Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Leituras d’en haut et d’en bas

IMPRENSA FRANCESA

Maria Betânia Ferreira, de Chatenay-Malabry (*)

No dia 10 de janeiro deste ano, na Zero Hora de Porto Alegre, Luis Fernando Verissimo ironizava a “culture de metro” dos parisienses, para quem a leitura de palavras ? em livros, revistas, jornais, volantes, folhetos, cartazes e literalmente todo e qualquer tipo de superfície escrevinhável ? é verdadeira mania. Se a leitura habitual e intensiva nas viagens de trem e metrô redundasse em incremento de cultura, segundo nosso sábio LFV, “os jovens da periferia eventualmente se equiparariam aos da classe média que moram no centro na disputa pela boa educação e o bom emprego”.

No primeiro semestre de 2002, a cultura francesa escorregou na leitura dos sinais que antecedem aquelas situações grandonas em vias de adquirir status de realidade, distraída que estava na leitura de palavras. No editorial de 15 de junho da revista L?Equipe, Patrick Le Roux fez o gol que faltou à seleção azul na Copa do Mundo, ao destacar semelhanças univitelinas entre a leitura feita em dois primeiros turnos ? o das eleições presidenciais e o da Copa: “O segundo turno da presidencial deve opor, já está escrito, Jacques Chirac a Lionel Jospin. Os líderes políticos parecem desconectados da realidade do terreno e não vêem os sinais que anunciam uma desagregação do eleitorado, principalmente à esquerda”; “O estado de graça parece inabalável. A crítica é proibida. Zinédine Zidane e seus companheiros de equipe estão em sua bolha esterilizada, nas malhas das exigências de um status onde o business feito em nome deles tem um lugar de destaque. No terreno real, os sinais precursores, as derrotas frente à Espanha, ao Chile ou à Bélgica são minimizados. Os jogadores também vêem o primeiro turno do Mundial como uma formalidade.”

Concretizadas a derrota enviesada dos Azuis e a vitória destra de Chirac, a imprensa francesa retoma questões menos arriscadas como a educação sexual, o enfado dos alunos e a idade avançada dos professores em atividade nas escolas. Ah, e as multas de trânsito dignas ou não de anistia.

Pingo é letra

Enquanto isso, alguns sinais seguem piscando alertas que teimam em passar despercebidos. Circula pelos corredores de piadas WWW uma “engraçadíssima” prova de Matemática, adaptando os assuntos estudados à realidade da vida dos jovens do 93 (leia-se jovens da periferia “d?en bas”, da banlieu barra-pesada de Paris). A prova tem questões como esta: “Carlos tem 10 gramas de colombiana pura. Ele cortou a colombiana com bicarbonato, à razão de 4 partes de cocaína por 6 partes de bicarbonato. Revendeu 6 gramas da mistura a Miguel por 25.000 francos, e 15 gramas a Ramón por 3.500 francos o grama. Quem foi enrolado, Miguel ou Ramón? Quantos gramas da mistura restam a Carlos? Qual é a taxa de diluição da colombiana de Carlos?” As demais questões seguem a mesma lógica, com algumas variações de tema (prostituição, dependência de drogas, armas, roubo de carros, tempo de prisão, pichações, sodomização) e de nacionalidade (Mourad, Cédric, Irina, Rachid, Yacine, Mohammed, os turcos de St. Gilles, Stavros e Ibrahim).

Enquanto isso, na primeira página de Le Figaro de 20 de junho, duas manchetes independentes disputam espaço, cada uma dona incontestável de sua metade. A primeira: “A Europa face à imigração ? os chefes de Estado vão tentar encontrar uma posição comum em Sevilha.” A segunda: “Prisões: 11.000 novas vagas.”

Como dizia alguém muito esperto em leitura de sinais (cujo nome desconheço), “para quem sabe ler, um pingo é letra.” E vamos em frente, que grandes “festas latinas” estavam programadas para festejar liberdade, igualdade e fraternidade no 14 de julho.

(*) Redatora e tradutora