ditames coloniais do secretário de Comércio americano em visita ao Brasil e a fúria com que a turma do Planalto investe contra o relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Alimentação, o suíço Jean Ziegler, são demonstrações evidentes, no texto de Sérgio Augusto, de como opera na prática a "Teoria da Dependência". O primeiro afirmou que as causas de estagnação do país são endógenas (corrupção, incompetência etc.), o segundo denunciou uma desigualdade social que nos põe no mesmo patamar da África do Sul. Quem sabe assim, em texto tão claro quanto indignado, a questão imperialista não se recoloque para as gerações mais jovens? Mas o melhor em contundência e concisão está no texto de Fausto Wolff, "Sete pragas do Aegypti". Servidão da mídia, o caráter subalterno dos setores dominantes frente aos interesses externos e a saúde pública são articulados, com rara felicidade, em artigo que pode, facilmente, ser objeto de leitura e debate em salas de aula. Em 39 linhas, Bernardo Kucinski fala sobre os lucros dos bancos e a falência ética de um "jornalismo de mercado".

Como vemos, ao contrário do que apregoam nostálgicos e novidadeiros, o Pasquim está perfeitamente inserido no contexto. E para os que pugnam por uma sociedade democrática, seu aparecimento é motivo para novos alentos. Vem a formar com Caros Amigos, Observatório da Imprensa e várias publicações comunitárias e sindicais o marco de um novo jornalismo. Recentemente, Fernando Henrique Cardoso afirmou que caberia à mídia fiscalizar o processo eleitoral. Vários articulistas replicaram com uma indagação: quem vai fiscalizar a mídia? O aporte de capital à Globo Cabo parece indicar que os fiscais já foram razoavelmente remunerados. Versão contemporânea da famosa formulação de Marx sobre "quem educa o educador", a questão sobre quem fiscaliza a mídia parece apontar para o próprio campo jornalístico. Molecularmente se redefinindo em ação recíproca com a criação de novos espaços públicos não-estatais.

Que nos perdoem os nostálgicos, mas se for para o fortalecimento das casamatas democráticas, ansiosamente aguardamos o retorno de tantos outros que fizeram história nos anos 70. E que, por dissidências políticas ou problemas financeiros, nos deixaram entregues ao pensamento único da imprensa atual. Que retornem todos os que partiram num rabo de foguete, deixando órfãos o bêbado e a equilibrista.

(*) Professor titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio

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