HIPÓLITO E SEU JORNAL
(Ou homenagem ao leitor desconhecido)
Marisa Lajolo (*)
Já tudo se vai sumindo!…
Já desaparecem as terras;
Pelos outeiros e serras
Sobem ondas a granel…
E neste geral desastre
Somente a minha piroga
Ligeira sem risco voga
Sobre as ondas de papel!
Sobre estes estranhos mares,
Voga, voga, meu batel!…
[…]
Oh! século dezenove,
Ó tu, que tanto reluzes,
És o século de papel?!…
Sobre estas estranhas ondas,
Voga, voga, meu batel!…
(Bernardo Guimarães, Dilúvio de papel: sonho de um jornalista poeta)
Quem seriam os leitores do tão sisudo Correio Braziliense ou Armazém Literário (CB), que ? impresso em Londres por iniciativa do gaúcho Hipólito José da Costa (HJC) ? forneceu leitura para uns poucos brasileiros e muitos outros portugueses a cujas mãos o mensário chegava pelas mais diversas vias? Para quem o comerciante carioca J. J. Dodsworth anunciava que dispunha do jornal para venda? [Ana Luiza Martins, Revistas em revista. Imprensa e práticas culturais em tempos de República SP, 1890-1922 (São Paulo: Fapesp/Edusp/Imprensa Oficial do Estado, 2001), p. 48.]
“Jornal de doutrina e não de noticiário”, como o define Wilson Martins, [Wilson Martins, História da inteligência no Brasil (2a ed. São Paulo: Cultrix, 1978), vol. 2, p. 28.] o CB durou catorze anos ao longo dos quais não foi pequeno o papel que desempenhou na articulação da Independência brasileira, bem como na discussão do novo perfil da América ? latino e norte americana ? esculpido pelas sucessivas independências da antigas colônias européias.
Quem, na afastada e rude colônia lusitana lia uma publicação como a de HJC que incluía entre seus objetivos “aclarar os meus compatriotas sobre os fatos políticos, civis, e literários da Europa, traçar as melhorias das ciências, das artes e, numa palavra de tudo aquilo que pode ser útil à sociedade em geral objetivando transmitir a uma nação longínqua, e sossegada, na língua que lhe é mais natural, e conhecida, os acontecimentos desta parte do mundo” [CB, 1: 4]?
Para quem HJC traçava tão generoso projeto cultural?
Já na abertura do primeiro número, a epígrafe escolhida pelo jornalista sugere um dos horizontes de leitura esperados dos seus leitores virtuais: é em Camões que o jornalista gaúcho vai buscar o texto com que começa a compor o primeiro acervo na estante das leituras prevista para seus leitores. A epígrafe do CB reproduz dois dos mais famosos versos camonianos, os decassílabos que arrematam um dos muitos momentos ufanistas de Os Lusíadas. Ao narrar a entrada da esquadra de Vasco da Gama na barra de Calecute, o narrador compara Portugal a outras nações européias (sempre diminuídas) e destaca o zelo dos portugueses na missão evangelizadora para a qual se julgam eleitos e que abraçam com entusiasmo:
Na quarta parte nova os campos ara,
E se mais mundo houvera lá chegara [Luís de Camões. Os Lusíadas (Porto: Porto Editora, s.d.), p. 230.]
Os versos que constituem o pórtico de entrada do CB, escolhidos por um macem e por um futuro militante da independência das colônias americanas não deixam de ser intrigantes, principalmente se os inscrevermos no contexto da estrofe de que são o dístico final:
Mas, entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltaram cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa lusitana.
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana.
Na quarta parte nova os campos ara,
E se mais mundo houvera lá chegara [Id., ibid.]
Os leitores pretendidos por HJC precisam ser, pois, leitores familiarizados com Camões, capazes de compreender todas as eruditas alusões à história e igualmente capazes de destrinchar a cifrada menção ao descobrimento e colonização da América. Mas, para além desta familiaridade com linguagem e topoi quinhentistas exigidos para a leitura literal do texto, seria legítimo pensar-se também na expectativa de uma leitura irônica dos versos que servem de vestíbulo ao CB?
Nesta última perspectiva, para que uma eventual ironia inscrita na epígrafe do CB seja eficiente, é preciso, ainda, que HJC possa contar com leitores não só familiarizados com o poema de Camões, como ainda leitores para os quais os dois versos transcritos sejam suficientes para evocar o contexto quinhentista da epopéia sobre o qual se pode construir um efeito de ironia. Que artimanha semântica se espera dos leitores para que faça sentido recorrer a Os Lusíadas como intertexto de uma publicação, se ainda não anticolonial em seus primeiros números, com certeza já bastante crítica do conservadorismo português? Ou para indagar como indaga o próprio Camões, dialogando em medida velha com o Velho Testamento: como “cantar em Babilônia as cantigas de Sião”?
Se legítima, esta expectativa de leitura temperada de sorrisos matreiros constitui um primeiro cumprimento de HJC a seus leitores: seu público incluiria leitores capazes de ler entrelinhas, de entender sub-textos e, sobretudo, de interpretar com ironia a presença, em um jornal de intenção liberal e crítica, de uma epígrafe que exalta o expansionismo europeu, destacando-se o lusitano.
Nesta perspectiva, HJC precisaria pressupor leitores dotados de um considerável grau de intimidade com o poema camoniano, leitores que pudessem ruminar com seus botões:
? E então, senhor HJC? Foi bom que os portugueses tivessem arado tanto mundo, e que, na esteira de tanto arado tivessem chegado à América? Nós, cidadãos do século XIX e habitantes da América portuguesa devemos solidarizar-nos com a proclamação ufanista de que não havia limites para a expansão portuguesa? É esta leitura passiva e conformada da épica do expansionismo que a epígrafe nos pede? Ou devemos rebelar-nos e entender como irônica a remissão a Camões?
A se aceitar esta hipótese, já se vê que não é qualquer que se habilita à leitura do CB.
Problemas de leitura, problemas de leitores… Problemas que nem por serem insolúveis, deixam de ser sugestivos para quem quer reconstituir as feições daquele público sem rosto a cujas mãos e olhos chegava o CB.
O mesmo processo de leitura retorcida exigida pela epígrafe talvez precise ser exercido pelo leitor que, em meio às oitenta páginas de texto cerrado, corpo oito espaço um do primeiro número do jornal, defronta-se, entre as matérias de estréia, com a transcrição de um “Hino patriótico” que fecha o volume e a seção Miscelânea [CB, 1: 79-80]:
Deus guarde o nosso rei,
Sua vontade é lei;
Ah! Viva el-rei!
Seja com honra, e glória,
Pela eterna memória,
C?roado de vitória,
O nosso rey.
No luso coração,
Perfeita submissão,
Ao nosso rei.
Seu retrato amado,
Em todo peito honrado,
Será sempre gravado,
Ah viva el-rei!
No peito português,
Valor, intrepidez,
Por nosso rei.
Viva em nós respeitado,
Desde o Tejo dourado,
?Té o pólo gelado,
O nosso rei.
Nossas quinas reais,
Aos imigos fatais
São imortais.
Ante o trono prostrado
Seja em verso cantado
Pelo vassalo honrado,
Ah! Viva el-rei.
Da Família de Bragança
A saudosa lembrança
Sempre teremos.
Desses lusos varões,
Com fiéis corações
Se imite as ações
Por nosso rey ?
A propósito deste curioso poema, o CB informa ter sido ele “cantado no dia de anos de S. A. R. o príncipe regente de Portugal, em Londres, com a música de ?God Save the King?”.
As estrofes que compõem a improvisada homenagem natalícia entoada ? como narra o jornal ? pelos cavaleiros portugueses que em 13 de maio “se ajuntaram para celebrar […] os anos de S. A. R., o príncipe regente; assim como a sua feliz chegada aos seus Estados do Brasil” [CB, 1: 79] prima pelo mau gosto poético. Além disso, o poema é politicamente contraditório e talvez deixasse uma pulga atrás da orelha de leitores mais atilados: num periódico que pretende um alinhamento pouco conservador, não fica curiosa a celebração do perfil absolutista de um monarca como o registrado nas expressões “sua vontade é lei” e “perfeita submissão”?
Assim, então, da mesma forma como ocorreu com os versos camonianos, a interpretação deste poema pode ser intrigante. Estes versos natalícios parecem sugerir ou um público acostumado com o exercício laudatório da poesia ou, ao contrário, um público mais requintado, capaz de produzir uma leitura no mínimo bem humorada, um olho nas linhas e outro nas entrelinhas.
Problemas de leitura? Problemas de leitores!
No caso destes desenxabidos versinhos de parabéns ao rei, no entanto, o leitor do CB politicamente alinhado com as vanguardas da época pode atenuar suas perplexidades quando repara que se trata da reprodução de matéria constante de “gazetas de Londres”. Ou seja: o objetivo do jornal, de “transmitir a uma nação longínqua, e sossegada, na língua que lhe é mais natural, e conhecida, os acontecimentos desta parte do mundo”, fazia do CB também uma estação retransmissora do que noticiava a imprensa européia, particularmente a da Inglaterra, onde HJC redigia e imprimia seu jornal e onde encontraram abrigo os portugueses em fuga de Napoleão.
Assim, o CB informa que a notícia do “Hino patriótico” foi pinçada “nas gazetas de Londres de 14 do mês passado”, preenchendo a reprodução da notícia dois longos parágrafos, entre aspas. Segue-se, em enunciado de HJC ? sem aspas, portanto ? a informação de que “tenho toda a satisfação de ter obtido uma cópia deste hino, que o julgo tanto mais próprio, quanto é feliz a lembrança do autor em o adaptar a musica do canto inglês ?God save the King?” [CB, 1: 79].
Esta continuação da notícia oferece aos leitores do CB outras possibilidades de leituras para a cantoria em homenagem a d. João. Ao comentar a notícia que transcreve, HJC sugere que a união da letra portuguesa com a melodia inglesa simboliza a “união que reina e deve reinar entre estas duas nações” [CB, 1: 79]. Para além do wishful thinking do redator, abre-se, talvez novamente, a hipótese de uma leitura irônica que pode divertir-se com uma interpretação paródica da performance: pode ser levada a sério a exaltação de um governante (no exílio) através de versos musicados com a melodia do hino nacional de outro país?
Que o leitor destas maltraçadas decida, como tiveram de decidir os leitores do hoje tão longínquo início do século XIX brasileiro.
Se a hipótese da paródia e da ironia se sustenta, encontra-se nela novo e sofisticadíssimo elogio aos leitores do CB, capazes de navegação por um texto que entrecruza diferentes tradições e diferentes linguagens. Na trilha de tantos cruzamentos, o CB de HJC pede de seus leitores trânsito desenvolto entre diferentes códigos, tradições e valores. Refina-se, assim, a pergunta inicial: quem seriam estes leitores de quem talvez HJC pudesse esperar gestos tão sofisticados de leitura?
Aparentemente, o jornalista não tinha muito por onde escolher. Com todas as ressalvas possíveis relativas à disponibilidade e credibilidade dos dados demográficos disponíveis para as primeiras décadas do século XIX brasileiro, Hallewell registra alguns números que permitem compor a seguinte tabela: [Laurence Hallewell, O livro no Brasil (São Paulo: TA Queirós/Edusp, 1985), pp. 6-7, 52-53.]
1800 |
1810 |
1820 |
|
Habitantes RJ |
50.000 |
60.000 |
112.695 |
Habitantes Brasil |
199.600 |
213.000 |
279.406 |
Destes milhares de pessoas, quantas eram alfabetizadas? E destas, quantas seriam capazes da sofisticação de leitura pedida pelo CB, ainda que nesta leitura não se incluíssem os efeitos de ironia acima discutidos?
Ainda se sabe pouquíssimo relativamente às práticas e números da leitura corrente entre a população brasileira da época do CB. Embora não mais se aceite a idéia de que não se lia no Brasil-Colônia, vários depoimentos, incluindo alguns relativos a época posterior à circulação do jornal de HJC, não são muito alvissareiros.
Em 1862, ou seja, quarenta anos depois de encerrada a circulação do CB, um jovem e ainda pouco conhecido Machado de Assis lamentava a situação quantitativa e qualitativamente precária de leitura praticada entre nós, registrando que “pode-se dizer que o nosso movimento literário é dos mais insignificantes possíveis. Poucos livros se publicam e ainda menos se lêem. Aprecia-se muito a leitura superficial e palhenta, do mal travado e bem acidentado romance, mas não passa daí o pecúlio literário do povo”. [Apud Marisa Lajolo & Regina Zilberman, A formação da leitura no Brasil (São Paulo: Ática, 1996), p. 78.]
Dez anos mais tarde, em 1872, José de Alencar insiste na mesma tecla ao prefaciar seu livro Sonhos d?ouro. Para o romancista cearense, o público leitor brasileiro é ralo e rarefeito, o que lhe inspira a tirada irônica com que acerta contas com a crítica, ao recomendar a seu livro que evite “cair no gosto da pouca gente que lê”. [M. Lajolo & R. Zilberman, op. cit., p. 92.]
Se estes depoimentos sugerem um público na segunda metade do século XIX ainda bastante incipiente e despreparado, mais desalentadores ainda são os depoimentos de que dispomos relativamente ao tempo de circulação do CB.
Henry Koster, um viajante que perambulou pelo Brasil nos arredores de 1810, em livro de 1817 informa que “alguns de meus vizinhos, tanto em Itamaracá quanto em Jaguaribe entravam às vezes enquanto eu estava lendo e achavam estranho que eu achasse prazer nesta atividade. Eu me lembro de um homem que dizia: ? O senhor não é padre; portanto, por que o senhor lê? O senhor está lendo um breviário? Em outra ocasião, contaram-me que eu tinha granjeado a fama de um homem muito santo, porque estava sempre lendo”. [Apud Marisa Lajolo, Do mundo da leitura para a leitura do mundo (São Paulo: Ática, 1995), p. 58.]
Para mitigar tanta desleitura, pode-se contra-argumentar que Koster referia-se ao interior do Nordeste brasileiro e que talvez bem outra fosse a situação do público leitor disponível em centros urbanos maiores do que Itamaracá ou Jaguaribe. Lúcia Neves, em ensaio sobre venda de livros e material impresso que pesquisa e interpreta anúncios, catálogos e documentação alfandegária, registra significativo movimento livreiro ? inclusive em províncias do Nordeste. Seus dados, por tabela, atestam a existência de um público leitor na Colônia, para muito além do que faziam crer as às vezes mal humoradas crônicas de viajantes europeus. [Cf. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, “Comércio de livros e censura de idéias: a atividade dos livreiros franceses no Brasil e a vigilância da Mesa do Desembargo do Paço, 1795-1822”, Ler história, 23 (1992), pp. 61-78.
Um outro viajante, o inglês John Luccock, percorrendo o Brasil entre 1810 e 1818, noticia neste último ano a relação de um leilão onde o destino de uma partida de livros também parece atenuar um pouco as cores sombrias do panorama sugerido por Koster.
O leilão comentado por Luccock, realizado no Rio de Janeiro, encontra compradores para obras tão ou mais sisudas e sofisticadas do que o CB, embora Luccock não deixe de assinalar, no relato que faz, uma espécie de desencontro entre o acervo oferecido à venda e o gosto e o interesse do público disposto a comprá-lo.
O inglês é implacável na desqualificação das práticas leitoras do país que o acolhe: “[…] num leilão de livros, saíram muito bem tanto obras inglesas como algumas latinas; poucas, porém, creio terem caído em mãos brasileiras. Os livros franceses são procurados; mas foi impossível, por todos os meios vender uma coleção de Glasgow da Ilíada de Homero, em grego, a Septuaginta e Novo Testamento na mesma língua, nem tampouco os léxicos de Hederic e Schrevelius, como também não encontrou freguês um Saltério hebraico com tradução latina”. [Apud M. Lajolo & R. Zilberman, op. cit., p. 181.]
No entanto, depoimentos assim variados, isolados e pitorescos, aos quais talvez se deva creditar uma boa pitada de preconceito europeu, talvez não forneçam as informações de que se carece para esboçar um retrato da situação da leitura no Brasil nos primeiros vinte anos do século XIX. Os retratos que tais depoimentos debuxam ? e que se ajustariam aos eventuais misteriosos leitores do CB ? serão sempre retratos traçados a partir de casos isolados, narrados por viajantes nativos de sociedades nas quais a cultura livresca já estava implantada e que, portanto, têm por paradigma modelos de práticas de leitura inadequadas para darem conta da leitura na América portuguesa.
Não se pode também esquecer que a leitura discutida como prática isolada de um ou de outro leitor sempre fornecerá causos pitorescos, aquém e além mar. Mais proveitoso é concebe-la como prática social que, ainda que realizada de diferentes formas por diferentes sujeitos, ocorre sempre no interior de um sistema cuja existência depende de uma complexa rede de constituintes e cuja malha mais central é a escola, instituição responsável pela disseminação das competências cognitivas que capacitam o indivíduo para a leitura.
Em graus distintos, estas competências são responsáveis pelas tarefas de decifração, compreensão e interpretação de um texto. Ou seja, a escola é responsável pela alfabetização e letramento, respondendo este último conceito pela capacidade de discernimento entre diferentes níveis de um texto, e pela capacidade de estabelecer diálogo entre diferentes materiais lidos, [Relativamente a tais conceitos, cf. Magda Becker Soares, Um tema em três gêneros (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1999).] como seria o caso dos leitores do Correio Braziliense que se dedicassem a especular sobre o significado da epígrafe camoniana ou sobre o sentido paródico do “Hino patriótico”.
E de que sistema escolar dispunha o Brasil pelo qual circulava o CB? De um sistema ineficiente e muito precário. Precariíssimo mas que, não obstante, permitia que se esperasse domínio de leitura ao menos de uma fração dos moradores da terra, como se deduz, por exemplo, do “Plano de estudos de cirurgia” de 1813 que reza que “os estudantes para serem matriculados no primeiro ano do curso de cirurgia devem saber ler, e escrever corretamente”.
Problemas de leitura, problemas de leitores: quem sabe a literatura os soluciona? Afinal, HJC é o patrono da cadeira número 17 da Academia Brasileira de Letras.
Memórias de um sargento de milícias, delicioso romance de Manuel Antônio de Almeida, nos traça uma sugestiva cartografia de modos de aprendizagem de leitura no Brasil oitocentista. Publicada em folhetins ao longo de 1852 e 1853, a historia se ambienta, no entanto, “no tempo do rei”, ou seja, ao tempo de d. João VI, coincidindo, portanto, o enredo do livro de Manuel Antônio de Almeida com o período da circulação do CB.
“Papéis escritos” são mencionados logo no começo do romance, no bojo da cena que narra a grande briga conjugal entre o meirinho Leonardo Pataca e Maria Saloa. Enquanto o casal troca sopapos, Leonardo ? filho deles e protagonista da história ? “ocupa-se em rasgar as folhas dos autos [que o pai] tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos”. [Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias (5a ed. São Paulo: Ática, 1975), p. 13.]
Trata-se, ao que parece, já “no tempo do rei”, da dessacralização do mundo da letra escrita.
Além de essa papelada rasgada e transformada em brincadeira de criança pertencer ao mundo da administração pública ? e esta foi, efetivamente, a porta de entrada da imprensa no Brasil ? a cena também pode ser interpretada como premonitória das desavenças entre o menino Leonardo e o mundo da leitura e da escrita. Ao lado de uma fugaz aparição da escola, o romance de Manuel Antônio de Almeida ? como tantos outros ? encena um aprendizado doméstico da leitura: “[…] o compadre aplicava-se a trabalhar na realização de seus intentos, e começou por ensinar o ABC ao menino; porém, por primeiro contrariedade, este empacou no F, e nada o fazia passar adiante”. [Id., op. cit., p. 27.]
O leitor de Manuel Antônio de Almeida fica sabendo que esta aprendizagem doméstica foi também o processo pelo qual aprendeu a ler o improvisado professor: o narrador informa que quem ensinara ao compadre o ofício de barbeiro “por inaudito milagre [também lhe ensinara] a ler e a escrever”. [Id., op. cit., p. 30.]
O custoso sucesso da pedagogia empregada pelo barbeiro é atestada em várias passagens da história, que registram, um penoso e paulatino domínio do bê-a-bá: “o menino desempacara do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo”. [Id., op. cit., p. 36.] Mas finalmente a aprendizagem tem um happy end e, algumas páginas depois, o leitor é informado que o menino “lia soletrado sofrivelmente”, [Id., op. cit., p. 38.] o que permite que ele seja levado à escola onde, no primeiro dia de aula, o barbeiro orgulhosamente informa ao professor que ele “tem muito boa memória [e] soletra já alguma coisa”. [Id., op. cit., p. 39.]
Não é muito diferente a aprendizagem de leitura registrada no romance de Machado Memórias póstumas de Brás Cubas, obra que publicada em 1880 se passa em época bastante anterior, tendo o protagonista que dá título ao livro, nascido em 20 de outubro de 1805. [Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, em Idem, Obra completa (org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962), vol. 1, p. 523.] Com isso, o testemunho de sua infância também coincide ? como a história que conta Manuel Antônio de Almeida ? com “o tempo do rei”, ou seja, a época de circulação do CB. Ao contrário de Leonardo ? o futuro sargento de milícias ? a aprendizagem de leitura de Brás Cubas parece ter-se desenvolvido integralmente na escola, evocada no capítulo XIII intitulado “O salto”, no qual o tagarela narrador convida o leitor para pular “por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras”. [Id., op. cit., p. 529.]
Muito curioso é que o anunciado salto “por cima da escola” não se dá, já que, no transcorrer do capítulo, o narrador detém-se no cenário escolar, marcado pela palmatória ? descrita como “terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare“ ? e pelo professor apresentado como “um velho mestre, ossudo e calvo, [que] me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe e o mais que ele sabia”. [Id., op. cit., p. 530.]
Trata-se, ao que parece, da dessacralização do aparelho escolar.
Com efeito, na ficção do período (e não só no Brasil), geralmente tanto a palmatória quanto a figura do mestre provocam memórias pesadas, depreciativas da escola. No caso do professor de Brás Cubas, seu nome ? Ludgero Barata, “o que servia aos meninos de eterno mote a chufas” ? e seu endereço ? “uma casinha na rua do Piolho” ? em nada atenuam a depreciação. [Id., ibid.]
Mas resta ainda uma esperança de que o velho bruxo do Cosme Velho nos ajude a vislumbrar o perfil do leitor do jornal de HJC. Será que mestre de Brás Cubas não lia o CB? No “Conto de escola”, recolhido em Várias Histórias, livro de 1896, a história se passa em 1840 e, como anuncia o título, transcorre numa sala de aula. Nela, o professor Policarpo, quando cansado de fiscalizar os alunos, tomava “as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões”. [Machado de Assis, “Conto de escola”, em Idem, Obra completa (org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962), vol. 2, p. 551.]
Se este professor de meados do século XIX levava jornais para sua sala de aula, será que seus antecessores na profissão não faziam o mesmo? Como eles, a figura deste professor-leitor-de-jornais é evocada empunhando uma palmatória, com a qual espanca o narrador e seu colega.
Essas dolorosas reminiscências da vida escolar não chegam a ser propriamente novidade, mas, no caso brasileiro, combinam bem com a precariedade quase absoluta ? apontada por todos os historiadores da educação brasileira ? do sistema escolar aqui disponível nas primeiras décadas do século XIX. Segundo a historiografia canônica, a expulsão dos jesuítas de todos os domínios portugueses através do decreto de 1759 assinado por d. José causou completo desmantelamento do sistema escolar por eles aqui implantado e mantido, não tendo sido seguido seu desmonte da anunciada e tão necessária re-organização do ensino.
A desastrosa conseqüência foi a penúria de escolas e a improvisação de professores, situação de que as passagens dos romances acima comentadas são testemunhos de fé. Isto é: se tivermos fé naquele roçar transverso da criação literária com a realidade que a sustenta.
Menos oblíquo e dissimulado do que o cenário que constroem romancistas ? afinal, ficcionistas por ofício ? são as informações que sobre a educação do tempo de circulação do CB fazem os historiadores.
Um dos mais antigos, José Ricardo Pires de Almeida, autor de uma História da instrução pública no Brasil, 1500-1889 originalmente escrita em francês porque o autor a queria publicada “numa língua universalmente conhecida” [José Ricardo Pires de Almeida, História da instrução pública no Brasil, 1500-1889 (trad. Antonio Chizzoti. Brasília/São Paulo: MEC/Inep/Educa, 1989), p. 5.] e só muito recentemente (1989) traduzida, infelizmente não fornece dados quantitativos da escolarização na época que nos interessa, mas compensa tal lacuna pela transcrição de documentos.
Entre os documentos que Pires de Almeida transcreve, um requerimento de 1793, assinado por Francisco Xavier de Souto Faria devassa alguns dos bastidores que regiam a abertura das escolas de aprender a ler, entre as quais talvez se conte aquela freqüentada pelo herói de Manuel Antônio de Almeida e também aquela onde estudou o protagonista das Memórias póstumas de Machado de Assis.
Reza o saboroso documento:
Rego. Do Requerim.to de Franc.co X.er de Soutto Faria Me. De Escolla pubca. De Ler, Escrever, Contar e Provizam Regia.
Senhores do Senado. = Diz Franc.co X.er de Soutto Faria, que elle, Supe. Se acha munido com os docum.tos juntos p.a ter a Sua Escolla pública de ler, escrever e contar; e p.r que pertende estabelecella nesta Cidade requer a Vossas mercês Se dignem mandar, que se cumprão e registem Seus Documentos neste Senado p.a delle tirar as Certidoens que lhe forem necessárias. Pede a Vossas mercês lhe deffirão na forma que rquer. E receberá mercê.
que recebe o seguinte despacho:
Cumprase a Provizam de Sua Magestade, como a mesma Senhora determina, e Registe se os documentos requeridos Rio, aos seis de Novembro de mil sete centos e noventa e três. = Fonseca = Velho = Souza =Cardoso [Modernizado, o texto transcrito por Pires de Almeida poderia ser o seguinte:
Regimento do requerimento de Francisco Xavier de Souto Faria, mestre de Escola Pública de Ler, Escrever, Contar e Provisão Régia.
Senhores do Senado: Diz Francisco Xavier de Souto Faria, que ele, suplicante, acha-se munido dos documentos anexos para ter a sua escola pública de ler, escrever e contar e, porque pretende estabelecê-la nesta cidade, requer que Vossas Mercês se dignem mandar que se cumpram e registrem seus documentos neste Senado, para dele[s] tirarem as certidões que forem necessárias. Pede que Vossas Mercês defiram [o pedido], na forma que requer. E receberá mercê […].
Cumpra-se a provisão de Sua Majestade como a mesma senhora determina e registrem-se os documentos requeridos. Rio, aos seis de novembro de mil setecentos e noventa e três. Fonseca Velho Souza Cardoso.]
Sendo o despacho válido por seis anos, renováveis, imagina-se sem esforço que na figura de Francisco Xavier de Souto Faria pode acomodar-se o perfil dos mestres tão pouco lisonjeiramente descritos, respectivamente, por Manuel Antônio de Almeida e por Machado de Assis.
Lauro de Oliveira Lima, bem mais contemporâneo do que Pires de Almeida e escrevendo em bom português, é pouco complacente no quadro que traça da educação de que podiam valer-se os presuntivos leitores do CB. Para ele, “no período que se seguiu à expulsão dos jesuítas (1759-82) o Brasil ficou privado de qualquer tipo de escola, mesmo as de ler, escrever, contar e tanger... A lei de Pombal (1782) e a de Pedro I (1827), criando escolas nos vilarejos foram atos puramente decorativos de que não ficou rastro na história do ? sistema? escolar brasileiro”. [Lauro de Oliveira Lima, Estórias da educação no Brasil: De Pombal a Passarinho (Rio de Janeiro: Editora Brasília/Rio, s.d.), p. 97.]
Um país sem escolas é um país sem leitores? Não necessariamente. Mas talvez seja um país sem muitos leitores e com poucos bons leitores. Leitores, aliás, heróicos, os leitores de HJC, já que também dispunham de poucas bibliotecas.
No período coberto pela publicação do CB, as bibliotecas brasileiras já investigadas pelos historiadores da leitura no Brasil parecem pertencer quase sempre a instituições eclesiásticas como conventos, seminários e claustros e, quando particulares, são propriedade de um ou outro magistrado ou dignitário da Igreja ou da Corte. É só a partir da chegada da Família Real que se cria uma biblioteca pública no Brasil, a partir do acervo trazido da de Lisboa sendo, pois, as religiosas e as particulares as únicas existentes. Nestas, pelo que se sabe até hoje, nenhum rastro do CB.
Neste cenário, como construir a imagem de um leitor verossímil para o jornal de HJC, uma cerrada publicação em letra pequena e parágrafos grandes? Abre-se cada um de seus sete primeiros números por uma seção intitulada “Coleção de documentos oficiais relativos a Portugal” reunidos sob a rubrica Política, seguindo-se a esta seção Comércio e Artes, vindo depois Literatura e Ciências, fechando-se cada número, com a rubrica Miscelânea.
O primeiro número do CB, por exemplo, pede leitura aturada e atenta: contém, na primeira rubrica, a transcrição de documentos trocados entre oficiais ingleses e seus governantes, relativamente à situação de Portugal e à transferência da Corte lusitana para o Brasil. Contém, além disso, comentários a um panfleto francês antibritânico, tabelas relativa ao comércio da Inglaterra, reflexões sobre o desgoverno dos governadores do Brasil. Tudo em vernáculo escorreito, em indisfarçável tom pró-britânico e antinapoleônico: ao noticiar, por exemplo, as campanhas do imperador francês na Itália, o jornal as refere como “as tiranias de Bonaparte na Itália”.
Aligeirando tanta matéria política, e tanta boa vontade em relação à velha Albion, o número de estréia do CB fornece também a seu leitor notícias relativas ao resto do mundo.
A seção Miscelânea do primeiro número do jornal, por exemplo, veicula notícias das então distantes e pouco conhecidas Rússia, Sicília e Suécia. É. Assim, na rabeira de matéria mais política que vem o que se poderia chamar de faits divers. Não falta aqui o tempero da peripéacute;cie narrativa nem do suspense ? como o que condimenta a notícia proveniente de Lisboa, relatando os disparos feitos por um capitão de navio contra os marinheiros de um bote: “Há poucos dias entrou no porto um navio de Rostock, e vindo um bote cheio de gente a abordá-lo, o capitão supôs, que eram ladrões, e fez-lhe fogo, com o que malferiu alguns; em conseqüência deste desacato, foi o dito capitão preso, e o navio embargado, mas não sabemos ainda qual será o resultado” [CB, 1: 73].
Com este travo folhetinesco de suspense deixando em aberto o desfecho do fato relatado, pode-se ampliar a lista de atributos requeridos do leitor do CB: além de freqüentador assíduo de Camões, além de precisar ser capaz de ler nas entrelinhas, além de precisar interessar-se por política e ser versado na geografia necessária para identificar os vários locais de onde provêm as notícias que lê, também deve fazer parte de seu horizonte de expectativas e de leituras um eventual gosto pelo romanesco e pelo folhetinesco.
E onde aprenderia e desenvolveria ele o gosto por este tipo de leitura?
Romances e folhetins ? ensina-nos a história da leitura da época ? ao lado livros didáticos ? constituíam parte considerável do estoque de leitura amplamente anunciado pelos fornecedores de livros e similares à corte e às províncias.
Enquanto a nossa Biblioteca Nacional estava sendo fundada em 1811, com o acervo trazido da de Lisboa, o jornal Idade d?Ouro do Brasil já anunciava aluguel de livros: “Na loja da Gazeta se alugam livros para lerem: os de 8o a 80 réis cada um, e podê-los ter em seu poder seis dias cada um; e os de 4o a 160, podendo-os ter também dez dias, deixando na mesma loja os seis importes, para se lhe restituir logo que venham os livros, descontando somente o aluguel, com a convenção que, passando do tempo estipulado, ficarão vendidos, sem que paguem o aluguel”. [Marlyse Meyer, Folhetim: uma história (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), p. 428.]
Muito embora Lúcia Neves registre desde o final do século XVIII o anúncio de livros e impressos disponíveis nas lojas de comerciantes franceses, [L. M. B. Pereira das Neves, op. cit.] é a partir da instalação da Imprensa Régia (1808) e, particularmente do início da circulação de jornais menos doutrinários e mais noticiosos do que o CB de HJC, que é possível conhecermos melhor as estantes dos leitores mais anônimos da Colônia, aos quais se dirigiam os apelos dos vendedores e locadores de livros. Estes anúncios, por si só, já atestam a existência de um público leitor e pagante, como aquele a quem se dirigia o anúncio do CB feito por J. J. Dodsworth e mencionado no início deste texto.
O que lia, então, este público, além do CB? Com certeza, entre outras coisas, lia os livros anunciados pela imprensa e não poucas vezes produzidos pela Impressão Régia e que lhe iam ensinando o gosto pela narrativa de suspense.
Em 1815, a Gazeta do Rio de Janeiro anunciava uma “História da donzela Teodora traduzida do castelhano em português, e a História verdadeira da princesa Magalona e Pierres [sic] Pedro de Proença [sic]”. Em 1816, o mesmo jornal anunciava Luíza ou O casal no bosque, de Mrs. Helme, impressa no Rio de Janeiro pela Impressão Régia e à venda na “loja da Gazeta”, e em 1819 encontra-se o anúncio da Vida de Mariana ou condeça [sic] de Marivaux. [M. Meyer, op. cit., p. 429.]
É também na Gazeta do Rio de Janeiro que Maria Beatriz Nizza da Silva encontra o livreiro Paulo Martin anunciando seu estoque de ficção, onde se encontram best sellers da época, como Paulo e Virgínia e Choupana índia. O preço, indicado nos anúncios que a pesquisadora transcreve permite uma interpretação bastante acurada do significado dos 1.280 réis que custava o CB: [Alberto Dines, “O patrono e seu modelo”, em Hipólito José da Costa, Correio Braziliense ou Armazém literário (ed. fac-similar. São Paulo/Brasília: Imprensa Oficial do Estado/Correio Braziliense, 2001), p. xxxvii.] [A. L. Martins, op. cit., p. 48.] A filósofa por amor, 2 vols., 1:920; Histórias de dois amantes, 960; Paulo e Virgínia, 2 vols., 1:600; Choupana índia, 640; Cartas de uma peruviana, 2 vols., 1:600; Diabo coxo, 2 vol 1:600; Cartas americanas, 960 réis. [Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura e sociedade no Rio de Janeiro, 1808-1821 (2a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978), p. 213.]
Mas os negociantes da leitura não apregoavam apenas livros e impressos em prosa. Relativamente à poesia disponível para consumidores ? afinal, o CB já em seu primeiro número não brindava seus leitores com as descosidas rimas de celebração ao aniversário do imperador? Maria Beatriz Nizza da Silva, além de apontar a freqüência de oferta de artes poéticas, registra que nos anúncios da época
[…] assumem lugar de relevo as traduções de Bocage. O consórcio das flores, epístola de Lacroix a seu irmão, 480 rs; Os jardins, poema de Delille, 1$200 rs; As plantas, poema de Ricardo Castel, 2$240 rs. Vendiam-se as Fábulas escolhidas de La Fontaine, traduzidas pelo padre Francisco Manuel e impressas em Londres em 1813, e a loja da Gazeta anunciava, do mesmo tradutor, Os mártires, ou O triunfo da religião cristã, poema de Chateaubriand, tradução impressa em Paris em 1816.
Assim, romances, folhetins e livros de poemas anunciados na imprensa informam sobre um certo tipo de leitura disponível para o mercado. No acervo anunciado ? como se viu nas transcrições ? destacam-se obras que hoje podem ser consideradas de extração erudita ou, pelo menos, medianamente erudita e que combinam bem com o tom igualmente erudito do CB.
Mas nem só deste autores canônicos, no entanto, se tecia o horizonte de leitura dos leitores virtuais de HJC. Pesquisa de Márcia Abreu que se debruça sobre os pedidos de autorização para remessa de impressos de Portugal para o Brasil traz para a estante dos presuntivos leitores do CB ainda um outro tipo de livro.
Os dados da pesquisadora revelam que conviviam com o acervo mais canonizado folhetos de cordel, como aqueles para os quais solicita autorização o documento no qual “diz João Henrique que ele pretende fazer transportar para o Rio de Janeiro os papéis de que consta a relação junta e como o não pode fazer sem licença de V.? R. portanto p. a V.? R. seja servido concedê-la”. [Márcia Abreu, Histórias de cordéis e folhetos (Campinas: ALB/Mercado de Letras. 1999), p. 50.]
Na relação que a pesquisadora tem a generosidade de transcrever, incluem-se textos sem nenhum pedigree: “Comédias: Artaxerxe; Acertos de hum Disparate; Alarico em Roma; Amor e obrigação; Aspásia na Syria; Belizário […] Virtuoza Pamela; […] Histórias: História da Magalona; __ da Imperatriz Porcina; __ da Donzella Theodora […]”. [Id., ibid.]
Vê-se assim que não era apenas o sisudo e compacto CB que chegava impresso da Europa para as mãos e os olhos do público brasileiro que ia tendo, assim, formatado e esculpido seu horizonte de expectativas e de leituras. Da mesma forma que o CB, produzido na Inglaterra, e de lá despachado no rumo do público lusófono a que se destinava, vinham também de tipografias européias muitas das publicações disponíveis para o público do Brasil: afinal, a imprensa só chegou por aqui em 1808.
Ou seja: apesar da presença da Corte, o ambiente em que viviam os leitores do CB era um cenário de penúria letrada.
O arejamento cultural possibilitado pela instalação da imprensa após os primeiros trezentos anos de nossa existência como colônia portuguesa, não foi acompanhado da implantação da infra-estrutura básica para a produção e consumo de material impresso. Mas, não obstante isso, a tabela que Hallewell nos permite montar parece sugerir um paulatino encorpamento do sistema literário, que se revela no número multiplicado de pontos de venda de livros e de folhetos, como aponta o quadro abaixo:
1808 |
1809 |
1810 |
1812 |
1816 |
1820 |
|
Pontos de venda |
2 |
5 |
6 |
7 |
12 |
16 |
Mas a indiscutível multiplicação de pontos de venda é insuficiente para gerar qualquer otimismo relativamente à quantidade e qualidade dos leitores de que dispunha HJC.
A tradição dos estudos da história da leitura mostra que práticas sociais de leitura são mais plenamente desenvolvidas, quanto melhor for a infra-estrutura disponível para produção e circulação de impressos, e quanto menos repressiva for legislação relativa a leitura e a escrita.
No que respeita à censura, um edital da Mesa do Desembargo do Paço de 1818 relativo ao periódico O Portuguez é eloqüente de quão encapelados eram os mares pelos quais navegava HJC:
Sendo constante o quanto são sediciosos, e incendiários os discursos publicados no periódico intitulado O Portuguez, pelos quais mostra o seu autor não ser o seu principal objeto propagar no povo conhecimentos úteis, e verdadeiras idéias, mas concitá-lo para perturbar a harmonia estabelecida em todas as ordens do Estado, e introduzir a anarquia […] É o mesmo senhor servido, que seja proibida a entrada e publicação de tão perigoso escrito: e ordena a Mesa do Desembargo do Paço, que faça expedir as competentes ordens, para que seus vassalos residentes nestes reinos, e domínios ultramarinos não recebam, nem vendam, ou retenham em seu poder o sobredito periódico, e menos o espalhem por qualquer modo, que seja, debaixo das penas impostas pelas leis contra os que divulgam ou retém livros, e papéis, sem licença ou proibidos pelas suas reais determinações […]. [Documento consultado na John Carter Brown Library. Arquivo Português. Doc. 71-341-2.]
Por tudo isso, há que homenagear os tão desconhecidos leitores que viabilizaram o empreendimento de HJC. Ao lado da censura implacável, o porte acanhado da base técnica da produção de material impresso disponíveis ao tempo de HJC torna ainda mais admirável seu esforço de manter o jornal por ininterruptos catorze anos, tendo por destinatário aquela “nação longínqua, e sossegada”, para a qual seu abnegado redator se propunha a transmitir “os acontecimentos desta parte do mundo”.
E HJC cumpriu plenamente sua promessa.
Catorze anos depois da criação do CB, o Brasil libertou-se de Portugal, passando a constituir uma nação que, neste começo do terceiro milênio é capaz de consumir por ano quase 500 milhões de exemplares entre revistas e jornais, [Almanaque Abril 2000 (26a ed. São Paulo: Abril, s.d.), pp. 215-17.] numa vertigem de mídia impressa que não está longe daquela de que, na epígrafe, fala Bernardo Guimarães.
(*) Professora e pesquisadora vinculada ao IEL-Unicamp e ao CNPq
Bibliografia
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Almanaque Abril 2000. 26a.ed. São Paulo, Abril, s.d.
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