Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lembranças do golpe dentro do golpe

AI-5, 35 ANOS

Alexandre Figueiredo (*)

No dia 13 de dezembro, o Brasil lembrou um dos períodos mais delicados de sua história política. Naquela data, no agitado ano de 1968, o locutor Alberto Curi, irmão do comediante Ivon Curi, leu em cadeia de rádio e TV o anúncio da criação de um quinto Ato Institucional do governo militar. A ditadura criava suas "leis", chamadas de Atos Institucionais, e nos quatro primeiros desses atos foram dissolvidos partidos políticos e decretada a intervenção em sindicatos e outras entidades de classe, que passaram a operar sob a vigilância e repressão do regime.

O AI-5, como passou a ser conhecido o quinto ato da ditadura, era muito especial no sentido negativo do termo. Na prática, promoveu decretou ampla censura e repressão e permitiu o abuso de poder dos militares, a partir de um engenhoso sistema de tortura, já descrito no livro Brasil Nunca Mais, importante documento sobre a repressão nesses tempos difíceis.

O AI-5 é conhecido historicamente como o "golpe dentro do golpe". E um efeito Frankenstein se deu a esse monstruoso ato, que para seus próprios criadores se revelou
prejudicial com o passar do tempo. O escritor Zuenir Ventura, na época jornalista da revista Visão, narra detalhadamente no seu livro 1968: O ano que não acabou a reunião de militares e políticos civis ligados ao regime para definir o quinto ato.

Crítica e humor

O estopim para a ditadura reagir dessa forma foi um discurso do jornalista Márcio Moreira Alves, consagrado no combativo diário Correio da Manhã (que apoiou a derrubada de João Goulart mas passou a fazer oposição ao regime), como deputado pelo MDB da Guanabara, no Congresso Nacional. Irônico, Moreira Alves aconselhou as jovens moças do país a não dançarem com cadetes nas festividades do Dia da Independência, o que foi tomado como uma provocação aos militares.

Até então, a ditadura havia sido ridicularizada e não levada a sério pela opinião pública. A ditadura havia passado por uma fase "branda", aparentemente tolerante ? embora sejam conhecidos os casos de censura, prisão e tortura já nos seus primeiros anos ?, quando os então vitoriosos pela derrubada de Goulart (um político ligado ao falecido presidente Getúlio Vargas e acusado na época de "promover o comunismo") anunciavam a ditadura como o "governo da Revolução". O golpe foi anunciado, naquela virada de março e abril de 1964, como uma "Revolução democrática". E, até 1968, os militares tentaram dar a
impressão de que estavam restaurando a democracia no país, afastando a ameaça do comunismo. O mundo vivia a Guerra Fria e os Estados Unidos forma surpreendidos, em 1959, com a instauração de um governo comunista em Cuba, cujo presidente, Fidel Castro, em 2004 chegará aos 45 anos de poder.

Para os jovens que imaginam 1968 como o melhor ano da década de 60, é melhor desfazer este equívoco. Para quem viveu aquele ano, e para quem pôde se informar melhor
dele, mesmo não tendo vivido a época, sabe que o ano de 1968 foi terrível, muito tenso e estressante. O melhor da década de 60 foi o período de 1960 a 1963, época de muita
esperança, principalmente no Brasil. E tudo que ocorreu de positivo em 1968 já havia plantado suas sementes na segunda metade dos anos 50 e no início dos 60. O que pode
se dizer de 1968 foi que o ano teve um aspecto muito positivo e incomum: nunca em outro período do século 20 os excluídos puderam manifestar não apenas seus anseios de liberdade e justiça, mas também o simples desejo de uma sociedade mais diversificada, diferente em personalidade mas igual em
direitos e deveres fundamentais.

Também não se podia dizer que 1968 era um ano alegre ou divertido, como imaginaria um jovem de hoje que toma conhecimento do período pela primeira vez, com polícia batendo em estudantes, prendendo muita gente, e até causando mortes. Uma dessas mortes, a do jovem Edson Luís de Lima Souto, motivou uma imensa manifestação na Av. Rio Branco, Centro do Rio, perto do restaurante Calabouço onde Edson foi morto durante o almoço e próximo ao Aterro do Flamengo, cujo trevo viário ganhou o nome do jovem assassinado.

A grande passeata, que reuniu milhares de pessoas até a Cinelândia, naquele junho de 1968, três meses após a morte de Edson, foi conhecida como a "Passeata dos Cem Mil" e, ao lado das Barricadas de Paris, na França, e da Primavera de Praga, na então Tcheco-Eslováquia (hoje são duas repúblicas separadas, a Tcheca e a Eslovaca), foi a maior expressão da mobilização política dos estudantes naquele ano que se encerrou de forma decepcionante e que o povo brasileiro foi obrigado a se conformar, salvo alguns corajosos que não puderam combater a repressão por meios alternativos, como a guerrilha.

Um dos aspectos dessa época foi protagonizado pelo jornalista e escritor Alberto Dines. Hoje editor-responsável do Observatório da Imprensa, Dines, que era chefe de redação do Jornal do Brasil naquele dezembro de 1968, teve que lidar com sutil bom-humor diante da censura então reforçada pelo ato. Na edição de 14 de dezembro, no alto da capa, à direita da manchete "Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado", o Jornal do Brasil publicou uma chamada "Ontem foi o dia dos cegos", numa crítica à intolerância da ditadura militar.

Um país arrasado

O AI-5, ao contrário do que imaginaram seus mentores, durou muito ? 10 anos. Também ninguém imaginaria que a ditadura militar duraria 21 anos, e ainda seriam 25 se contarmos o direito de eleições diretas para presidente da República. No conjunto da obra, a ditadura militar acabou com o país.

Atrofiando a cultura, a ditadura militar ofuscou o modelo de cultura popular diversificada vigente até 1964. Veio o desbunde e seu subproduto, a cultura popularesca, enquanto a música popular autêntica de outrora ganhou um rótulo light, com termos como "música de raiz", "música genuína" etc.. Na TV, o sensacionalismo acabou se impondo, como uma ditadura à parte, enquanto aquele modelo de televisão dos anos 60, inteligente e criativo,
buscou um pálido asilo em canais educativos e algumas emissoras por assinatura, embora a TV paga já comece a ser contaminada pelos vícios da TV aberta.

Lendo vários livros sobre personalidades das mais diversas dos anos 50 e 60, como Juscelino Kubitschek (escrito por Cláudio Bojunga), Estrela Solitária e a Chega de saudade (por Ruy Castro), Festivais de música (Zuza Homem de Mello), Sérgio Porto (por Renato Sérgio), Cobras criadas (Luiz Maklouf Carvalho), Minha razão de viver (autobiografia de Samuel Wainer) e Chatô, o rei do Brasil (de Fernando Morais), que juntos dão um enorme subsídio para uma rica compreensão dessas duas décadas no Brasil, fica a impressão de que a ditadura arrasou com o país.

Reduzido a um imenso quartel do Oiapoque ao Chuí, o Brasil da ditadura não alcançou o projeto desejado: sofreu um gravíssimo prejuízo econômico, aumentou a pobreza, agravou as injustiças sociais, deprimiu as pessoas e corrompeu a mente de muitos que, dos velhos sonhos de liberdade e progresso do Brasil da bossa nova, de JK, de Pelé e Garrincha, restou um arremedo que busca referenciais de idolatria cada vez mais medíocres. Isso mostra que nosso país ainda não está curado da grande tortura moral que foi a ditadura militar, que abalou moralmente até os próprios militares, hoje desacreditados ? mesmo havendo, nas Forças Armadas, um grandioso contingente que não participava desse circo de horrores que o jornalista Elio Gaspari, em singular contribuição historiográfica, pesquisou minuciosamente na série Ilusões Armadas.

Nesses tempos revisionistas, é uma boa hora para, como diz Boris Casoy, passar o Brasil a limpo, com uma visão autocrítica dos últimos 40 anos. Os tempos democráticos de hoje são uma boa oportunidade para construirmos um novo país.

(*) Jornalista