Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Leila Reis

BAIXARIA NA TV

“Conteúdo da TV, na mira do ministro da Justiça”, copyright O Estado de S. Paulo, 8/06/03

“Desde que assumiu, em janeiro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não se manifestou a respeito da qualidade da programação da TV brasileira. Nesta entrevista exclusiva ao Estado, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, anuncia uma pesquisa ampla para saber o que a sociedade brasileira quer ver na TV, fala do Sistema Único de Segurança Pública e critica a postura da polícia, que colabora com os shows policialescos que, a seu ver, desrespeitam os direitos dos cidadãos.

Estado – O que o senhor pensa sobre o conteúdo da TV brasileira?

Márcio Thomaz Bastos – Nós temos um departamento de classificação indicativa de horário. É um organismo que está se esforçando para analisar tudo, mas tem poucas pessoas para todo o trabalho.

Estado – O senhor não acha que a classificação da programação por faixas etárias é muito pouco para garantir a qualidade na TV?

Bastos – Eu penso que o fundamental é fazer uma grande discussão nacional para saber o que a sociedade quer ver na TV. Porque vem um e diz que tem sacanagem na novela das 6, outro diz que tem muita violência em outro programa, mas nós não temos indicadores para avaliar as reclamações. Já dei ordens à Secretaria Nacional de Justiça para suscitar uma discussão nacional da qual têm de participar as emissoras, as universidades, as ONGs.

Estado – No passado, o governo federal chamou as emissoras para fazer um manual de qualidade visando à auto-regulamentação, que não foi em frente. Como o senhor pretende lidar com a TV?

Bastos – Não quero impor um manual de qualidade, quero reunir todos os estudos que se tem produzido a respeito para guiar esse trabalho.

Estado – O que o Ministério da Justiça pensa sobre a participação voluntária e entusiasmada da polícia nos programas de crimes?

Bastos – Não gosto disso, sempre falei mal quando era advogado e continuo achando uma conduta reprovável. Essas ações são um desrespeito aos direitos humanos. Submeter um indivíduo ao constrangimento da condenação, como a mídia faz, antes até da instauração de inquérito é inadmissível. O fato de a polícia levar suspeitos para a TV para o repórter atuar como juiz, como acontece nos programas das 5 às 7 da tarde, é atentar contra os direitos do cidadão. Um dia desses vi o policial tirar um suspeito do camburão sob as luzes da TV e levantar o rosto do sujeito para a repórter, que perguntou: ?Você estuprou duas enteadas, como vai provar o contrário?? É a condenação sem julgamento.

Estado – Por que o Ministério da Justiça não impede a colaboração da polícia?

Bastos – O Ministério da Justiça não tem poder de polícia sobre as polícias estaduais, elas são autônomas. Mas estamos implantando o Sistema Único de Segurança, já assinamos convênio com nove Estados e vamos assinar com os outros. Um dos princípios desse plano é o respeito estrito aos direitos humanos e, dentro dele, está incluída a relação da polícia com a mídia.

Estado – Outro dia, a Polícia Civil do Paraná forneceu a um programa uma gravação de uma cena de estupro de uma criança, que foi exibida durante dias. Está certo isso?

Bastos – Claro que não, isso é comportamento típico de delegado, porque essa colaboração tornou-se moeda de troca. A polícia facilita a montagem desses programas em troca do holofote. E acaba reforçando a teoria do justiceiro. Como a Justiça não vai funcionar, trata de condenar as pessoas pela mídia. Já vi pessoas destruídas por esse tipo de conduta. A mídia não pode substituir a Justiça.

Estado – Quando esse Sistema Único de Segurança estará funcionando nacionalmente?

Bastos – Esperamos que dentro de poucos meses todos os Estados tenham assinado convênios. Aí, sim, vai ficar claro que a eficiência policial é parelha do respeito estrito aos direitos humanos.”

“Sangue, lágrimas e escândalo”, copyright Veja, 11/06/03

“Até pouco tempo atrás, o fim da tarde e o começo da noite na televisão eram marcados por uma programação leve: filmes de adolescentes, desenhos animados e programas palatáveis para donas-de-casa. Nos últimos três anos, a situação mudou. Essa faixa de horário se converteu num bolsão de mau gosto. Emboladas na disputa pelo segundo lugar de audiência, as emissoras Record, Bandeirantes e Rede TV! são as principais responsáveis pelo fenômeno. Elas preenchem a faixa que se estende, grosso modo, das 16 horas às 19h30, com três tipos de atração: jornalísticos sensacionalistas, programas de pegadinhas e shows que dissecam, em público, crises familiares, traumas sexuais e outros ?dramas humanos?. Na última quarta-feira, no aniversário de dois anos do programa Hora da Verdade, da Bandeirantes, uma irmã contava à outra que a estava traindo com seu namorado. Na mesma hora, o Repórter Cidadão, da Rede TV!, exibia de maneira apelativa a imagem de uma criança de 8 anos que vendia seu próprio tênis num semáforo ?para levar comida para casa?. Eventualmente, até a Rede Globo contribui para o festival de mau gosto com seqüências para lá de picantes na novela Kubanacan.

Há uma explicação para esse quadro, embora ela esteja longe de funcionar como justificativa moral. O custo da televisão aumentou muito nos últimos anos – tanto pelo investimento em equipamentos quanto pelos altos salários de alguns apresentadores. O mercado publicitário, por outro lado, manteve sua configuração: quase 60% das verbas vão para a Globo, 15% ficam com o SBT e o restante é disputado pelas demais emissoras. Estas últimas vêem-se, assim, obrigadas a brigar pela porção composta principalmente de anúncios baratos. Ou seja, o merchandising, dentro dos programas, de ungüento para calos, creme para alisamento de cabelos, serviços de financiamento de carros usados e outras coisas que tais. As atrações do final da tarde são os hospedeiros naturais para esse tipo de anúncio, até pelo perfil do público que está diante da TV no horário, formado sobretudo por espectadores das classes C, D e E. Para atrair mais facilmente essas pessoas, as emissoras lançam mão da mesma fórmula utilizada pelas estações de rádio AM: a exploração dos ?dramas humanos? e equivalentes. Por último, garantir uma audiência gorda entre o final da tarde e o início da noite não é apenas bom em si: é bom também porque, por efeito de inércia, serve para alavancar a audiência noturna, horário em que estão os nacos mais gordos de publicidade.

Um dos maiores problemas da baixaria entre as 16 horas e as 19h30 é a alta probabilidade de que crianças acompanhem os programas sem que nenhum adulto possa controlar o que estão vendo, ao contrário do que acontece em outros horários que também não primam pelo bom gosto – como as tardes de domingo, ou as noites do SBT com o famigerado Programa do Ratinho, um precursor do estilo bagaceiro. Segundo dados do Ibope, 15% da audiência nessa faixa de horário, na Grande São Paulo, é formada por crianças. A boa notícia é que alguns canais reconhecem ter passado dos limites nos últimos tempos e prometem – ao menos prometem – providenciar ajustes.

Tanto a direção de jornalismo da Rede Record quanto a da Rede TV! resolveram pedir desculpas por cenas que exibiram recentemente em seus respectivos programas policiais, o Cidade Alerta e o Repórter Cidadão. O primeiro acompanhou, há pouco mais de um mês, a tragédia de um policial militar que se matou com um tiro. Só não mostrou o disparo: a imagem foi congelada um segundo antes de ele acontecer. ?Aquelas imagens não deveriam nunca ter ido ao ar. Foi falha de um editor do programa, mas eu também assumo responsabilidade por ela?, diz Luiz Gonzaga Mineiro, diretor de jornalismo da Record. Dias mais tarde, o Repórter Cidadão, da Rede TV!, exibiu material semelhante: um assaltante que apontava um revólver para o próprio pescoço e ameaçava matar-se diante da polícia. A transmissão não foi ao vivo. Ao comentar as imagens, o apresentador Marcelo Rezende bradava: ?Se o bandido tivesse puxado o gatilho, eu mostraria. Temos mais é que acabar com essa hipocrisia?. Segundo José Emílio Ambrósio, diretor de jornalismo da Rede TV!, a emissora deveria ter tratado o assunto de maneira menos sensacionalista. ?O Rezende também não poderia ter falado daquela maneira, e naquele tom?, diz ele.

Se o sensacionalismo e a banalização da violência são o problema dos programas jornalísticos, a exploração da miséria alheia e a exibição de histórias forjadas comprometem o Canal Aberto, de João Kleber, na Rede TV!, e o Hora da Verdade, apresentado por Márcia Goldschmidt na Bandeirantes. O Canal Aberto é um programa de pegadinhas suscetível a críticas em duas frentes: em primeiro lugar, por expor seus participantes a situações vexatórias. Em segundo, por enganar o espectador sugerindo que tudo o que ele está vendo é espontâneo, e não parte de uma combinação. ?Todo mundo que aparece no vídeo sabe que está participando de uma brincadeira, ainda que às vezes não saiba exatamente o que vai acontecer. O problema é que nós nunca deixávamos isso claro, o que podia induzir o espectador a um erro. Por isso criamos legendas para não deixar nenhuma dúvida?, diz Mônica Pimentel, nova diretora de programação da Rede TV!.

Um tipo semelhante de ficção parece ter ocorrido no Hora da Verdade, apesar de o lema do programa ser ?Sem máscaras e sem rodeios, a vida como ela é?. Ao menos um dos casos explorados por Márcia Goldschmidt seria armação, de acordo com declarações de seus próprios protagonistas. Há dois meses, a paulistana Neide (cujo nome real é Ivaneide Fernandes de Lima) procurou a produção de Márcia porque queria ajuda para reconciliar-se com a filha de 16 anos, com quem havia brigado. A história não interessou ao programa, mas seu nome foi anotado. Segundo a versão de Neide, poucos dias depois ela fazia as unhas com a manicure Maria do Carmo Pereira quando um produtor do Hora da Verdade entrou em contato com ela. Queria saber se Neide aceitaria participar de um quadro inventado e se conhecia algum rapaz com cerca de 20 anos que topasse contracenar com ela, no papel de namorado impotente. Sempre de acordo com Neide, ela aceitou a proposta do produtor e sua amiga manicure convenceu o filho Anderson Lima de Araújo, de 19 anos, a atuar no quadro. Salvo um pequeno tropeço – a certa altura, Neide chamou seu amado de ?Emerson? -, tudo correu bem na apresentação. Os ?namorados? haviam ensaiado nos bastidores e bateram boca por vinte minutos. Essa versão é apoiada por Anderson e Maria do Carmo, que também apareceu no programa. O Hora da Verdade tem 6 pontos de audiência em média. Com Neide e Anderson, conseguiu chegar a 10 pontos de pico. O sucesso gerou uma continuação: dias depois, o casal voltou ao ar para desmanchar a suposta relação. Segundo a apresentadora Márcia, seu programa não compra histórias forjadas. Apenas oferece a cada participante ?um dinheirinho como ajuda de custo?. Na primeira participação, Neide e Anderson receberam 50 reais. Na segunda, conseguiram aumentar o valor para 70 reais. ?Eu estou desempregado e preciso de dinheiro para comprar fraldas para meu filho?, diz Anderson, o suposto impotente. Neide ainda foi chamada uma terceira vez. A direção da Bandeirantes nega ter conhecimento de armações no programa que veicula e afirma que todos os participantes do Hora da Verdade assinam documentos atestando a veracidade das histórias que vão ao ar. ?Se ficar evidente que a Bandeirantes foi vítima de uma fraude, tomaremos as providências legais cabíveis?, diz o vice-presidente da emissora, Marcelo Parada.

Na tentativa de concorrer com o programa de Márcia, a Record retirou do limbo, na semana retrasada, o apresentador Wagner Montes e o pôs para apresentar o Verdade do Povo. A fórmula é a mesma da concorrência: muito choro e muita história triste, com música de suspense ou de velório ao fundo. Wagner Montes, para quem não lembra, foi um dos pioneiros na exploração dos ?dramas humanos?. No começo dos anos 80, ele trabalhava como repórter de O Povo na TV, do SBT. O programa foi pivô de um escândalo em 1982, ao exibir ao vivo a morte de um bebê de 9 meses ao som da música Ave Maria, de Gounod. Em sua nova temporada no ar, Wagner Montes já mostrou que não perdeu o fôlego. Ele grita muito, especialmente ao repetir um de seus slogans: ?Este é um país de canalhas?.”

“Os inventores da ética”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 4/06/03

“Jovens, adolescentes e pós-adolescentes adoram devorar batatas fritas, Big Macs e bons conselhos. O bom conselho da vez é que comprar drogas financia a violência dos traficantes. Tem tudo para sumir no meio do katchup e da mostarda. Não vai dar nem para sentir o gosto.

A campanha de conscientização, que o Brasil inteiro está vendo na TV, é movida pelo saudável (e até raro) objetivo de injetar uma determinada ética na opinião pública. Não é só voltada para jovens, mas eles são seu alvo principal. E aí começa o problema. A melhor forma de despertar a antipatia de um jovem é deixá-lo perceber que estão tentando ?conscientizá-lo?. As chances de fisgarem sua mente com slogans e spots caídos do céu são escassas. O sujeito está justamente na fase de achar que o mundo foi estragado pelos mais velhos, e estes – logo estes! – ficam enviando-lhe verdades declamadas por vozes em off.

A sociedade culta, em suas simplificações positivistas, acredita que a propaganda resolve tudo. O usuário de drogas estaria só esperando que alguém o cutucasse e martelasse em seu ouvido o nexo entre o seu vício e a violência do tráfico. É como se a campanha dissesse: ?Vamos dar discernimento a esses lunáticos?, acreditando que o tal despertar ético se resolva com uma equação de primeiro grau, do tipo ?informação + responsabilidade = reação?. Se a vida fosse uma grande cartilha de escoteiro, estaria tudo resolvido.

Caso essa campanha faça os viciados em cocaína pararem de cheirar, o próximo passo pode ser um videoclipe para conscientizar os deprimidos de que a vida é bela. O mais provável, porém, é que continuem cheirando, talvez repassando o bom conselho ao traficante (?não vai gastar tudo em AR-15, hein??).

A cabeça unidimensional dos idealizadores da campanha ética quer acreditar que a questão das drogas pode ser trancafiada no campo sociológico. Acham que o viciado vai congelar suas tempestades mentais e emocionais para aplaudir a lógica econômica impecável dos slogans educativos. Mesmo os usuários que não têm profunda dependência química (alguma dependência sempre há) dificilmente engolirão conformados essa culpa pela cadeia da violência urbana.

Ao slogan que o acusa de financiar o tráfico, responderiam com outro: ?Acabem com o monopólio dos bandidos sobre a minha maconha.? É tudo uma questão de ponto-de-vista. Seres humanos usam drogas desde a Antigüidade e jamais deixarão de usar, seja para autodestruição, seja para experimentar estados psicológicos diferentes, ou para mera diversão. Se o esquema da droga proibida que circula livremente pela sociedade sustenta, além do crime, uma vasta rede de propinas no serviço público, o consumidor tem todo o direito de perguntar: ?O problema sou eu?? Quem sabe ele aceite fazer a parte dele, desde que o resto da sociedade pare imediatamente de fazer compras em camelôs. Não existe dinheiro mais ou menos sujo.

A loura e rica Suzane Richtofen provavelmente tinha um baú repleto de bons conselhos de seus pais, cultos e civilizados, que acabaram assassinados por ela. O ato de consumir drogas está ligado, na imensa maioria dos casos, a impulsos de alguma forma transgressores ou subversivos. O jovem rebelde está ali justamente querendo que as coisas à sua volta parem um pouco de fazer sentido, e aí vem a sociedade dos velhos apresentar-lhe equações sociológicas, provando por A + B o que é certo fazer.

Não é difícil pressentir que, nesse caso, A + B será igual a zero.”